Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Elstor Hanzen. Para acessar, clique aqui.
Ciência cidadã | Formato combina tecnologia, atuação de voluntários e trabalho de pesquisadores, possibilitando amplo mapeamento de informações em áreas extensas. Assim é possível integrar atuação leiga com pesquisa convencional para mapear distribuição geográfica de espécies, como o caso do ameaçado papagaio-de-peito-roxo
*Foto: Explicação durante o avistamento da baleia franca durante atividade organizada pelo Instituto Monitoramento Mirim Costeiro (IMMC), em Garopaba/SC (Cris Guimarães)
Como é viável, em meio a uma amostra de 47.240 espécies, mapear mais de mil aves ameaçadas de extinção em três países, envolvendo uma extensão de 2.449.757 km², ou seja, um território em que caberiam aproximadamente 10 estados do tamanho do RS, divididos em 3.701 municípios? Esse cenário se refere à pesquisa sobre o ameaçado papagaio-de-peito-roxo, com dados coletados entre 2008 e 2018 em municípios de Argentina, Brasil e Paraguai, cujas repostas estão detalhadas no artigo Integrating citizen-science and planned-survey data improves species distribution estimates, publicado em setembro de 2021 e assinado por dois pesquisadores do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS.
A abrangência do estudo e o expressivo volume de dados acessados só foi possível graças à combinação destes fatores: uso de plataformas como WikiAves, eBird, Xeno-Canto, atuação de voluntárias no registro e no lançamento de fotos nesses ambientes virtuais e disposição dos pesquisadores em considerar os dados produzidos por não cientistas como base da pesquisa. A prática é conhecida como ciência cidadã, movimento que vem crescendo desde a segunda metade da última década e tem a finalidade de integrar a atuação desse tripé, assim diluindo cada vez mais as fronteiras entre ciência e realidade cotidiana.
O que sustenta as plataformas e faz a ciência cidadã funcionar são milhares de “cidadãos cientistas” como Gabriel Sparrenberger, 35 anos, que tem perfil no WikiAves desde 2020 e, em junho de 2023, possuía mais de 600 fotos de quase 200 espécies diferentes. Em 12 de janeiro, fotografou um papagaio-de-peito-roxo em Canela. Natural de Gramado, ele decidiu largar a advocacia para se dedicar melhor a fotografar a natureza. Morando há dois anos em Garopaba/SC, Gabriel não se arrepende e vê vantagens nas mudanças.
“O ato de observar aves possui grandes benefícios, dentre os quais o contato com a natureza, o desenvolvimento da consciência de que é preciso conservar os ambientes naturais para preservação das espécies, desenvolvendo o turismo em locais preservados, gerando renda para quem ‘deixa a floresta em pé’”
Gabriel Sparrenberger
Outro membro da WikiAves é Raphael Kurz Clasen de Oliveira. “Na verdade, é muito bom saber que os nossos registros ficarão eternizados pela ciência. Se eu morrer, as fotos ficarão no banco de dados e a ciência se beneficiará desses dados gerados”, observa. Ele lembra que tudo começou em 2013, quando atuava na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), em Pelotas. “Como eu trabalhava na equoterapia – método terapêutico e educacional com o uso do cavalo -, estávamos sempre ao ar livre e, como um bom curioso, sempre ficava prestando atenção nas aves.”
Logo comprou uma câmera e começou a fotografar como voluntário. Hoje também é guia de birdwatching – observação de pássaros. “Recebo observadores de fora do estado para fotografarem espécies do Rio Grande do Sul”, acrescenta. No dia 23 de junho, o RS tinha 4.168 voluntários cadastrados na WikiAves e 689 espécies registradas na plataforma. Na mesma data, havia 238 fotos do papagaio-de-peito-roxo no estado, o maior número na cidade de São Francisco de Paula: 114 aves.
Panorama e desafios
No Brasil, mesmo que o interesse em ciência cidadã tenha crescido nos últimos anos, o uso da abordagem transdisciplinar de pesquisa ainda é pouco difundido, e a maioria das iniciativas está concentrada na área da biodiversidade e do meio ambiente, avalia a professora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vice-coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Inter e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução e uma das representantes da Rede Brasileira de Ciência Cidadã (RBCC), Blandina Felipe Viana. Segundo a professora, antes da pandemia, havia 16 projetos nessa área registrados na plataforma da SibBR.
