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Viramos o século, viramos o milênio,
mas a sombra da guerra continua
a assombrar a humanidade! E as emissoras públicas….
Cem anos do 20 de abril de 1923 quando a Academia Brasileira de Ciências (ABC) reuniu seus sócios na sala de física da Escola Politécnica, no largo de São Francisco, para planejar a criação de um veículo de radiodifusão que possibilitasse a divulgação da ciência. Conduzindo a reunião estava o presidente e fundador da ABC, professor Henrique Morize. Empenhado no projeto, estava o homem-multidão, conforme Ruy Castro (Milanez, 2007), professor, médico legista, escritor, antropólogo, etnólogo e ensaísta brasileiro, que defendia a necessidade de um veículo que atravessasse distâncias e atingisse o maior número de pessoas: Edgard Roquette-Pinto conhecia bem as distâncias. Ele acompanhara expedições do Marechal Candido Rondon ao Brasil Central, quando este desbravava um Brasil desconhecido para instalar linhas do telégrafo.
Faço essa introdução como narradora para abrir a conversa imaginária com o grande inventor do século XX, que desbravou o Brasil na companhia do já citado marechal Rondon, de onde recolheu farto material como fotos e gravações de áudio, usando uma engenhoca desenvolvida por ele. Com sua formação de médico, antropólogo e como etnólogo fez estudos das etnias que encontrava no caminho, como os nambiquaras. Roquette entregou todo esse material ao Museu Histórico Nacional, na Quinta da Boa Vista, onde era professor concursado de Antropologia e Etnografia. O carioca, que nasceu no dia 25 de setembro de 1884, em Botafogo, Rio de Janeiro, completaria 139 anos, outra data a ser comemorada neste mesmo dia 25 de setembro de 2023, em que a Rádio MEC, sucedânea da sua Rádio Sociedade, promove o Prêmio Rádio MEC 100 anos, na Sala Cecília Meireles, na Lapa. Uma festa que dá sequência às comemorações desse centenário e que começou com uma solenidade no dia 20 de abril, no Teatro Nelson Rodrigues, que tive o prazer de assistir.
Fico imaginando agora, professor Roquette, todos vocês reunidos novamente para comemorar o centenário de uma de suas principais criações – consagrada pelo lema Pela cultura dos que vivem em nossa terra. Pelo progresso do Brasil – que resiste até hoje, a Rádio Sociedade, embrião da Rádio MEC. Confesso minha preferência pelo nome de batismo: Rádio Sociedade. Fazia mais jus ao que ela representava na época e ainda hoje se pretende, – apesar dos turbilhões provocados por alguns governos que ameaçam fechá-la – a primeira e sempre rádio pública brasileira, aquela que pertence ao “povo brasileiro”, como você exigiu ao doá-la para o então Ministério da Educação e Saúde, comandado pelo ministro Gustavo Capanema, em 1936.
Como narradora, adiante vou lembrar algumas situações vividas por sua rádio, conforme constatei em pesquisa para o livro Rádio MEC, herança de um sonho (Milanez, 2007). Desde nosso primeiro encontro quando comecei a pesquisar essa história, pelos idos 2005, ao me deparar com a forma como você e seus companheiros a criaram, percebi que sua rádio (vou tratá-la assim) foi a mais pública de todas as surgidas no decorrer dos anos, como iniciativa de um grupo de cientistas e intelectuais. E ela não estava sozinha. Um pouco antes, nascera em Londres a BBC, também uma brava resistente que foi ganhando companheiras ao longo do caminho, se transformou em um conglomerado, se mantendo referência no mundo como emissora realmente independente e com grande credibilidade. Vou dar uma pausa e deixar o relato com você, professor Roquette, para que conte sobre os primeiros momentos de sua primeira criação, a Rádio Sociedade. Antes, gostaria que você, vou tratá-lo assim, na terceira pessoa do singular, como você tratava os companheiros de trabalho, começasse pelo ambiente da época da criação de sua primogênita criatura, e lembro que sua primeira filha, a Beatriz, já acompanhava você nessas atividades e adiante passou a apresentar programas.
