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A resposta ao ataque do Hamas foi o veículo para os israelenses refazerem a demografia da Palestina de forma radical
A nakba de 2023, como coloco no título, não é inimaginável porque Israel deixou de desejar a Palestina para si, mas porque nos iludimos que catástrofes e violências dessa magnitude não ocorreriam mais. “Never again”?.
Pela forma como as coisas se desenham, palestinos e palestinas terão que sobreviver à expulsão forçada uma segunda vez. E no atual mundo de contato imagético imediato e direto, não precisamos de mediadores jornalistas. Os nativos nos contam ao vivo cada bombardeio, cada casa destruída, cada criança destroçada. Testemunhamos a catástrofe em cada segundo do nosso dia.
O mês começou com a ação do Hamas, no dia 7 de outubro, e a principal reflexão que deveria ter sido feita é como desmontar de um sistema político que produz a desumanização do outro. A violência do regime de controle e a contraviolência do nativo está no centro da relação colonial. Mas as principais potências se articularam para chancelar a produção da destruição.
Netanyahu, ao anunciar publicamente a fase de operações terrestres, no dia 27, fazia referências bíblicas em seu discurso – citou a tribo Amalek, cujo destino desenhado na Bíblia, como interpretado por ele, era o extermínio. Alguns dias antes, no dia 16, em sessão do Parlamento Israelense, o primeiro-ministro definia a ação de Israel dentro de “uma luta entre as crianças da luz e as crianças da escuridão, entre humanidade e a lei da selva’”. Mas essas referências bíblicas ou apocalípticas não eram os presságios mais assustadores. Do ponto de vista histórico, o mais preocupante foi Netanyahu definir o ataque como “nossa segunda guerra de independência”.
A tradução da mensagem do israelense é que ele enxergava ali uma nova oportunidade de redesenhar território e demografia na Palestina. E a primeira pista de que poderíamos testemunhar esse redesenho foi a ordem, em 13 de outubro, para que 1,1 milhão de pessoas evacuassem o norte da Faixa de Gaza, em direção ao sul. Aqui foram levantadas as primeiras suspeitas de que estávamos diante do crime de genocídio. Depois saberíamos do documento datado nesse mesmo dia 13, originado no Ministério da Inteligência, que versava sobre um destino para a população palestina.
A retórica e os planos traziam de arrasto os ventos do passado. A 1ª Guerra de Independência foi a oportunidade histórica que David Ben-Gurion enxergara no fim da década de 1930 para transformar a mesma Palestina, naquele momento ainda unificada. O então líder da Agência Judaica no período do domínio britânico tentava fazer seus pares verem com bons olhos a proposta inglesa de 1937 de partição do território e transferência de população (dos palestinos que habitavam naquele momento o que viria a ser o Estado judeu).
O argumento de Ben-Gurion era que, apesar de o Estado judeu da proposta não cobrir toda a Palestina, pela primeira vez a grande potência do mundo de então chancelava a possibilidade de um Estado etnicamente judaico. Disse ele, de acordo com o registro histórico: “Devemos nos agarrar a essa ‘recomendação’ (…) porque de todas as conclusões da Comissão (Peel), essa é a que oferece alguma recompensa por nos tirar outras partes do país (…) O que é inconcebível em tempos normais é possível em tempos revolucionários … Qualquer dúvida da nossa parte sobre a necessidade de transferência, qualquer dúvida que joguemos sobre a possiblidade de sua implementação, qualquer hesitação de nossa parte sobre sua justiça, pode nos fazer perder a oportunidade histórica que pode não voltar a ocorrer”.
Várias centenas de crianças palestinas vem sendo mortas diariamente por Israel desde o início da operação militar / AFP
A nakba palestina, a limpeza étnica da população de partes da Palestina que se tornariam o Estado de Israel, ocorreu em paralelo a batalhas que explodiram no fim de 1947. A proposta de partilha das Nações Unidas de novembro daquele ano é o estopim que coloca em curso, em um primeiro momento, a série de batalhas entre as forças sionistas e grupos de guerrilhas árabe-palestinas. Os nativos não se contentaram em perder mais da metade de seu território e ficar apenas com 16% das terras cultiváveis da Palestina. Já a partir de 15 de maio de 1948, quando oficialmente termina o Mandato Britânico, começa a fase da guerra interestatal de Israel contra a Jordânia, na linha que formaria a Cisjordânia, com tropas egípcias, na linha que formaria a Faixa de Gaza, e Síria, na fronteira nordeste da Galileia com as Colinas do Golã.
