Hortas comunitárias revelam benefícios multifuncionais em Porto Alegre

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Agricultura urbana | Além de segurança alimentar e renda, o cultivo coletivo da terra propicia saúde, memórias, conhecimento e autonomia. Prefeitura defende unidades demonstrativas e Fórum quer a valorização de contextos locais

*Foto: FAUPOA/Arquivo

“O segredo da vida é o solo, porque do solo dependem as plantas, a água, o clima e a nossa vida. Tudo está interligado.” Essas palavras da ambientalista Ana Primavesi, que nos deixou há poucos anos, seguem vivas e válidas entre nós e nossos modos de vida. Considerada uma das pioneiras da agroecologia moderna, a agrônoma austro-brasileira eternizou-se pela atualidade de sua visão sobre a relação de dependência entre os seres humanos e o seu meio. Especialmente na produção alimentar.

Em Porto Alegre, berço de grandes referências e debates ambientalistas, a agricultura urbana e periurbana (praticada no interior ou na periferia de uma localidade, cidade ou metrópole) é cada vez mais reconhecida como uma prática comunitária econômica, saudável e estratégica para demandas que vão bem além da prateleira do supermercado. E, mesmo para quem ainda não a domine, os seus benefícios podem ser percebidos na vida nas cidades.

É o caso de Letícia Silva Oliveira, de 32 anos. Nascida em Salvador (BA) e há cinco anos morando no bairro Farrapos, em Porto Alegre, Letícia deverá ser uma das beneficiadas das colheitas da Horta Solidária Desabafa. “Me deixa feliz poder participar dessa horta, pois eu posso ensinar ao meu filho a maneira correta de onde vem o alimento”, comenta, enquanto participa de um mutirão de plantio.

Redes Solidárias

Criada a partir de necessidades relacionadas à manutenção da Cozinha Solidária Desabafa – coletivo composto por moradores atentos a diversas demandas sociais do bairro Farrapos, agravadas durante a pandemia, como fome, desemprego, depressão e violências –, a Horta Desabafa ilustra uma das motivações principais que têm despertado a valorização da terra e da agricultura urbanas: a insegurança alimentar.

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“Posso ensinar a ele a maneira correta de onde vem o alimento”, considera Letícia, com o filho no mutirão (Foto: Ronaldo Botelho)

“A desigualdade social gerada pela falta de emprego e renda impede essas pessoas de adquirirem alimentos adequados em quantidade e qualidade”, explica Ony Teresinha Pereira da Silva, advogada e integrante da equipe de trabalho da cozinha e da horta solidárias da Associação Cultural e Educativa pelo Desenvolvimento do Bairro Farrapos (Desabafa), por onde se articulam os projetos. Semanalmente essa cozinha serve mais de 300 marmitas para pessoas em vulnerabilidade de várias das 19 comunidades daquela região, que é o foco dessa entidade.

Para efetivar as ações, essa iniciativa conta com uma rede de apoio, integrada por sindicatos, associações culturais, ONGs, movimentos sociais e parlamentares vinculados às lutas sociais.

“O Brasil é chamado internacionalmente como o celeiro do mundo. Aqui do lado da nossa faculdade, que este ano tá completando 125 anos, a gente tem pessoas passando fome – isso com todo o conhecimento adquirido ao longo dos anos, e que ainda vem sendo gerado, para se produzirem mais alimentos! Então, o que que a gente pode fazer?”, reage a professora Amanda Posselt Martins, do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia e integrante do UVAIA (Uma Visão Agronômica com Ideal Agroecológico), coletivo que reúne acadêmicos da unidade e que recentemente firmou parceria com o Desabafa.

“Eu vejo que essa articulação da Universidade com comunidades periféricas, visando à organização dessas hortas urbanas, é importantíssima”

Amanda Posselt Martins

Mas essa parceria tem levado mais que orientação técnica ao bairro. A ação do UVAIA tem atraído vários acadêmicos cientes do papel socioformativo da extensão. “As hortas comunitárias são essenciais para a manutenção e construção de um ambiente social e cultural”, considera Aline Teixeira, acadêmica do 8.º semestre de Agronomia. A ambientação com a terra no meio urbano é também algo valorizado pelos estudantes. “Uma horta propicia uma maior aproximação com a natureza, cada vez mais distante nos grandes centros urbanos”, considera Nicolas Della Casa, colega de Aline na Universidade e formando no mesmo curso.