– Pois bem, amiga narradora (assim posso me referir a quem esmiuçou minha vida e conheceu minha filha Carmem Lúcia, a Milú, entre outros contemporâneos meus). Vivíamos um momento intenso na capital federal, com muitos eventos culturais, e a academia seguia no mesmo ritmo. Éramos inquietos e desejávamos mais, não bastava para nosso grupo de cientistas integrar a Academia Brasileira de Ciências (ABC), criada no mesmo ato que definiu a criação de um veículo de radiofusão que levasse não só nossos conhecimentos, mas o que surgia pelo mundo das Ciências. Já publicávamos em jornais, revistas, livros e realizávamos conferências abertas ao público. Mas isso era pouco para nosso grupo de idealistas e solidários em partilhar o conhecimento que adquiríamos em nossas trocas, congressos e viagens ao exterior. Tínhamos consciência das necessidades de um país de grandes extensões e dificuldades como o Brasil. O analfabetismo era alto e o ensino não alcançava a população que se espalhava pelo país, com 30.635.605 habitantes concentrados na região sudeste (IBGE, Brasil 500 anos). Criamos a rádio sem ingerência governamental política e comercial, financiada exclusivamente por nós, sócios da academia.
Licença, professor, para um complemento – uma emissora eminentemente pública, como defendem hoje estudiosos e alguns dirigentes que passaram pela sucessora Rádio MEC e de emissoras congêneres. Vocês, inclusive, redigiram um estatuto que afiançava isso. Sim, o artigo 3º do Estatuto garantia: “A Rádio Sociedade fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de pura educação popular, não se envolverá jamais em nenhum assunto profissional, industrial, comercial ou político”.
Eu, sua interlocutora-narradora, imagino agora seu desejo de saber “como estará hoje essa minha filha?”. Pois aqui respondo: continua resistindo, agora com um pouco mais de tranquilidade, depois de alguns turbilhões políticos como o impeachment de uma presidenta (Dilma Rousseff) em 2016, substituída pelo vice (Michel) Temer, período difícil para a Empresa Brasil de Comunicação[1], quando ocorreram demissões, como a do presidente da Empresa e outros diretores, e a extinção do Conselho Curador (MP 744/16)[2]. E nos últimos quatro anos – 2019-2022 –, mais retrocessos, destruições, abusos e censura. O mesmo processo que a Rádio MEC (filha da Sociedade) viveu lá atrás, nos 21 anos da Ditadura que assombrou o nosso país de 1964 a 1985. Assim tem sido o cotidiano das emissoras públicas no Brasil. A cada quatro anos, os profissionais que resistem ficam aflitos, em tensão e expectativa sobre o que acontecerá passada a eleição, conforme a orientação política do candidato eleito. Siga, por favor, você, professor.
– Cara pesquisadora, continue contando as aventuras da criação da rádio conforme seu garimpo, como ela continua, que vou gostar de ler e lembrar.
Então, sigo narrando o que garimpei em dois anos de pesquisa em arquivos da cidade, fotos e documentos do arquivo da rádio muitos do seu tempo, que também localizei no Arquivo morto da Penha, da então ACERP[3], que ficava em um pavilhão sem condições de preservação. Lá, recolhi arquivos que trouxe para a Rádio, com telegramas e determinações do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Getúlio Vargas), pelo seu valor histórico. Recolhi do abandono e apagamento. Esse material, entre outros, existiam graças à sua determinação de que a Rádio Sociedade, como estação transmissora, deveria contar com biblioteca, discoteca, entre outros equipamentos essenciais para preservar sua história. Com todos os solavancos sofridos ao longo dos anos, com trocas de governo e de órgão gestor, muita coisa ainda se mantinha em 2005, quando iniciei o trabalho. Uma parte desses arquivos consegui consultar graças a um projeto de restauro e higienização realizado numa parceria da Rádio MEC com a Fundação Oswaldo Cruz. Muitos deles eram cartas de ouvintes. Em um cofre muito antigo, na rádio, encontrei os estatutos da Rádio Sociedade, reproduzidos em foto no livro já citado. E por um gesto altruísta como o seu, documentos, assim como programas antigos, guardados no arquivo da