Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Licencianda em Artes Visuais, Talia Prates da Luz investiga a presença do afeto no ambiente escolar a partir das experiências de estudantes da Educação de Jovens e Adultos
*Por Talia Prates da Luz
*Ilustração: Joana Custódio/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS
"Com que olhar nos miram e exigem ser olhados os jovens e adultos passageiros do trabalho para a EJA? Como entender seus percursos? [...] Que radicalidades político-pedagógicas encontrar nesse voltar a refazer itinerários escolares, humanos?" (Arroyo, 2017, p. 7)
Esta escrita é decorrente do meu Trabalho de Conclusão de Curso, em que desenvolvo uma reflexão crítica e poética sobre um projeto de Ensino de Artes Visuais, desenvolvido no contexto dos anos iniciais da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio de Aplicação da UFRGS (CAp-UFRGS).
Atuei como bolsista nos anos iniciais da EJA durante o período de 2020-2023, no qual pesquisei sobre práticas pedagógicas adequadas e eficientes para alunos adultos em fase de alfabetização, buscando que as proposições em sala de aula fossem significativas e fizessem sentido para a realidade dos estudantes.
Tais práticas pretendiam enfatizar o potencial que existe no ensino de artes para a mudança do olhar para aquilo que é comum, que é cotidiano. Exploramos os caminhos diários e investigamos territórios subjetivos a partir de um Objeto Propositor Poético de Artes Visuais, sensibilizando o olhar e construindo novas paisagens e desvios de rotas.
A presença do afeto em sala de aula foi explorada como potencial construtivo na formação docente, destacando que o processo de aprendizagem exige questões que ultrapassam a exclusividade da ação mecânica de ler e escrever palavras, especialmente no contexto caracterizado por alunos adultos em fase de alfabetização. Dessa forma, entende-se como necessário criar relações afetivas, levando em consideração que o processo de aprender a ler e escrever pode ser duro, difícil e frustrante. Segundo Meira e Pillotto, “no ambiente escolar são construídas relações de alegria e tristeza, competição, frustração, entre tantos outros sentimentos, que formam as redes de emoção”.
Como direcionador para a escrita, utilizamos o Objeto Propositor Poético ‘Onde: Mapeando Territórios’ para refletir sobre a subjetividade de contextos territoriais. O material didático foi produzido a partir de cartas direcionadoras, em que cada uma aponta para uma direção subjetiva. O material pedagógico tem como tema principal o mapeamento de lugares comuns e os espaços cotidianos frequentados por estudantes. É constituído, portanto, por 35 cartas direcionadoras, que possuem escritas como “onde tem arte”, “onde é possível respirar”, “onde tem medo”, etc. Como atividade pedagógica, uma das possibilidades é a criação de um mural coletivo através do Padlet, em que os alunos adicionam simultaneamente as fotografias das cartas a partir de seus lugares escolhidos para registro.
O projeto de ensino ao qual este trabalho se refere esteve relacionado a questões de mapeamentos, contexto territorial, ocupação de espaços físicos e pertencimento ao ambiente escolar sob a ótica do Ensino de Artes Visuais.
As atividades propostas foram desenvolvidas ao longo de onze semanas, sendo explorados quatro módulos:
- Mapeamentos: através de propostas de mapeamentos e cartografias, foi possível enxergar detalhes escondidos entre os trajetos trilhados no dia a dia e no espaço escolar. Também mapeamos as artes do CAp-UFRGS, buscando descobrir a existência de arte nos espaços escondidos e marginalizados, tendo como referência artes urbanas espalhadas pela cidade de Porto Alegre.
- Instruções e direcionamentos: inspirados pelo trabalho de Yoko Ono (Grapefruit: A Book of Instructions and Drawings, 1964), desenvolvemos pequenas instruções dos nossos trajetos. A partir das instruções criadas, realizamos uma caça ao tesouro, cujo destino final estava direcionado como “Parabéns, vocês chegaram ao seu destino. Sala 120 – turma EF1 e EF2 da EJA. Nossa sala de aula!”. É poético e sensível visualizar a sala 120 do Cap-UFRGS como um dos destinos entre os itinerários dos alunos, afirmando a existência dos estudantes naquele espaço. Descrevo da seguinte forma: “Depois de um dia inteiro de trabalho, depois de viagens de ônibus, depois de tantos direitos roubados e faltas de oportunidades, finalmente, os alunos chegaram ao seu destino: a sala de aula”.
- Práticas de pintura e representação do espaço: desenvolvemos pinturas em aquarela a partir de fotografias dos espaços do colégio. Os momentos de pintura em aquarela proporcionam um espaço de fuga – um oásis – em que os alunos destinavam a sua completa atenção para a tinta e o papel, e, olhando à distância de uns passos, pareciam adentrar espaços que só a arte permite.
- Nossos passos na EJA: entendendo o espaço escolar como um espaço de trânsito – com curvas, desvios, destinos -, refletimos sobre a possibilidade de uma intervenção artística que representasse os estudantes da EJA, abordando questões sobre seus caminhos, suas histórias e a afirmação de que também estão ali presentes. Tendo o trabalho da artista Yayoi Kusama como referência (The obliteration room, 2002), produzimos pegadas em papel contact. Em cada pegada, escrevemos palavras que representassem os passos dos alunos da EJA e iniciamos um mural coletivo na parede do corredor, em frente à sala de aula da turma EF1/EF2 da EJA. O mural teve como título “Na luta, eu sou meus passos”, inspirado por um poema de Abel Silva em resposta ao poema “Qualquer caminho leva a toda parte”, de Fernando Pessoa. Nas pegadas, surgiram palavras como: aprender, luta, tudo de bom, abrir os olhos, dedicação, respeito, força, guerreiras, conhecimento, sonho, coragem, alma, cultura, futuro, sucesso. Também estava a frase “ufa!!! vencemos! somos abençoados.”.
Por meio de análises do cotidiano de uma sala de aula dos anos iniciais da EJA, foi possível observar os estudantes adultos como sujeitos que brincam, choram, amam e são afetuosos em cada olhar; que pintam, dão risada, se contradizem no processo de construção do pertencimento escolar e que, ainda que sejam pais/mães, avós/avôs, trabalhadoras/es, na sala de aula são, sobretudo, alunos.