Publicado originalmente em Nós, Mulheres da Periferia por Amanda Stabile. Para acessar, clique aqui.
Isabel (nome fictício) descobriu aos quatro meses de gestação que sua filha tinha malformação fetal, mas aguardou meses sem respostas até ser informada de que a anomalia era incompatível com a vida e que era recomendado interromper a gestação
“Meu menino de cinco anos está ansioso com o nascimento da bebê. Alisa a minha barriga e diz que já está perto de nascer”, conta Isabel (nome fictício), mãe de três meninos. “Ainda não conversei com ele porque não sei como, nem o que dizer”, lamenta.
Ter uma menininha sempre foi algo muito sonhado durante os 35 anos de vida da auxiliar de portaria, mas também muito sofrido. “Já tive uma gestação de menina, mas ela nasceu antes do tempo e viveu só dez dias”, lembra.
No início de novembro de 2022, quando estava com quatro meses de sua última gestação, a moradora de Taboão da Serra (SP) insistiu com a equipe médica para realizar uma ultrassonografia. “Eles não queriam fazer porque achavam que era só questão de ver se era menino ou menina”, lembra. Mas sua preocupação, após já ter perdido uma filha, era saber se estava tudo certo com o desenvolvimento da criança.
Ela então compareceu ao Hospital Municipal de Taboão da Serra, acompanhada pela mãe e por um de seus meninos, para realizar o exame.
– Se der para ver o sexo, não precisa falar porque a gente vai fazer o chá de bebê – disse a avó para a médica.
– Não vou falar porque eu vou pedir um outro exame. Não está dando para ver porque o bebê está sentado e com outro exame vocês conseguem ver melhor – respondeu.
Isabel não perguntou mais nada, mas percebeu que a médica tinha descoberto algo que não comentou. “Quando nós saímos do hospital, abri o papel do exame e estava escrito sobre a possibilidade de uma microcefalia”, lembra.
A microcefalia é uma malformação congênita em que a cabeça e o cérebro do feto têm um tamanho menor do que o esperado. Mas não é uma condição que necessariamente impede a vida.
Diagnóstico: encefalocele
No mesmo dia, a gestante foi até o posto de saúde com o encaminhamento para um ultrassom morfológico, em que é possível avaliar aspectos físicos do feto e diagnosticar com mais precisão qualquer anomalia. O exame foi marcado para acontecer no Hospital Pirajussara, em Embu das Artes (SP), dali duas semanas.
Ao realizar o ultrassom, junto da alegria de descobrir que seria mãe de uma menina, Isabel recebeu a confirmação de que a pequena apresentava uma malformação que poderia representar microcefalia, encefalocele e provável narina única.
“A médica foi atenciosa e explicou que a microcefalia era causada pela encefalocele, que é uma ruptura no crânio onde o cérebro sai para fora. Estava tampando um pouco do olho dela, por isso, não havia formado um lado do rostinho”, explica Isabel. “No ultrassom, de um lado dá para ver o olhinho e parte da narina. A boca não foi visualizada, nem o outro lado do nariz e nem o olhinho”, conta.
Quando Isabel e sua família tiveram um diagnóstico, uma nuvem de dúvidas se formou. A criança teria alguma chance de vida? Se sobrevivesse, a menina teria alguma deficiência? Como seria sua vida? A partir deste momento, a mãe que já se perguntava quais mudanças precisaria fazer em sua vida para cuidar de um bebê com um suposto quadro de microcefalia, agora se questionava sobre a necessidade de interromper a gravidez.
Mais dois meses sem respostas
Por falta de vagas disponíveis para o atendimento, foram mais dois meses de agonia e questionamentos até que Isabel conseguisse passar na primeira consulta com o serviço especializado em Medicina Fetal, acompanhamento indicado pela última médica. Nesse período, além dos pré-natais feitos mensalmente, a gestante não recebeu nenhum outro suporte.
“A partir do momento que dão essa informação, eles deveriam ter um cuidado com a pessoa. Eu não tive nenhum atendimento com psicólogo, nem alguém para me ajudar, me dar uma força. O psicológico da gente fica realmente abalado com toda essa situação”,
lamenta Isabel
Apesar da gravidez ser de risco, ela também não recebeu licença do emprego. “Eu trabalho em portaria e a barriga está grande, então as pessoas passam felizes, dando parabéns e fazendo perguntas. E eu ali sem saber o que dizer. Esse processo de não saber o que vai acontecer é muito doloroso”.
Malformação fetal incompatível com a vida
Com quase sete meses de gestação, mais de dois meses após o início do processo, finalmente a consulta com o serviço especializado em Medicina Fetal aconteceu, no Hospital das Clínicas, em São Paulo. A recomendação dos médicos foi de que a gestação de Isabel fosse interrompida e um laudo foi emitido para a realização do procedimento com urgência, já que a malformação da criança era incompatível com a vida, ou seja, o feto nasceria morto.