sucedânea Rádio MEC, podem ser lidos e ouvidos no portal da Fiocruz e da EBC. Voltando a 1923, vale destacar que embora lançada em abril, só quatro meses depois, em 20 de agosto de 1923, o presidente da República, Arthur Bernardes, autorizou oficialmente as transmissões da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, para fins educativos – PR-1-A, primeiro, depois PRA-A, logo adiante PRA-2 e, mais tarde, Rádio MEC – AM 800 KHz e FM 98,8 MHz. A rádio passou a ser um ponto de encontro da intelectualidade nacional e estrangeira. Visitantes ilustres foram recebidos por Roquette-Pinto e sua equipe, como Albert Einstein, que deixou registrado suas impressões sobre aquele importante veículo. Lembro que, para divulgar a existência da estação, você lançou revistas. A primeira delas, que se chamou Radio – Revista de Divulgação Científica Geral,especialmente consagrada à radiocultura, lançada em outubro de 1923, durou até 1926. Era o órgão oficial da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Para você e seus companheiros, era fundamental “espalhar a importância da ciência como fator de prosperidade nacional” e essas revistas incluíam informações diversas sobre ciência, radiodifusão, como o significado da palavra brodcasting, estratégia para divulgar o novo veículo. Três anos depois, chegou a Electron, que se apresentava como uma Publicação de Radio Cultura distribuída aos sócios da Rádio Sociedade e mantida exclusivamente pelos assinantes e leitores. Tinha 16 páginas, era quinzenal, com tiragem que alcançava três mil exemplares. O conteúdo trazia a programação detalhada da Rádio Sociedade, já variada, resumo dos cursos e palestradas irradiados, informações sobre artistas e cantores, novas estações transmissoras e temas técnicos de radiotelefonia. Escrevo isso, professor, porque tive contato com alguns exemplares dessas duas revistas, então preservados no arquivo da Rádio e dois exemplares na Soarmec – Sociedade dos Amigos Ouvintes da Rádio MEC, entre outros materiais guardados cuidadosamente por voluntários ouvintes da emissora.
– Acho importante contar para você e seus leitores deste século XXI, e no centenário da primeira rádio brasileira, nossa preocupação com o que era veiculado. O conteúdo das aulas e a escolha dos professores era uma demonstração do nosso cuidado com a programação. Por exemplo, veiculávamos aulas de Português, Inglês, Francês, Física, Química, História do Brasil, e até um curso de Silvicultura. E todas as disciplinas eram ministradas por professores qualificados, vinculados a instituições consagradas.
Pois é, professor, além de tudo isso, sua rádio formou profissionais para a nova tecnologia, que chegava em clima de expectativa e euforia. Dois anos depois, em reunião realizada no dia 29 de abril de 1925, os integrantes da Academia Brasileira de Ciências confirmavam o caráter de divulgação científica da emissora.
– É verdade, e na ata registramos (abre aspas): “a grande obra de educação e de vulgarização científica que vem realizando essa instituição nascida no seio da academia” (fecha aspas). Nosso projeto teve êxito e, na comemoração do terceiro aniversário, o arquivo da emissora já possuía cerca de dez mil documentos.
Certamente, professor, alguns deles consultei para escrever o livro citado acima. E a programação era diversa, continha noticiários, suplemento musical e horário infantil. Entre os programas fixos, veiculavam o Jornal do Meio Dia, com notícias extraídas dos jornais da manhã e informações econômicas; Jornal da Tarde, transmitido das 17h às 18h15, com uma interrupção às 17h45 para o Quarto de hora infantil. Às 22h, mais notícias no Jornal da Noite, com informações recolhidas nos vespertinos.
– A cada noite, no espaço reservado à música, cantores acompanhavam as orquestras do Hotel Gloria e da Rádio Sociedade, que se alternavam nas programações. Assim, nossos ouvintes podiam ter contato com acontecimentos culturais até então restritos às salas de espetáculo. Cito a transmissão da ópera apresentada pela Companhia Lírica de Paschoal Segreto, encenada no Theatro João Caetano e irradiada na noite de 4 de maio de 1926.