Valores diversos

Mas a horta Desabafa é apenas uma entre inúmeras e diversas experiências de agricultura urbana mantidas em Porto Alegre. A cada dia mais comunidades enxergam nas hortas um ambiente de compartilhamento de problemas e de organização de soluções. No âmbito da gestão pública municipal, a agricultura urbana está sob a coordenação da Secretaria Municipal de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Desde que assumiu essa área, em meados do ano passado, o titular da pasta, Cássio Trogildo, diz ter dado prioridade à produção primária da zona rural.

Ele faz questão de enumerar várias ações para esse segmento, como limpeza, irrigação, construção de açudes e de tanques de reservação. “Fizemos um planejamento estratégico guarda-chuva, mas naquele primeiro momento nem estava na [nossa] ótica tratar de hortas comunitárias”, observa.

Ele diz que, para as hortas urbanas e periurbanas, a administração municipal tem desenvolvido uma política que prioriza o desenvolvimento de hortas-piloto, que deverão funcionar como unidades demonstrativas, modelos para o resto da cidade. “Meu sonho atual são quatro unidades, uma em cada quadrante. A gente pensa até, depois de ter unidades demonstrativas também regionalizadas, uma por cada uma das 17 regiões”, prevê. O secretário também anuncia a preparação de uma política de capacitação a partir das escolas e a articulação de uma rede de apoio a hortas.

Desde uma visão mais local e contextualizada, o Fórum de Agricultura Urbana e Periurbana de Porto Alegre (FAUPOA) considera prioritária a valorização das experiências de hortas já estruturadas, em lugar de modelos prontos, vindos de fora para dentro. Criado em agosto de 2021, o coletivo já mapeou mais de 35 projetos de hortas comunitárias na cidade, em diversos níveis de estruturação, com um trabalho de articulação, orientação e apoio. O fórum concebe a agricultura urbana e periurbana sob a lógica de multifuncionalidade, para além da geração de renda e trabalho.

“Se, para a horta que se estabelece numa escola, o fim imediato é a pedagogia; se, num posto de saúde, é necessário dialogar com a saúde das pessoas; se, num presídio, a finalidade pode ser a geração de renda, a recuperação terapêutica ou a produção de alimentos; se ela dá na praça, ela é da agroecologia. Então, é simbólica, é pedagógica e é laboratório”, analisa Antônio Elisandro, voluntário na Horta da Lomba do Pinheiro e membro da rede de apoio do FAUPOA.

Mapeamento do FAUPOA indica distribuição e diversidade de hortas na cidade – para ampliar a imagem, acesse aqui página do FAUPOA no Facebook (Imagem: FAUPOA)

Concorda com a perspectiva do FAUPOA a professora Tatiana da Silva Duarte, atual docente de disciplinas relacionadas à tecnologia de produção de hortaliças na Faculdade de Agronomia e orientadora técnica de diversos projetos de hortas comunitárias pela cidade.

“Certamente um modelo não vai servir para todas as hortas, principalmente falando em locais onde existe vulnerabilidade social. Muitas vezes, há condições para o uso daquela área, daquele solo, que não vai ser igual ao que vão fazer lá no centro, lá na Cidade Baixa. Até a questão de renda é diferente”

Tatiana da Silva Duarte

Para além dos limites de Porto Alegre, outro tipo de iniciativa que tem tido bons resultados na formação ambiental relacionada a hortas são os projetos de extensão dirigidos à capacitação de pessoas de baixa renda. É o caso do projeto Agricultura do Plano, desenvolvido a partir de parceria entre o Câmpus Litoral Norte (CLN) da UFRGS e a Prefeitura de Tramandaí.

