Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Clarissa Peixoto
Jornalista, mestra em Jornalismo pelo PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS.
Sob frio intenso e muita chuva, jornalistas e ativistas pelos direitos humanos protestaram em frente à The Royal Courts of Justice, em Londres, nos dias 20 e 21 de fevereiro pela liberdade do jornalista Julian Assange. Manifestações da mesma natureza ocorreram em outras partes do mundo, incluindo cidades do Brasil, como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro.
Nesses dois dias, aconteceram as audiências de apelação à Suprema Corte Britânica pela não extradição do jornalista para os Estados Unidos, onde responde a acusações referentes à posse, transmissão e publicação de documentos secretos relativos a crimes de guerra. Caso seja extraditado, Assange cumprirá uma pena de até 175 anos. O fundador do WikiLeaks está detido no presídio de segurança máxima de Belmarsh, desde 2019, e não compareceu à audiência, nem mesmo de forma remota, pelo agravamento do seu estado de saúde.
A família de Assange e organizações de direitos humanos temem pela saúde do jornalista caso ele seja extraditado. De acordo com Stella Assange, companheira, e Gabriel Shipton, irmão do ativista, as condições de Assange são precárias e, nos Estados Unidos, poderá sofrer torturas ou mesmo não resistir. “Temo pela vida do meu marido”, afirmou Stella.
A corte britânica deve divulgar um parecer ainda no mês de março. Em caso de derrota para Assange, há uma possível apelação ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. O jornalista é australiano e pede que possa voltar em liberdade ao seu país.
Organizações como Anistia Internacional, Repórteres sem Fronteiras e mais um conjunto de entidades se manifestaram durante a vigília em prol de Assange. No início de fevereiro, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Tortura, Alice Edwards, pediu ao Reino Unido que suspenda uma possível extradição do jornalista para os Estados Unidos.
O presidente Lula também defendeu Assange em discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, no ano passado. “Um jornalista como Julian Assange não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima”, defendeu o presidente do Brasil.
Mais de 10 anos de luta pelo direito à liberdade de expressão
Fundador do site Wikileaks, uma plataforma de conteúdo livre e com caráter jornalístico, em 2010, Assange teve acesso a documentos secretos que comprovam crimes de guerra durante as ações americanas em territórios como o Iraque e o Afeganistão.
Quem acompanhava os noticiários à época das invasões americanas, lembra das motivações originadas pelos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e como elas justificaram uma série de abusos da máquina de guerra estadunidense contra “o inimigo terrorista”.
Quase 10 anos se passaram para que, enfim, o Wikileaks pudesse comprovar as atrocidades da política bélica dos Estados Unidos sobre o Oriente Médio. A partir daí, começa a saga de Assange para manter seu direito não só à prática jornalística como à própria liberdade.
Em entrevista à TV 247, a jornalista Natália Viana (Agência Pública) remonta com riqueza de detalhes as acusações à Assange e como faltam argumentos para sustentá-las.
O jornalista sofreu uma acusação de estupro na Suécia que motivou um primeiro pedido de extradição. Descumprindo a prisão domiciliar com receio da extradição, Assange se refugiou na embaixada do Equador, durante o governo Rafael Correa, em 2012. A falta de provas fez com que o caso fosse encerrado, mas Assange respondia, então, pelo descumprimento da prisão domiciliar no Reino Unido.
Em 2019, perdeu o asilo diplomático na embaixada equatoriana, durante o governo de Lenín Moreno, cumprindo pena, desde então, em Belmarsh. Assange foi retirado da sede da embaixada pela polícia metropolitana de Londres, numa cena que chocou jornalistas e ativistas de todo o mundo.
Segundo Natália, “a maior crueldade de tudo que aconteceu com Assange é que ele ficou preso num imbróglio jurídico que não faz o menor sentido”. Ele se exilou na embaixada equatoriana porque a Suécia queria a extradição para interrogá-lo. Com o fim do processo por falta de provas, a justiça britânica queria detê-lo porque ele rompeu com a prisão domiciliar anterior ao exílio na embaixada.
Essa violação condicional deveria render 11 meses de prisão. “Passado os 11 meses, ele continua preso porque os EUA querem a extradição. Assange está preso em Londres sem nenhuma acusação”, denuncia Natália.
O fim do jornalismo?
Com base nas palavras de Nilson Lage, jornalistas enfrentam em seu cotidiano de trabalho a dificuldade com as estruturas de poder que temem “ser devassadas e tendem a resguardar mais informações do que seria necessário”.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que Assange manteve os princípios de uma práxis jornalística ética, com atenção ao interesse coletivo, mesmo que isso pudesse arruinar, contraditoriamente, sua vida profissional, e ainda mais, a sua vida pessoal. É, de fato, um jornalista de coragem. Não à toa, recebeu ou foi finalista de quase 40 prêmios de jornalismo e direitos humanos.
Vale lembrar também que o site Wikileaks disponibilizou todos os documentos para jornalistas de todo o mundo que manusearam, apuraram e publicaram as informações, no entanto, nem mesmo Chelsea Manning, que foi uma fonte que vazou informações secretas, e é americana, cumpre pena atualmente.
O caso de Assange deveria ser motivo de intensa apreensão a jornalistas. Mesmo sob os padrões hegemônicos de poder, um critério ético indiscutível é o compromisso em tornar públicas informações de interesse coletivo. É uma ameaça à livre expressão, considerando a autenticidade das provas documentais divulgadas.
Julian Assange segue detido por divulgar informações verdadeiras e por articular jornalistas de todo o planeta em torno de um conteúdo de total interesse público, enfrentando pressões e preservando fontes.
Apesar de mais de uma década de injustiças contra ele, é necessário que se faça justiça, com uma defesa intransigente para que seja libertado e que possa voltar a se manifestar plenamente. Esse é um direito humano que não tem sido resguardado e abala qualquer perspectiva democrática, tão alardeada pelas nações liberais.
Nunca podemos deixar de nos indignarmos com as hegemonias que estabelecem direitos e punições a partir dos seus próprios critérios. Assange sequer é estadunidense ou trabalhou naquele país.
Se as regras do jogo são estabelecidas sem justas equivalências, por que devemos obedecê-las? Ou mesmo como ter segurança sob quais regras nos submetem se elas mudam em medida de interesses unilaterais com poder de persuasão pela força do aparato jurídico e mesmo do aparato bélico?
Manifestantes entoavam as seguintes palavras durante os atos pela liberdade de Assange: “Eu acredito que vamos vencer”. Se não vencermos, provavelmente esse será um marco (ou já é) de mais uma mudança de paradigma na forma de pensar e fazer o jornalismo ao longo da história.