O rádio, mestre Roquette, foi o grande canal de comunicação dos anos 1930, período de muitos conflitos políticos como o golpe de 1930, a revolta constitucionalista de 1932, o desbaratamento da tentativa de levante comunista de 1935, o Putsch integralista e a decretação do Estado Novo em 1937.
– Isso mesmo, e o rádio não ficou imune. Pouco antes da revolução constitucionalista, o presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei 20.047 que exigia o aumento de potência dos transmissores de todas as emissoras do país. As pressões impostas por esse decreto eram de tal ordem que para serem atendidas seria necessário transformar nosso “centro de ciências, letras e artes” em uma empresa comercial, exploradora de publicidade. Nossos estatutos – servir modestamente como instrumento de educação do povo brasileiro – não permitiam essa guinada. Assim, decidimos em assembleia cumprir com o Artigo 20 dos estatutos que determinava “em caso de dissolução da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a transferência de todos os seus bens ao governo”. Foi o que fizemos. Enviei uma carta ao ministro Gustavo Capanema, do Ministério da Educação e Saúde, consultando se o ministério teria interesse pela Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira emissora do Brasil, com todas as suas instalações, equipamentos, discoteca, arquivos, mobiliário. Ou seja, a estação transmissora operando em ondas médias e curtas, além de todos os profissionais já com 13 anos de experiência. E nossa exigência: a emissora deveria se manter fiel à sua missão educativa e cultural e independente, sem vínculos comerciais, políticos ou religiosos. O ministro Capanema respondeu dizendo que o presidente Getúlio Vargas aceitava e agradecia, mas propunha que a doação fosse feita ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Ao ler a carta, respondi que a doação só seria feita ao Ministério da Educação e Saúde, ao povo brasileiro, não ao governo.
Professor, você parecia adivinhar que lá adiante esse departamento se tornaria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de propaganda e censura do Estado Novo, dirigido por Lourival Pontes. O ministro entendeu e garantiu que a proposta estava aceita. E, assim, no dia 7 de setembro de 1936, a Rádio Sociedade mudou de nome e de “dono”, tornando-se a Rádio Ministério da Educação. Lá adiante, ficou conhecida como MEC AM. Importante lembrar que, nos sete anos que você permaneceu na direção depois da doação, enviava relatórios anuais ao ministro Capanema informando as atividades da emissora, como o de 1941. Nele, você relatava que a PRA-2 estivera no ar durante 2.559 horas e 40 minutos naquele ano 2.559 horas e 40 minutos. Destacava as 112 horas de transmissões externas realizadas em vários locais, além dos programas educativos e culturais em discos, um total de 441 – como Revista Musical da Semana, Os Grandes Intérpretes, Festivais, Recitais, Os mais belos concertos para piano e orquestra, Os grandes regentes, Óperas e Intercâmbio radiofônico.
– Predomínio da música de concerto. Era um balanço geral das atividades da emissora, que dirigi até 1943, mantendo a fidelidade aos propósitos de sua criação.
E, em 11 de março desse mesmo ano, você foi substituído na direção do Serviço de Radiodifusão Educativo (SRE), criado um ano depois da doação para operar a PRA-2, pelo professor Fernando Tude de Souza, homem também das letras que trabalhara com você e que era reconhecido publicamente. “Fernando Tude de Souza é, na atualidade, um dos mais positivos valores do broadcasting brasileiro, cujo renome ultrapassou nossas fronteiras”, publicou a Revista do Rádio, em 13 de maio de 1948, em reportagem especial sobre os 25 anos de implantação da primeira rádio brasileira (Castro in Milanez, 2007). Peço licença, professor Roquette, para reproduzir o que Tude de Souza escreveu em editorial do Boletim Informativo, publicação lançada por ele em 1956, pouco depois de você nos deixar, prematuramente, em 1954. Essa publicação era inspirada nas duas revistas criadas por você anos antes, Rádio e Electron:
…quando aqui cheguei, o saudoso Metre Roquette-Pinto entregou-me a responsabilidade imensa: continuar-lhe a obra extraordinária. Graças à compreensão dos Ministros com quem tive a honra de trabalhar (…) consegui com os magníficos companheiros que compõem o quadro do Serviço de Radiodifusão Educativa, manter intacto os ideais dos que criaram. Primeira emissora de rádio do Brasil. E ela se manteve até aqui, inteiramente dedicada à cultura, fazendo um rádio que representa um esforço honesto em prol da Educação … (Revista da Rádio Ministério da Educação e Cultural, 1956 – em Castro Ruy, Milanez 2007).
