250 anos depois, a habitação adequada ainda não chegou a todos

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Mario Leal Lahorgue, professor do departamento de Geografia, avalia os números da moradia na capital e ressalta que o estado e a iniciativa privada têm falhado em resolver a questão

*Por: Mario Leal Lahorgue
*Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU 06 mai. 2017

Em primeiro lugar, não há nada de errado em comemorar os 250 anos de Porto Alegre. É o tipo de festejo que pode reforçar laços de pertencimento, um dos passos mais importantes na conexão das pessoas com o lugar em que vivem. Mas uma das maneiras pela qual os laços são reforçados são as condições das pessoas que habitam o lugar. Por isso a pergunta que deve ser feita é: todos os habitantes da cidade possuem condições adequadas de moradia?

Como uma das maiores metrópoles brasileiras, muita gente mora em Porto Alegre. Pela última contagem (Censo 2010), a cidade tinha uma população de 1.409.351 pessoas. A estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2021 é que a Capital tenha atingido uma população de 1.492.530 pessoas. Caso esse dado se confirme no próximo censo, vê-se um acréscimo de 83.179 pessoas nesse intervalo de onze anos. A correlação mais óbvia é: mais moradores, mais necessidade de moradias.

Qualquer pessoa que preste atenção em anúncios publicitários sabe que não faltam propagandas de lançamentos imobiliários. Isso pode ser comprovado com os números oficiais do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon): em 2021, o estoque de imóveis novos à venda foi de 6.686 unidades, sendo a grande maioria de imóveis residenciais (6.013 unidades). Sem apelar para cálculos matemáticos, é possível pensar: se o volume de lançamentos de imóveis novos, anualmente, é tão grande, como ainda falta moradia?

Um pouquinho mais de números: no Censo de 2010, foram contabilizados 56.024 domicílios em aglomerados subnormais, que é o nome técnico que o IBGE dá para favelas ou moradias em condições que apresentam algum grau de precariedade ou irregularidade. Por conta das preparações para a realização do próximo Censo, o Instituto tem uma estimativa mais atualizada para esses aglomerados: 61.729 domicílios (estimativa para 2019). Para finalizar os números: o Programa Minha Casa Minha Vida entregou, entre 2009 e 2020, 25.588 novos domicílios na cidade.

A primeira constatação, depois das informações acima, é que, se o número de moradores em favelas aumentou, então há uma séria falha nas políticas habitacionais implementadas no município. Logo precisamos, neste aniversário da cidade, avaliar por que a situação é essa.

A segunda constatação é que, ao contrário do que muitas vezes parece, o fato de apontar a falha da política habitacional não significa que a solução esteja na iniciativa privada. Por uma razão simples e empírica: a iniciativa privada, via mercado imobiliário, vem sistematicamente ofertando mais de 5.000 novos imóveis por ano desde 2010 – e com pico de 8.243 ofertas em 2012. Apesar do alto volume de unidades residenciais novas colocadas no mercado, o déficit habitacional não diminuiu! Antes que algum leitor atento comente: sim, avaliar as unidades existentes em aglomerados subnormais é apenas uma das formas de contabilizar déficit habitacional, mas, para nossos propósitos aqui, não precisamos detalhar cálculos e componentes do déficit.

Na verdade, a dinâmica mercantil produz paradoxos, e um deles também pode ser constatado por dados censitários: a quantidade de domicílios particulares não ocupados (vagos) nos últimos três censos tem sido sempre acima de 40.000 unidades (foi de 48.934 em 2010). Considerando os 574.831 domicílios contabilizados naquela ocasião, isso representa 8,51% do estoque de moradias da cidade.

Contradição em nível máximo: é possível pensarmos numa cidade sustentável e eficiente – qualquer cidade – em que falte moradia adequada para uns enquanto sobram imóveis vazios?

Curioso, não? A iniciativa privada não resolveu o problema da habitação e o Estado também não. É importante chamar atenção para isso porque o debate tem sido extremamente empobrecido desde a ascensão da ideologia neoliberal. O debate tem-se reduzido à questão Estado versus Mercado, como se fossem formas sociais antagônicas. Evidentemente, neste pequeno texto é impossível aprofundar a questão. Mas volto a dizer: precisamos olhar os dados. E os dados nos revelam que, 250 anos depois, a habitação é uma questão não resolvida na cidade – nem pela iniciativa privada, nem pelas políticas públicas implementadas.

É claro que não existem soluções simplistas, como “transplantar” os sem-teto para esses imóveis vazios. Cidades são organizações sociais extremamente complexas, e é essa complexidade que torna difícil resolver os problemas derivados dessa forma de ocupação do espaço. No entanto, as formas pelas quais ocupamos a cidade, construímos abrigo (moradia), locais de lazer e trabalho, entre outros, refletem a maneira como nos relacionamos socialmente.

A partir disso, vamos pegar um exemplo para entender por que Porto Alegre tem falhado para resolver a questão da moradia: uma das “obras da Copa” era a duplicação da Avenida Tronco. Como todos sabem, não ficou pronta para a Copa em 2014, e a promessa mais recente é ser entregue no fim de 2022. Para a obra ser realizada, foram necessárias 1.470 remoções. Somente agora, em 26 de fevereiro de 2022, a última família foi transferida para outro lugar. No início, houve promessas de reassentar a população que quisesse permanecer no bairro em empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, que seriam construídos em áreas demarcadas como Áreas Especiais de Interesse Social. A prefeitura abre licitações para empresas construírem os empreendimentos e… não aparecem interessados. A “solução” encontrada foi oferecer aluguel social e bônus moradia aos habitantes.

Ora, é a típica solução neoliberal: resolver problemas de forma individual e não coletiva. O resultado foi um atraso nas obras de praticamente uma década, pois resolver o problema individual de moradia de quase 1.500 famílias não é simples. Onde está a eficiência desse tipo de solução? O próprio parâmetro de economia, pretensamente “neutro”, já mostra a falta de eficiência da solução: além de se arrastar por muito mais tempo, os custos totais se multiplicaram. Isso mostra também que, como dito no início deste texto, a cidade sequer aproveitou quando havia recursos federais abundantes e disponíveis para a construção de moradias. Perto do déficit habitacional, poucas unidades foram contratadas e efetivamente entregues.

É importante comentar que apenas construir unidades habitacionais não resolve a questão como um todo. Isso porque habitar é mais que possuir um teto. É ter acesso a equipamentos de lazer, transporte, saúde e educação. Por isso a localização dos novos empreendimentos é tão importante e o entorno das moradias também.

A maneira como você vive influencia o sentimento de pertencimento. Quando você se sente pertencendo a algum lugar, você cuida desse lugar, porque você sente que também é seu. Então oferecer condições adequadas de moradia a todos produz consequências que as pessoas nem sempre percebem, mas que são verdadeiras: respeito de uns com os outros, menos lixo nas ruas, menos vandalismo, menos violência. Tudo isso também é influenciado por como os grupos sociais se sentem em relação à cidade. Então, queremos uma cidade que seja melhor para todos nós? Isso é retomar a cidade para os cidadãos. Esse é o único futuro possível.

Casas na Vila Kédi, na região dos bairros Três Figueiras e MontSerrat, em Porto Alegre. Ocupando o leito do que seria uma rua que desembocaria na Av. Nilo Peçanha, a comunidade é vizinha ao Country Club e tem esse nome porque alguns de seus moradores trabalham como auxiliares (“caddies”) dos jogadores de golfe (Flávio Dutra/Arquivo JU 06 mai. 2017)

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