Coordenado pelos professores Rejane Margarete Schaefer Kalsing e Ricardo de Sampaio Dagnino, ambos vinculados ao Departamento Interdisciplinar do CLN, a iniciativa beneficia pessoas em vulnerabilidade, por meio de cadastros sociais. O curso contempla conteúdos como agricultura urbana e periurbana, saúde, economia solidária, entre outros. Realizada desde 2019, essa iniciativa já contou com mais de 500 participantes.

“Me fez ver vida onde não via. Para mim, era só mais uma capina. Depois do curso, cuidava até para não machucar as minhocas. É gratificante plantar e ver crescer. Numa caixinha de leite, crio um alimento saudável. É incrível”, relata o trabalhador autônomo João Carlos Garcia dos Santos, 51 anos, aluno da turma de 2022 do curso e agricultor urbano em Tramandaí.

Refúgio e Cooperação

Em uma horta, todavia, se cultivam bem mais do que plantas. Sabe bem disso o “pessoal da Lomba”. Considerada um dos projetos históricos e referenciais nesse segmento, a Horta da Lomba do Pinheiro desenvolve atividades que transcendem o cultivo na terra. Localizada na Zona Leste da capital, nessa horta são realizadas capacitações, palestras, atividades culturais, entre outras iniciativas propícias a um ambiente em que o verde predomina.

“A horta tem um impacto muito positivo, não só na comunidade, mas em toda a região metropolitana e no estado. É uma horta-mãe que serve de inspiração a outras hortas, contribuindo com exemplo, com mudas, sementes, estudos e pesquisas. A gente costuma dizer que não é uma grande produção, mas sim uma escola”, conta Ana Carolina da Rosa, acadêmica do 6.º semestre de Licenciatura em Educação do Campo – Ciências da Natureza.

A longa convivência, entre lutas e conquistas, consolidou o local como referência e criou laços entre uma ampla e leal rede de colaboradores. “Tenho uma filha e uma neta, e elas trabalham ainda, mas, quando podem, nas férias, elas vêm e gostam muito. A gente sempre está ajudando e cooperando. Venho ajudar a fazer chá e doces. Não venho mais porque às vezes não dá, mas, quando posso, tô sempre aqui”, conta  Teresa Marlene de Oliveira Silva, 82 anos, dos quais 50 reside na Lomba do Pinheiro.

Tereza, Ana e Flávio na Horta da Lomba, localizada no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre (Foto: Ronaldo Botelho)

A identificação da horta como um espaço familiar também é destacada por seus frequentadores. “É a mãe natureza, uma experiência pra gente que ali chega. Fulano chegando, e tu conhece, e a gente virou uma família. A gente fazia almoço aqui, fazia só com coisas da horta”, conta Albertina Goulart Gold, outra moradora histórica do local, enquanto prepara o chá com ervas colhidas por ela na horta.

A visita que fiz para esse registro à Horta da Lomba coincidiu com uma homenagem ao professor Flávio Burg. Cedido há mais de 10 anos pelo município para a horta e próximo de se aposentar, ele foi agraciado com uma modesta celebração por históricos colaboradores do local. “Eu considero os ciclos da vida. Então, vim aqui pra cidade grande vai fazer 39 anos, e agora que fiz 60 tô com planos de morar no interior de Maquiné. Então o meu ciclo aqui eu vejo que passa completando”, reflete.    

Campo Multidisciplinar

Ainda que as hortas comunitárias não dependam necessariamente de estruturas institucionais ou formalidades disciplinares, a multidisciplinaridade de temas e de questões que suscitam tem despertado crescente atenção do mundo acadêmico.

“O que a gente precisa é o espaço de conversa, que não seja aquele espaço formal, que não seja aquela reunião acadêmica. Entrar num espaço que quem não é dali não se sente constrangido de falar. Quando tá frio, uma fogueira e uma conversa que é ao mesmo tempo de construção e de cura”, resume a professora Ingrid Bergman Inchausti de Barros, outra histórica e experiente participante desse projeto.  