– O som da rádio já alcançava distâncias intercontinentais. Enquanto ouvintes de países distantes aprendiamm Português por meio dos nossos programas didáticos, aqui nos diversos estados, milhares de alunos acompanhavam atentamente as aulas desses mesmos programas, aperfeiçoando o próprio idioma e aprendendo outros cursos.
A Rádio Sociedade/MEC manteve o DNA de sua criação, mesmo com dirigentes despreparados como durante a ditadura, graças à equipe que resistia. E manteve também em seu staff de radioteatro ilustres atores e atrizes que ali começaram, entre eles, Fernanda Montenegro, que chegou como Arlete Pinheiro, seu nome de batismo, aos 15 anos, e ali fez curso de radialista e permaneceu durante 10 anos. Adotou o segundo, que se consolidou, pela diversidade de atuação: “era locutora como Arlete Pinheiro, e era radioatriz como Arlete Pinheiro. Quando comecei a adaptar … eu achei que era muito Arlete Pinheiro para cá, Arlete Pinheiro para lá, aí eu inventei esse nome para redigir.”, conforme depoimento ao Amigo Ouvinte, Publicação da Soarmec (Milanez, 2007). Ficava estranho se referir na produção, Arlete Pinheiro, apresentação da mesma, contou ela, em um de nossos encontros. E em outro texto redigido em maio de 2006 (Milanez, 2007), escreveu:
Eu fui à rádio em 1945. Tinha 15 anos e me inscrevi, corajosamente, porque sempre fui muito tímida. Era um curso para radialistas, que compreendia, que compreendia português, interpretação, declamação e noções de logopedia e, de acordo com o material que fossemos usando no trabalho, haveria toda uma assessoria de informação cultural a respeito dos temas sobre os quais iríamos trabalhar. Imagina isso hoje em dia, com todo esse aprendizado…A rádio tinha programação de grande caráter cultural. Líamos a grande literatura brasileira, os grandes documentos do Brasil. À parte, você tinha também, a melhor discoteca que se podia imaginar naquela ela época.
Esse depoimento da sua pupila que se transformou na grande dama do teatro, cinema e televisão, referência para toda a classe artística, é um dos melhores testemunhos para você se orgulhar de seu legado, que não ficou restrito a ela. Também integravam o quadro de radioatores, Paulo Autran, Cacilda Becker, Cleide Yacconis, Benedito Corsi, Ziembinski, Adolfo Celi, Sérgio Viotti, Magalhães Graça, entre tantos outros. A música de concerto, segundo Edino Krieger, maestro, músico e compositor, que produziu programas musicais, foi diretor musical e organizou a Orquestra Sinfônica Nacional, foi o carro-chefe da programação da Rádio MEC. Em texto que ele escreveu solidariamente para o livro que organizei, ele destaca seu legado, professor, o grande trabalho de seu sucessor Fernando Tude de Souza e René Cavé, “quando se tornou uma espécie de BBC brasileira, onde a programação, ao vivo ou em gravações, contemplava, além da música clássica, a literatura, o radioteatro, o ensino de idiomas e diversas disciplinas do Colégio do Ar, a poesia e até mesmo a educação física, com os programas matinais de rádio-ginástica.” Diante desses dois testemunhos, concordo com o maestro Krieger, por um período sua rádio foi nossa BBC, para orgulho de todos nós brasileiros e brasileiras. Sem esquecer os poetas que passaram por ela, como Carlos Drumond de Andrade, Cecília Meireles, Érico Veríssimo, Manuel Bandeira, Dinah Silveira de Queirós, Paulo Mendes Campos, Rubens Braga e Fernando Sabino, que escreviam para o programa Quadrante. O programa, apresentado por Paulo Autran, grande ator com voz privilegiada, ia ao ar diariamente às 8h da noite, com reprise no dia seguinte ao meio-dia. Um autor para cada dia da semana. Foi um sucesso que resultou em um livro que leva o mesmo nome da emissão, Quadrante, reunindo todos os poemas apresentados (tenho a satisfação de ter um exemplar que adquirimos no Rio nos anos 1980). Acho relevante destacar os grandes maestros que regeram as orquestras da rádio, dentre as quais a Orquestra Sinfônica Nacional e o Coral da rádio, como Francisco Mignone, Claudio Santoro, Carlos Eduardo Prates, Guerra Peixe, Isaac Karabtchewsky, Alceo Bocchino. Incluo também os conjuntos musicais, como o Quinteto de Sopro, o Quarteto Jacovino, a Orquestra Afro-brasileira, fundada pelo maestro Abigail Moura, o conjunto Os Boêmios, com Altamiro Carrilho, entre outros. A MEC AM recebia em seus estúdios músicos populares de vários gêneros, premiando seus ouvintes com um panorama da música popular brasileira, então restrita à MEC AM, quando a MEC FM ficou com as audições de música de concerto.
