A estratégia da amnésia coletiva e a corrida eleitoral 

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Mariane Nava
Doutoranda no PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS

Recentemente li no Estadão um artigo originalmente publicado pelo The New York Times. Em resumo, o texto abordava a questão da “amnésia coletiva” que aparentemente se instalou no povo estadunidense sobre os acontecimentos durante o governo de Donald Trump. O ponto principal estava na preocupação do que esse “fenômeno” poderia causar nas urnas, por isso a estratégia do atual presidente do país, Joe Biden, estava em “relembrar” fatos, ressaltar o medo e o desânimo que se abateram em parte da população após a vitória de Trump em 2016. 

Vale ressaltar que esse pode ser um dos pontos da corrida eleitoral dos Estados Unidos deste ano, visto que entender a situação da política norte-americana (ou de qualquer outro país) é algo muito mais complexo. Sendo esta apenas uma das frentes de “combate” entre os democratas e os republicanos, as outras envolvem terrorismo, imigração, políticas econômicas, sociais, e até mesmo o posicionamento frente ao genocídio em gaza. Além, é claro, da própria história e cultura do país… enfim, entender o quadro político não é uma tarefa simples e óbvia, tampouco os problemas utilizados como mote eleitoral podem ser resolvidos com medidas simplórias.

E isso se torna evidente quando analisamos as resolutivas ridículas propostas por campanhas pautadas em semear o medo e a desinformação. Por exemplo, para evitar a imigração ilegal, a proposta foi a construção de um muro, o que “resolveria” as políticas intervencionistas, militaristas e estímulo ao liberalismo exacerbado perpetuadas por anos em países centro e sul americanos.

No Brasil, temos a proposta de armamento da população contra a violência. A receita para fomentar uma guerrilha urbana parece aceitável para uma parcela da população que compra a ideia de uma resolução simples para um problema complexo e que vem sendo construído há anos, por meio do crescente abismo da desigualdade, do racismo estrutural e de uma falsa ilusão de meritocracia.

E talvez essa tenha sido parte da estratégia que levou Trump, Bolsonaro, Milei, e tantos outros, ao poder: fomentar o medo irracional de um futuro apocalíptico, personificando o mal causador em uma pessoa (ou grupo) para então propor uma solução simples: o extermínio desse “mal”.

Veja, não se trata de entender a população como pessoas más ou tão facilmente manipuláveis. Mas, perceber que a política é apresentada como algo fora do cotidiano do eleitor cuja participação é apenas o momento eleitoral. Uma percepção totalmente equivocada do que seria um sistema democrático, mas que, infelizmente, é uma das compreensões mais comuns. Assim, quando algo é tão “distante”, comprar um discurso de resolução fácil de problemas complexos parece aceitável. Afinal, é apenas política… 

E essa compreensão contribui para o entendimento da amnésia coletiva citada pelo jornal. Nele, uma cientista política explicava que esse esquecimento era algo bastante comum, mesmo que os fatos ocorridos tenham ocasionado danos (materiais ou imateriais) ao indivíduo. Isso porque o recordar de um acontecimento pode ser abrandado quando se tem um perigo muito maior a frente ou um inimigo ainda mais terrível a ser combatido – e essa parece ser a estratégia de alguns extremistas para voltar ao poder. 

Infelizmente, é perfeitamente (e assustadoramente) possível minimizar as atrocidades cometidas e classificá-las como uma “gripezinha”, exaltando outras temáticas que mexam ainda mais com os ânimos sociais. Assim, uma lembrança pode ser reescrita a partir da exaltação de novos sentimentos que promovam o medo, a raiva e despertem a ideia de um mundo melhor – ainda que apresentado a partir de uma visão simplória, que desconsidera toda a cadeia histórica e as bases exploratórias sobre as quais a sociedade se estruturou.

Além da amnésia coletiva, que pode ser derivada a partir da ideia de se evitar um mal ainda maior, existem exemplos de amnésia “forçada”, como foi o caso da ditadura militar. Se no primeiro caso, temos um esquecimento semi-induzido, se é que posso chamar assim, no segundo, os militares apagaram registros, pessoas e o máximo de rastros possíveis sobre as atrocidades cometidas – e tiveram seus crimes anistiados no pós-ditadura. A anistia, o silenciamento e a retomada junto “ao vamos deixar no passado” permitiram que hoje, anos mais tarde, jovens e adultos, que talvez não tenham sofrido restrições ou perseguições na época, percebam como algo positivo um golpe de estado. 

Embora ambas sejam terríveis, esse apagamento da história parece ainda mais perverso e talvez um dos elementos que propiciem o sentimento de impotência. Na mente de muitos, pode parecer plausível substituir um regime democrático por outro, ainda que ditatorial, visto que se trata “apenas” de um sistema de governo sobre um povo cansado, desiludido e sobrecarregado.

Esse pensamento deriva da insatisfação com a democracia, ou melhor, com a democracia neoliberal vigente. Nela, a “democracia” está restrita aos poucos espaços que não podem ser regulados pelo mercado – ainda que possam ser influenciados por ele.

Frente a esse contexto que parece privilegiar a lei do mais forte, a estratégia de infundir o medo e propor soluções esdrúxulas parece fazer efeito, e a amnésia coletiva semi-induzida, um mecanismo de resposta.

Gostaria de apontar perspectivas positivas e dizer que há soluções “simples” para combater esses problemas. Mas, não se trata disso. Ainda temos um longo caminho de amadurecimento democrático, de conscientização sobre cidadania, de lutas contra a desigualdade e de expurgo de males que datam do Brasil colonial. Não é um caminho fácil, tampouco rápido, mas é uma rota que, me parece, está sendo trilhada por um número crescente de pessoas.  

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