Em meio às batalhas militares, a partir de abril de 1948, diretivas militares (plano Dalet), guiaram também um esforço de expulsão e destruição de infraestrutura civil. Uma de suas diretivas era “operações cumulativas contra centros populacionais dos inimigos para impedir que fossem usados como base por forças armadas ativas”. Uma das categorias de ação era “Destruição das vilas”: “incendiá-las, explodi-las e plantar minas nas suas ruínas”. A instrução era que as operações de varredura e controle deveriam obedecer às seguintes diretrizes: “cerco da vila e condução de busca no seu interior. No evento de resistência, a força armada deve ser varrida e a população deve ser expulsa para fora das fronteiras do Estado”.
Cenários possíveis
O plano do Ministério da Inteligência, do último dia 13, listava a expulsão da maior parte dos 2,2 milhões de palestinos que habitam Gaza como opção política para Israel. A proposta começa com o diagnóstico de que o “Estado de Israel precisa levar adiante uma mudança na realidade civil da Faixa de Gaza (…)”. Isso deve ocorrer “simultaneamente à derrubada do regime do Hamas”. Ou seja, em pouquíssimas palavras o conjunto da equação de Ben-Gurion: a mudança demográfica do território (o “inconcebível”) e a oportunidade política provida por tempos de confronto.
Cumprida a diretriz principal, derrubar o Hamas, são analisados três possíveis cenários pelo plano: população palestina permanece em Gaza e é governada por uma Autoridade Palestina “importada” da Cisjordânia; população permanece, mas é governada por uma autoridade árabe emergente (depois de um controle temporário israelense); por fim, “evacuação”, ou seja, expulsão, da “população civil de Gaza para o Sinai”, e anexação de partes do território a Israel. O Ministério afirma que a “opção que irá render o resultado estratégico e positivo no longo-prazo para Israel” é a última opção.
Na prática, a implementação da expulsão obedeceria às seguintes etapas: um chamado para civis palestinos esvaziarem o norte de Gaza (feito); realizar operações sequenciais por terra do norte ao sul de Gaza (em processo); abrir as rotas para Rafah (em negociações tensas entre Egito-Israel-EUA); e restabelecer “cidades tendas” no norte do Sinai e, posteriormente, construir cidades para reassentar os palestinos no Egito (a ver). Em seguida, o plano seria criar uma “zona estéril de muitos quilômetros” dentro do Egito, de modo a não permitir o retorno da população à Gaza.
Netanyahu assinalou, no dia 6 de novembro, que Israel deve manter “a responsabilidade de segurança geral” do território por um “período indefinido”. Ou seja, Netanyahu vai reverter a política implementada por Ariel Sharon em 2005, com o Desengajamento. Se nos últimos 18 anos, a forma de ocupação da Faixa foi por um cerco e violência à distância, Netanyahu deve devolver o exército ao território para controlar e governar a população palestina. Isso poderia indicar a opção 2, nova ocupação interna de Gaza até repassar a administração da população para uma nova liderança.
Números do massacre
Mas o nível de destruição de Gaza nesse mais de um mês pode indicar que esse controle indefinido declarado por Netanyahu seja um passo para expulsão palestina e anexação israelense de parte do território. Além das 10.569 mortes (dados de 8 de novembro), sendo 4.234 crianças (quase metade), são 40 mil unidades de moradia destruídas, ou seja, 45% de casas de Gaza.
Quase metade das moradias da Faixa de Gaza já foram destruídas pelas forças armadas israelenses / AFP
Sobre estruturas de saúde, 1/3 dos hospitais e 2/3 de unidades de saúde estão fechadas. No boletim do dia 6, o Ministério de Gaza informava que 1,5 milhão de pessoas estavam deslocadas internamente em Gaza, ou seja, 65%. No dia 28, o Guardian informava que um quinto das padarias em Gaza haviam sido destruídas, o que era mais um fator para a escassez de comida, também afetada pela falta de combustível. As pessoas só conseguiam pão depois de longas filas. Ou seja, Gaza se tornava um campo arrasado para onde não se poderia retornar.
Na noite de segunda, 6, o Cogat (comando do exército para as atividades nos territórios ocupados) postou um vídeo com milhares de pessoas rumando do norte de Gaza para o sul, no caminho de sua expulsão. A descrição do post era: “Acontecendo agora: milhares passam pelo corredor de evacuação das FDI (Forças de Defesa de Israel) aberto para civis no norte de Gaza em direção ao sul”.