Acredito, professor, que fizemos um bom resumo da origem da primeira emissora de rádio do País, criada por você e seus companheiros. Nasceu para servir à educação. Pelo seu acervo e sua história, as Rádios MEC AM e FM seguiram sua luta mesmo com todos os revezes da política. Depois de sua saída, a emissora passou por duas dezenas de governos e um número duas vezes maior de diretores, civis ou militares. Alguns tentaram trair o acordo com você, outros conseguiram e fizeram o que nem Getúlio ousou: tirar a rádio do MEC, plantá-la junto da TVE Brasil (hoje TV Brasil) na Secretaria de Comunicação do governo (Secom). Os profissionais continuam resistindo. E neste ano em que se comemora os 100 anos da rádio pioneira e os 87 anos da MEC FM, inaugurada em 07/09/1936, vou repetir o que destaquei no alto: viramos o século, viramos o milênio, e a sombra da guerra continua a atormentar o mundo. Você vivenciou dois grandes momentos dolorosos, a primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, e a segunda, entre 1939 e 1945, enquanto ainda dirigia a Rádio Ministério da Educação. E permaneceu na direção até 1943, tendo sofrido com a censura do governo Vargas, como mostram os telegramas enviados pelo DIP, com proibições, por exemplo, de veicular música italiana e alemã. E nessa década, a inquietude continua a acompanhar as emissoras públicas, dependentes de recursos dos governos que muitas vezes insistem em se apossar das suas programações, como se fossem donos, quando estas deveriam ser veículos de Estado. Os defensores da comunicação pública autônoma e independente lutam pela preservação desses bens, inspirados pelo homem-multidão Edgard Roquette–Pinto. Sua história não terminou na primeira rádio, seguiu criando e se aventurando pelas ondas do rádio, da televisão e do cinema, sempre em prol da educação. Obrigada, professor!
REFERÊNCIA
MILANEZ, Liana (org). Rádio MEC – Herança de um sonho. Rio de Janeiro, ACERP, 2007.
Liana Milanez (Liana Maria Milanez Pereira)
Doutora em Ciências pelo PROLAM-USP; Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/ USP. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Rádio e Televisão Pública, Educativa e Cultural. Também atuou em jornais, revistas, rádio e agência de notícias, em RS, SP e RJ. Sua tese foi escolhida pela CPG do Programa de Pós Graduação em Integração da América Latina, da USP, para representar o PROLAM no concurso PRÊMIO TESE DESTAQUE USP – 2018. Integra o Grupo de Pesquisa Epistemologia do Diálogo Social, da USP, coordenado pela Profa. Dra. Cremilda Medina.
[1] Instituição gestora de um conglomerado – TV Brasil, Rádios MEC e Nacional, Agência Brasil, entre outros.
[2] Órgão colegiado, com 22 membros, com representantes da sociedade civil, que atuava na formulação de estratégias e análise da programação, execução financeira entre outras atribuições.
[3] Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto
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