“Atualmente, embora ainda esse número seja incipiente, quando comparado aos países com tradição na adoção dessa prática, houve certo crescimento, com 39 iniciativas nessa área registradas na plataforma Civis”
Blandina Viana
Ao todo, são mais de 90 projetos relacionados às áreas de saúde, alimentação, astronomia, monitoramento ambiental, biodiversidade, ciências sociais, educação, dentre outras, registrados nessa plataforma. Esse aumento no número de iniciativas coincide com a criação da RBCC, que aconteceu em março de 2021, durante o período pandêmico. Ainda foram lançadas duas chamadas específicas de apoio a projetos de Ciência cidadã, uma pelo CNPq e outra pela USP, em 2022.
Do ponto de vista político, a professora da UFBA diz ser importante destacar a necessidade de políticas públicas que incentivem e apoiem a ciência cidadã no Brasil, promovendo a participação da sociedade na produção de conhecimento e na tomada de decisões. Ela afirma que isso envolve: investimento em estratégias para estimular a formação de um novo perfil de voluntariado, angariando interesse pela ciência; apoio institucional para estabelecer parcerias continuadas entre cientistas e voluntários, e para manter o engajamento nos projetos; programas de capacitação de pesquisadores e voluntários para criação e desenvolvimento de iniciativas; inclusão de mecanismos de comunicação efetivos para divulgar os projetos e compartilhar os resultados das pesquisas realizadas em parceria com setores da sociedade, entre outros.
No que diz respeito aos aspectos técnicos, são fundamentais a qualidade e a confiabilidade dos dados coletados pela ciência cidadã. Isso inclui a implementação de protocolos robustos de coleta de dados, o estabelecimento de mecanismos de validação e verificação dos dados coletados pelos voluntários e a adoção de práticas de compartilhamento aberto de dados, para garantir a transparência e a reprodutibilidade da pesquisa, além dos aspectos éticos relacionados ao uso e à aplicação de dados coletados pelos voluntários. “A RBCC está ciente desses desafios e vem atuando de forma sistêmica para superá-los. A Rede tem exercido um papel muito importante como catalisadora dos esforços, reunindo ideias e experiências para fazer avançar a ciência cidadã no Brasil”, afirma.
Mais habilidade analítica e menos controle
A pesquisa convencional permite maior planejamento e experimentação, enquanto a ciência cidadã requer habilidade analítica, explica o professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS Gonçalo Ferraz. Ele orientou o trabalho de investigação sobre o papagaio-de-peito-roxo, realizado pela então doutoranda Viviane Zulian, ambos autores do artigo científico internacional na Diversity and Distributions.
Segundo Ferraz, um dos desafios da ciência cidadã é que ela precisa abrir mão do planejamento, ou pelo menos ser mais flexível quanto a esse aspecto, uma vez que é muito mais aberta do que a ciência tradicional. Para ele, a análise de observações acumuladas pode ser uma solução para a limitação de planejamento.
“São transformações que a tecnologia permite, e as plataformas têm capacidade de acessar grande quantidade de informações em cenários imprevisíveis, integrando a base de dados com segurança e possibilitando análises”
Gonçalo Ferraz
Viviane iniciou o doutorado em 2017. Um dos principais trabalhos foi compilar dados sobre a distribuição do papagaio em plataformas de ciência cidadã (WikiAves, eBird, Xeno-Canto). Elas são de uso gratuito, e os registros ficam armazenados em banco de dados públicos. “Embora o trabalho realizado por diversos pesquisadores seja essencial para a conservação da espécie, precisamos destacar a importância dos dados coletados nas plataformas de ciência cidadã para o meu trabalho de doutorado: do total de 1.007 registros do papagaio-de-peito-roxo para toda a área de distribuição da espécie entre 2008 e 2018, mais da metade (596) teve origem nas plataformas de ciência cidadã”, conta.
Conforme a pesquisadora, o aumento significativo na cobertura espacial e no número de registros só foi possível com o uso desses dados, sendo essencial para se obter um mapeamento acurado de distribuição da espécie.
O diretor do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), Tiago Braga, ressalta que há, além das áreas de meio ambiente e biologia, outros importantes projetos emergentes na utilização da ciência cidadã, apesar da carência de uma política governamental no suporte financeiro e estrutural para essa prática. Ele cita como exemplos o mapeamento de redes sociais, a criação de linguagens generativas para inteligência artificial e o reconhecimento de asteroides e objetos por meio da análise de imagens.
Braga destaca ainda que no Brasil, na maioria das vezes, a ciência cidadã se baseia em software livre construído com o apoio de entusiastas de determinadas temáticas. “Desde o ano passado, as iniciativas de ciência cidadã passaram a contar com a plataforma Civis, desenvolvida pelo IBICT, que mapeia iniciativas, tecnologias, capacitações, instituições e usuários ligados à temática de ciência cidadã.” Além disso, há alguns anos foi criada a RBCC, que se estabeleceu como uma rede agregadora dessas iniciativas para discutir caminhos e perspectivas para a aplicação da ciência cidadã no país.
