Do diálogo de uma fog e uma Kaingang, a discussão da questão indígena

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Rosa Maria Castilhos Fernandes e Angelica Domingos, do PPG em Política Social e Serviço Social, defendem processos formativos mais democráticos que promovam a visibilidade dos povos originários

Esta obra é um encontro. Encontro da diferença e de uma escolha consciente. Da oralidade e da escrita. Da invisibilidade e do lugar de fala. Do privilégio epistêmico e da visibilidade de outras experiências de conhecimento.  Da curiosidade com a inquietação indagadora. De indígenas e não indígenas. Enfim, de aproximação de uma indígena Kaingang e uma professora não indígena branca (fóg), que, em território acadêmico, iniciam um diálogo que vai culminar no desejo de partilhar suas aprendizagens e de organizar esta obra. Fomos atraídas pelas nossas diferenças. A escuta é nosso guia. A oralidade indígena nos desafia. Ambas assistentes sociais, comprometidas com a construção de uma nova ordem social, de outro lugar para viver que não este imposto pela lógica do capital, da ganância e das opressões cotidianas que devastam a natureza e, portanto, a nós mesmos.

Assim iniciamos a obra Políticas Indigenistas: contribuições para afirmação e defesa dos direitos indígenas, lançada pela Editora da UFRGS em janeiro deste ano, que contou com a participação de 24 autores e autoras indígenas e não indígenas.  Fruto de algo que nos mobiliza: a necessária resistência neste tempo vivido de ataques que vêm demarcando a liberdade dos povos. E aqui nos referimos aos povos indígenas deste país. Não são poucas as informações que visualizamos na mídia, tanto nos meios de comunicação de massa ou alternativos, nos resultados das pesquisas realizadas por pesquisadores indígenas e não indígenas, quanto por meio das narrativas trazidas pelos/as estudantes indígenas da UFRGS e pelas suas lideranças sobre o anti-indigenismo vigente no cenário atual. 

As práticas de violações aos povos indígenas fazem parte da história brasileira, emergem das contradições do próprio Estado, da estrutura da sociedade, dos processos colonizadores, do esbulho, de uma historiografia tradicional que não deu atenção suficiente à escravização indígena, das tentativas de opressão e desorganização dos modos de ser, viver e conhecer da sociedade indígena, entre outras situações sócio-históricas. Mas o contrário também é verdadeiro: existem os movimentos, e as resistências são históricas, peculiares à sobrevivência e (re)existência desses povos! 

As transformações da sociedade brasileira (em especial de 2016 para cá) resultam na descaracterização de um conjunto de legislações protetivas, como a seguridade social e o direito originário ao território indígena. Além disso, os ataques constantes aos processos democráticos, o racismo estrutural, os cortes no orçamento público, o desmatamento e os incêndios de imensos territórios, o estímulo à especulação imobiliária, à mineração, à grilagem, o negacionismo da ciência e dos saberes populares e o acirramento da desigualdade social são algumas das múltiplas situações que vêm incidindo nas condições de vida da maioria da população brasileira. Dessa população fazem parte trabalhadores/as, povos originários, negros e negras, quilombolas, entre outros grupos invisibilizados historicamente, cujas condições objetivas e subjetivas de vida dificultam a visibilidade de suas produções e o reconhecimento de suas necessidades sociais como sujeitos políticos. Krenak, ao ser indagado “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”, falou: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa?”, conforme citou em sua obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo.

Então é sobre isto que precisamos tratar: a questão indígena. Já faz algum tempo que a entrada dos estudantes indígenas na educação superior tem provocado ou exigido revisões nas estruturas institucionais e nos processos pedagógicos de modo a transformar (quem sabe um dia) o tripé ensino, pesquisa e extensão em espaços de encontros epistêmicos, onde as recíprocas diferenças dos modos de ser, viver e conhecer sejam complementações e não motivos para exclusão e cancelamento dos saberes construídos e em construção. Aliás, procure saber: os conhecimentos indígenas têm muito a nos dizer, ou melhor, à sociedade como um todo. 

Além disto, é preciso reconhecer a existência das iniciativas que envolvem técnicos, docentes, discentes, pesquisadores e pesquisadoras que se encontram em diálogo permanente e comprometidos com a questão indígena na agenda acadêmica, pois como dizem os estudantes: “Universidade é território Indígena!”. Por isso, é preciso avançar, instituindo-se cada vez mais processos formativos democráticos, promovendo-se a visibilidade dos povos indígenas. Tal reconhecimento exige iniciativas que materializem essa afirmação nos aspectos tanto objetivos quanto subjetivos, que vão desde a ampliação de bolsas de pesquisa e de extensão para indígenas, moradia estudantil indígena, rodas de conversa interculturais, revisão de instrumentos pedagógicos, avaliativos e metodológicos, incentivando a oralidade e a escrita indígena, a atenção à saúde mental, entre outros. 

Também o papel da Universidade na formação de profissionais para apreensão da questão indígena merece nossa atenção, pois diante da possibilidade de trabalho no âmbito da esfera estatal e como agentes públicos se tornarão operacionalizadores de um conjunto de políticas indigenistas para a efetivação dos direitos indígenas – que ainda estão em desencontro no atendimento às necessidades socioculturais de vida dos coletivos indígenas. 

A história dos povos indígenas nas universidades já está sendo escrita como no exemplo da obra que citamos e, por mais ameaçadoras que sejam as tentativas de desmonte dos direitos indígenas, os retrocessos encontrarão resistência e luta indígena pela frente nesta e nas gerações que estão por vir. Não temos a pretensão de esgotar essa discussão; pelo contrário, desejamos colocar mais luz, indagando criticamente e de forma curiosa a realidade brasileira e, em especial, a vivida pelos povos indígenas. Em tempos de pandemia: esse é o nosso feito! Fica o convite para a leitura e socialização da obra Políticas Indigenistas: contribuições para afirmação e defesa dos direitos indígenas, disponível no site do CEGOV e no lume

Comunidades indígenas Mbia Guarani, da região de Viamão, localizadas nas proximidades de Itapuã, restringiram a saída dos seus componentes durante a pandemia, o que inviabilizou fontes de renda importantes, como a venda de artesanato. Na imagem de capa, desenhos nas paredes da escola na Aldeia Tekoa Pindó Mirim (Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU 20 jul. 2020)

*Foto de capa: Flávio Dutra/Arquivo JU 11 jul. 2020

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