Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Felizberto Alberto Mango, doutorando em Políticas Públicas, relata as dificuldades que pesquisadores enfrentam para obter documentos que deveriam ser de livre acesso
*Por Felizberto Alberto Mango
*Ilustração: Mitti Mendonça
Como parte do cumprimento dos projetos de pesquisa de graduação e pós-graduação, alguns estudantes africanos matriculados nos diferentes programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) nas universidades federais brasileiras viajam para seus países de origem a fim de realizar a pesquisa de campo como parte importante para a conclusão das suas dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em vista disso, esses estudantes enfrentam vários problemas de diferentes naturezas, entre os quais mencionamos: as dificuldades de compra de passagem aérea do Brasil para seus países de origem e a dificuldade de inserção no campo, considerando que em algumas ocasiões esses estudantes têm a entrada no campo negada simplesmente porque os responsáveis das instituições políticas não dão acesso ao campo. As razões vamos desenvolver à frente.
No entanto, neste artigo em particular, objetiva-se abordar as experiências do seu autor durante o desenvolvimento de pesquisa de campo. A partir de uma perspectiva indutiva, espera-se analisar essas experiências em contraste com as experiências de outros colegas que também fizeram esse percurso de pesquisa de campo no país de origem.
No caso específico deste trabalho, o autor viajou para a Guiné-Bissau no início de janeiro de 2023, tendo feito a qualificação do projeto de doutorado em novembro de 2022.
Por outro lado, a realização da viagem ao país de origem não garante automaticamente que o estudante irá desenvolver a sua pesquisa de campo, pois já houve relatos de acadêmicos que não conseguiram fazê-la simplesmente porque os titulares dos órgãos públicos não concederam o acesso às instituições políticas.
De modo mais específico, tive que utilizar algumas estratégias que me permitisse a entrada no campo. Em especial, identificar a pessoa que trabalha na Assembleia, conversar com ela, então essa pessoa se dispôs a fazer a ponte para que eu pudesse ter os primeiros contatos com deputados e funcionários da instituição; só depois tive acesso às instalações da Assembleia Nacional Popular. De outra forma, a minha entrada no campo poderia ser mais difícil pelas razões que mencionei anteriormente.
O que se pode perceber até aqui é que as pessoas são mais fortes que a própria instituição. Em outras palavras, o acesso às instituições políticas para fins de pesquisa na Guiné-Bissau deveria ser livre, pois é um direito garantido na Constituição de República, mas o que se vê na prática é que alguns estudantes têm muitas dificuldades em ter acesso ao campo e, principalmente, aos documentos das instituições.
Um dos problemas encontrados no campo na Assembleia e também em outras instituições políticas da Guiné-Bissau é a ausência dos chefes de serviços, diretores de serviços, entre outras funções no local de serviço. Me parece que é norma os responsáveis das instituições não estarem nos seus locais de serviço, pois em muitas ocasiões fui a diferentes gabinetes das comissões especializadas, mas não encontrei os seus responsáveis. Esse fato é geral também em outras instituições públicas no país em que os “chefes”, para além de chegarem muito tarde ao serviço, costumam se ausentar dos seus postos de serviço, o que acaba dificultando o processo de coleta dos dados.
No entanto, o problema maior seria encontrar os documentos oficiais das instituições políticas na Guiné-Bissau, pois parece tabu que “pessoas de fora”, os outsiders, não devem ter esse acesso. Para conseguir acesso, o pesquisador é orientado a escrever cartas em que solicite os documentos, que deveriam ser públicos por lei. Em outros casos, alguns documentos são simplesmente boicotados pelos funcionários por considerarem-nos documentos “confidenciais”. Isso é o caso de alguns pareceres das comissões especializadas da Assembleia, que são responsáveis pela fiscalização política que o Congresso realiza sobre o governo na Guiné-Bissau. No entanto, alguns desses documentos não são liberados e, para serem, o Presidente da Assembleia precisa ser informado e ter conhecimento. Se concordar, o pesquisador poderá acessar esse documento, que, repito, deveria ser público.
Estes relatos demonstram como é difícil realizar a pesquisa de campo em África de forma geral e na Guiné-Bissau de forma mais particular.
Esta reflexão nos possibilita, enfim, pensar um pouco sobre a possibilidade de fazer ciência em África e vai justamente em consonância com algumas constatações feitas por alguns intelectuais africanos que apontam as dificuldades de várias naturezas para a realização de pesquisa em África. Entre essas, podemos citar a falta de abertura por parte dos titulares dos órgãos públicos, que vêm os pesquisadores como potenciais “ameaças”, porque podem trazer a público o que é “confidencial” e deveria ficar em sigilo profissional. Também a falta de um apoio financeiro que possibilite aos estudantes condições para a realização de pesquisa de campo da melhor forma possível.
Felizberto Alberto Mango é doutorando no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“As manifestações expressas neste veículo não representam obrigatoriamente o posicionamento da UFRGS como um todo.”