No Brasil, a interrupção da gestação é descriminalizada apenas em três situações: em caso de gravidez fruto de estupro, de fetos anencéfalos ou situações em que há risco de vida para a mulher. Este último, porém, que é o caso de Isabel, é muito difícil de ser permitido. É o que aponta Nathália Diórgenes, Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora dos temas saúde da mulher, direitos sexuais e reprodutivos, saúde pública e gestão de políticas públicas.
“Mas o que é risco de vida para a mulher? É o médico que vai dizer, não tem um parâmetro. Geralmente consideram a gravidez de risco, pré-natal de risco, mas não permitem o aborto. Em 10 anos eu nunca acompanhei um aborto legal em situação de risco para a mulher”, alerta a pesquisadora.
No caso de Isabel, em que a interrupção da gravidez aconteceria por conta de inviabilização da vida do feto em razão da malformação, situação além das permitidas pelo Código Penal, a saga ainda precisou de mais um passo. Ela foi orientada a comparecer ao fórum de Taboão da Serra três semanas após esse último atendimento. Lá foi encaminhada para o setor criminal, pois precisaria de uma decisão judicial favorável ao procedimento. No final de janeiro, finalmente a interrupção aconteceu.
Um nome
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a interrupção da gravidez é considerada aborto quando realizada antes das 22 semanas de gestação ou quando o feto pesa menos de 500 gramas ou tem menos de 16,5 centímetros. A pesquisadora Nathália Diórgenes aponta que, quanto antes o procedimento for realizado, menor é a dor, tanto para o feto quanto para a gestante.
“O sistema nervoso central é o receptor das sensações. Então é preciso ter isso funcionando para que se possa sentir dor. Ele começa a ser formado a partir da 12ª semana de gestação, que é mais ou menos até esse momento que os países legalizaram o aborto. Por isso que a gente defende que o procedimento seja realizado o mais cedo possível”, explica.
“Se tivesse a possibilidade de interromper a gestação antes, eu teria feito”, afirma Isabel. “Não é questão de eu não querer a gestação. Eu quis. Mas eu também tenho que pensar no que seria melhor para a bebê”
Ela, inclusive, chegou a receber chamadas de grupos pró-vida tentando convencê-la a manter a gestação até o final. Em uma ligação, recebida após a notícia do seu processo correr pela vizinhança, uma mulher desconhecida disse saber o quão desafiador era o momento, mas que Isabel estaria “matando o bebê” caso prosseguisse. “Fiquei muito mal, porque ela não sabe o que eu sinto, não pode me julgar”.
Por causa da demora dos atendimentos, a interrupção de sua gestação aconteceu aos sete meses (30 semanas). Quando executado nesse período, o procedimento não é considerado um abortamento, mas um parto de uma criança natimorta. A família escolheu um nome para a filha, mas ainda não sabe se estará na certidão de óbito, pois ainda não recebeu o documento.
“Essa é uma situação de injustiça reprodutiva. É um desrespeito aos direitos reprodutivos desta mulher que, vale a pena reforçar , são direitos humanos”, alerta Nathália.
“É importante lembrar sempre que os úteros das mulheres não são caixões. As nossas vidas não podem ser vistas como depósito de sofrimento”,
conclui a pesquisadora
Posicionamentos
Procurada pela reportagem em dezembro de 2022, enquanto Isabel ainda aguardava a consulta do serviço especializado em Medicina Fetal, o Hospital Geral de Pirajussara se manifestou por meio de sua assessoria de imprensa.
“O Hospital Geral de Pirajussara informa que a paciente passou em consulta de avaliação pré-natal em 12 de dezembro de 2022. Foi diagnosticada com malformação fetal pelo exame de ultrassom, mas é preciso aprofundar os exames e isso será feito nos próximos dias.
Como não temos o serviço especializado de Medicina Fetal, ela foi encaminhada no mesmo dia, via CROSS, para o Hospital das Clínicas.
Esclarecemos que a paciente foi acolhida devidamente e que o agendamento não depende deste hospital e sim da disponibilidade da vaga via no Sistema CROSS (Central de regulação de oferta de serviços de saúde da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo)”.
Questionados sobre a forma como a paciente foi acolhida, já que ela apontou que gostaria de ter recebido algum acompanhamento psicológico ou afastamento do trabalho, mas nada disso foi feito, o hospital respondeu apenas que “a equipe médica explicou o tempo todo o que poderia estar acontecendo e a paciente sabe disso. Por isso foi encaminhada para a Cross a fim de realizar o exame”.
Já a Secretaria de Estado da Saúde (SES), contatada no mesmo período, informou por meio de nota que a paciente foi monitorada. Disse ainda que a Cross possui um sistema online que funciona 24 horas por dia e busca vaga disponível em serviços de saúde do SUS, preferencialmente na região de origem do paciente, com disponibilidade e capacidade para atender cada caso, priorizando os mais graves e urgentes. Seu papel não é criar leitos, mas auxiliar na identificação de uma vaga no hospital mais próximo e apto a cuidar do caso.