Iniciativas promovem ensino de cultura africana e afrobrasileira em escolas públicas

Educação | Professores buscam sua própria maneira de implementar a educação antirracista e destacam a necessidade de mudanças mais profundas no sistema educacional

*Foto: Flávio Dutra/JU – A professora Perla Santos desenvolve o projeto Nobreza Negra com turma da 5a. série da EMEF Lidovino Fanton, no bairro Restinga, em Porto Alegre

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional exige, desde 2003, que todas as escolas de educação básica no Brasil incluam nos seus currículos a história e a cultura africanas e afro-brasileiras. Em 2008, foi acrescentada a exigência do ensino da história e da cultura também dos povos originários. Mesmo tanto tempo depois das mudanças da legislação – que deveria ajudar a combater a intolerância religiosa e o racismo institucional –, a realidade ainda não condiz com as palavras no papel. Existe ainda grande resistência e preconceito de alguns praticantes de outras religiões em relação às de matriz africana, e as escolas têm dificuldade de atender à legislação, por falta de recursos orçamentários e profissionais capacitados para lidar, em sala de aula, com as questões relacionadas à história e à cultura africana, afro-brasileira e indígena.

Foi nesse cenário que a professora de Artes e doutoranda em Artes Cênicas pela UFRGS Ana Paula Reis foi designada para ministrar a disciplina de ensino religioso na escola em que lecionava como professora de artes para os alunos do Ensino Fundamental II. Com o intuito de combater o preconceito direcionado aos alunos praticantes de religiões de matriz africana e promover uma educação diversa na escola, a docente decidiu ensinar em suas aulas a história de todas as religiões praticadas por seus estudantes, buscando, dessa maneira, incentivar um debate seguro sobre as diferenças e semelhanças entre as diversas crenças. Mesmo com pouco apoio da equipe diretiva, preconceito dos colegas docentes e difícil recepção das famílias, Ana Paula manteve a temática presente em suas aulas e, dessa forma, conseguiu criar um ambiente respeitoso para que seus alunos aprendessem, se sentissem mais à vontade e até mesmo levassem para a sala de aula elementos de suas crenças para compartilhar com os colegas.

Estudioso do ensino das relações étnico-raciais, o professor do departamento de Astronomia da UFRGS Alan Alves Brito reitera que a dificuldade na implementação efetiva da legislação está na falta de material didático apropriado, formação adequada para os professores e financiamento. Apesar da formação em ciências da natureza, o professor decidiu se envolver mais com a temática social que faz parte do seu cotidiano desde a adolescência, pois, como ele mesmo diz, “não cheguei na universidade sozinho” – em alusão aos seus ancestrais e à sua negritude.

Como maneira de contornar os obstáculos no combate ao racismo na educação, o professor, em colaboração com outros colegas e estudantes da UFRGS, decidiu implementar o projeto Zumbi Dandara dos Palmares. A iniciativa consiste na valorização do ensino quilombola de qualidade em diversas escolas do Rio Grande do Sul por meio de variadas atividades, como pesquisas, debates, reuniões, intervenções, publicações de artigos, livros, documentários e até mesmo formações de professores no assunto.

Visibilidade e representatividade

Em Porto Alegre, no bairro Mário Quintana – visto por alguns como um dos mais violentos da cidade – a professora Letícia Gomes Farias não deixou de criar sua própria iniciativa na escola em que trabalha. Em 2016, observando no ambiente da escola a exclusão dos alunos praticantes de religiões de matriz africana durante as festas de final de ano, a docente decidiu buscar uma maneira de valorizar as suas crenças e experiências externas à escola com apresentações de música e dança afro. A partir daí surgiu o projeto Batucação, que, com o desejo crescente dos estudantes, ultrapassou as apresentações eventuais e passou a ter práticas regulares na escola.

Ela reitera que todas as atividades são realizadas com extrema responsabilidade e que o desejo surgiu de uma necessidade de criar um espaço de visibilidade para todos, pois, como afirma Letícia, o estado é laico, “o que significa a inexistência de religião nos espaços públicos ou a valorização de todas”.

Participantes do Projeto Batucação, que envolve dança e música com ritmos africanos, coordenados pelas professoras Leticia Farias e Gabriela Bins, na EMEF Deputado Victor Issler (Fotos: Flávio Dutra/JU)

Confira abaixo um pouco do Projeto Batucação, na EMEF Deputado Victor Issler, no bairro Mario Quintana, em Porto Alegre:

Ainda na periferia da capital gaúcha, a professora Perla Santos, ao buscar uma maneira de explicar a diáspora africana para os alunos do ensino fundamental e percebendo o crescente interesse dos estudantes em jogos de carta designados como “bafo”, decidiu unir a temática com uma atividade lúdica que mantivesse a atenção dos estudantes na sala de aula. Nesse momento, em 2019, surgiu o Bafo Afro, jogo de cartas com personagens da história africana e afro-brasileira. Encantados com as histórias do próprio povo e entretidos pelo jogo, os alunos da escola transformaram as novas cartas em uma febre e incentivaram a professora a desenvolver outros materiais, como capas de cadernos com princesas africanas, e a comercializar suas criações pelas redes sociais.

Educação antirracista precisa ser um processo coletivo

Apesar de todas as iniciativas individuais de professores da rede pública preocupados com a educação antirracista, a professora da UFRGS Gladis Kaercher alerta que deve ainda existir uma construção de processos mais coletivos, desde a administração das escolas até a formação especializada na temática. Com esse intuito, ela coordena o curso UniAfro, atualmente em sua 6.ª edição. A atividade de extensão busca ter um impacto prático na educação, com materiais didáticos próprios, mudanças no currículo e na gestão das escolas.

Ações como as promovidas por Gladis, Letícia, Perla, Alan e Ana Paula são pontuais, resultado de esforços do movimento negro em implementar efetivamente a legislação, e exigem políticas públicas de apoio para que resultem em transformações mais profundas e coletivas nos sistemas educacionais do Brasil. Para Gladis, na última década, a demanda da sociedade por mudança e superação do racismo institucionalizado tem se tornado cada vez mais urgente, o que a leva a acreditar que as próximas gerações serão capazes de realizar cada vez mais mudanças significativas nesse contexto.

Estudantes da 5.ª série da EMEF Lidovino Fanton, na Restinga, em Porto Alegre, desenvolvem estudos de Cultura Negra e Africanidades no projeto Realeza Negra. Entre as atividades, está o jogo Bafo Negro, com cartas que trazem dados e informações de personagens negros e negras importantes da história brasileira e mundial (Fotos: Flávio Dutra/JU)
A turma da prof.ª Perla Santos, que utiliza o jogo do Bafo Negro em sala: na linha 1, da esquerda para a direita, Luis, Jenifer, Bruna, Eduarda, Kauã e Taylor; na linha 2, João Victor, Emilly, Analucia, David, Yasmim e Yasmin; na linha 3, Gustavo, Evelyn, Kauã, Jamilly, Erik e Larissa; na linha 4, Pietro, Ryan, Antônio, Jamilly Amaral, Emanuele e Pietro (Fotos: Flávio Dutra/JU)

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