Doutora em Agronomia pela Universidade de São Paulo e professora aposentada da UFRGS, onde lecionava na área de produção de hortaliças, Ingrid foi referência para grandes pesquisadores. Entre eles, o biólogo Valdely Ferreira Kinupp, considerado o “Papa das Pancs” (Plantas Alimentícias Não Convencionais), de quem foi orientadora da tese Plantas alimentícias não convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS.

No esteio dos estudos de veteranos como a professora Ingrid, as novas gerações prosseguem interessadas pelo tema das hortas. Pesquisa e extensão parecem confluir nesse território de cultivos e convivências em um âmbito multidisciplinar. É o que demonstram estudos como A gente cultiva a Terra e a terra cultiva a gente, desenvolvido como TCC pela então acadêmica de Psicologia Layla Nicoly Mattos Medeiros – ou Solar, como gosta de ser chamada.

“O meu trabalho foi basicamente falar sobre a minha experiência. Não tinha tanto um viés. A partir da minha presença aqui que eu fui construindo a pesquisa. – Foi a partir das coisas que vi aqui e aí o meu olhar assim para a horta. E ficou basicamente dividido entre três pontos: a horta como espaço de resistência, de cuidado e de refúgio”, explica a psicóloga.

“Foi um baita desvio do que a gente tem estudado dentro da Psicologia, algo que vai contra todo esse projeto de destruição capitalista”

Layla Nicoly Mattos Medeiros

A função das hortas como espaços funcionais para além da agricultura é confirmada pelo estudo “Agricultura Urbana e Periurbana no Município de Porto Alegre/RS – Segurança Alimentar e Nutricional e Possibilidades de Desenvolvimento”. Essa dissertação, defendida recentemente por Rafael Caetano de Lima e Silva, no Programa de Pós-graduação em Dinâmicas Regionais e Desenvolvimento – PGDREDES/UFRGS, analisou as práticas de agricultura urbana e periurbana em hortas de quatro bairros da capital (Jardim Leopoldina, Jardim do Salso, Lomba do Pinheiro e Restinga).

O estudo constatou que as hortas urbanas contribuíram para reduzir a insegurança alimentar e nutricional e, mais do que isso, que elas são originadas a partir da mobilização popular da comunidade, que tem para elas funções que vão além do alimento.                                                                                    

“Às vezes, uma vila não tem muitas opções, e a horta acaba sendo um pretexto para organizar outras articulações. Eu fiz no questionário uma pergunta sobre qual o principal motivo do pessoal para participar das hortas, e o que mais foi mencionado foi a socialização. Até me impressionei, porque achei que fosse mais a questão da própria alimentação”, relata o acadêmico. 

Mas ainda que existam produções importantes sobre a agricultura urbana pelo país, a agricultura em regiões metropolitanas carece de estudos integrados mais bem desenvolvidos. É o que pensa a professora Heloisa Soares de Moura Costa, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora em planejamento urbano e ambiental e ecologia política e segurança alimentar e nutricional na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), ela acredita que existe uma lacuna de estudos e pesquisas mais estruturados nessa área. Ela também considera mais amplo o potencial da universidade nessa área.

“Além das pesquisas, a universidade pode contribuir com ações de ensino e extensão, oferecendo assessoria às hortas, ou outras experiências de agricultura, e cursos ou outros processos formativos que atendam às demandas de cada contexto”

Heloisa Soares de Moura Costa

A pesquisadora também é coordenadora do ‘Auê! Grupo de Estudos em Agricultura Urbana’, que existe na UFMG desde 2013, por onde tem acompanhado as hortas comunitárias e outros espaços de produção de alimentos na RMBH. Um desses trabalhos foi o projeto das Unidades Produtivas da Prefeitura de Belo Horizonte, disponível no site do Auê!.                       

Um rápido diagnóstico do cenário das hortas comunitárias de Porto Alegre revela avanços admiráveis, mas também dificuldades – espaços, recursos, manutenção e relações interpessoais são algumas delas. Nada que a soma de forças por uma política pública integrada e permanente não possa superar nessa horta de anseios, sementes boas e solo fértil.

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