A ciência cidadã, em muitos casos, segue os mesmos preceitos da ciência tradicional, ou seja, prima pelo estabelecimento de metodologias sólidas, pela reprodutibilidade da pesquisa e pela verificação dos resultados a partir de critérios rígidos, lembra o diretor do IBICT. Além disso, “ela também incorpora aspectos sociais que possuem um apelo significativo, ainda mais se considerarmos este momento em que parece haver um distanciamento das pessoas com o fazer e viver a ciência, tornando a sociedade mais próxima da ciência e vice-versa”, compara.
A contrapartida
Para o diretor do IBICT, um importante apelo da ciência cidadã é fazer com que as pessoas percebam o impacto dos projetos em sua vida diária, entendam a ciência como parte do seu viver. Por isso mesmo, o processo de convencimento dos sujeitos, em geral orgânico, ocorre a partir de um interesse pessoal que está alinhado ao interesse de diversas outras pessoas e, por conseguinte, passa a ser um interesse coletivo.
Foi o que aconteceu com Raphael. Segundo ele, a observação de aves muda vidas, e ser um “cientista cidadão” traz satisfação. “Não apenas para nós, mas para o futuro do nosso estado e país. Os dados gerados pelos observadores fazem com que conheçamos as áreas de ocorrência de espécies ameaçadas e, até mesmo, se consegue descobrir a ocorrência de certas espécies em regiões até então desconhecidas”, aponta. Já Gabriel acrescenta ser uma forma de contemplar a natureza e estar em contato com ela. “Além disso, também divulgo bastante o meu trabalho pelo Instagram, que tem um alcance bem grande, e assim posso levar a beleza natural para mais pessoas”, salienta.
Para o professor da UFRGS, outra lógica que motiva as pessoas a se envolverem em tais iniciativas é a mesma razão pela qual alguém produz e posta conteúdos em redes sociais. “Voluntários são motivados pela satisfação de contribuir para iniciativas coletivas, pelo reconhecimento pessoal e social”, enfatiza Ferraz. Ele ainda ressalta que a ciência cidadã não é baseada em retorno financeiro para voluntários ou plataformas.
Fora a falta de políticas públicas voltadas para o fomento à ciência cidadã, não há aspectos que possam ser considerados negativos nesse tipo de ciência, afirma o diretor do IBICT. Já pelo lado positivo, é possível citar vários pontos, tais como a capilaridade na execução de projetos, a rapidez na realização de coletas e análises e a ampliação das possibilidades de realização de pesquisas, entre outros.
“Talvez o aspecto mais positivo seja o envolvimento da sociedade no processo de se fazer e viver a ciência, de forma que ela seja impactada diretamente e entenda a importância do fazer científico para evoluirmos enquanto sociedade”
Tiago Braga
Formação mirim para a ciência cidadã
Seja na terra ou no mar, no país ou fora, a prática da ciência cidadã tem potencial e se fortalece quando integrada à educação desde cedo. Ao envolver crianças no monitoramento do litoral em que vivem, um grupo de pesquisadores iniciou em 2012 o programa do Instituto Monitoramento Mirim Costeiro (IMMC) em Garopaba/SC. A oceanógrafa e fundadora do instituto, Caroline Schio, explica que a iniciativa possui um método científico pioneiro para crianças de 9 a 11 anos pesquisarem e monitorarem as praias da costa oceânica. “Através da abordagem da ciência cidadã, buscamos proporcionar às crianças experiências científicas de aprendizagem para que absorvam, de forma prática e colaborativa, sobre o ambiente marinho-costeiro onde vivem, de modo que se sintam pesquisadoras, monitoras e ‘guardiãs mirins do oceano’”.
Cada escola monitora a praia do seu bairro, realizando duas saídas de campo durante o ano letivo. Além de coletar os dados ambientais durante o monitoramento das praias, os alunos analisam posteriormente os resultados, produzem gráficos, tabelas, textos e trabalhos interdisciplinares com os professores ao longo do ano letivo. Esses dados são publicados em placas educativas nas praias monitoradas pelas escolas, uma forma de comunicar e sensibilizar a comunidade e os turistas para a preservação da zona costeira. Caroline ressalta que as informações também são armazenadas em um banco de dados, o qual será transformado em uma plataforma virtual interativa e de acesso público no segundo semestre deste ano.
“Independentemente de serem projetos complexos ou muito simples, o mais importante é que sejam atrativos, com potencial de engajar o maior número possível de cidadãos e que envolvam problemas do contexto local a serem investigados, a fim de se buscarem soluções colaborativas e melhorias para as comunidades”
Caroline Schio
Assim, com educação de crianças, a ciência cidadã se torna mais abrangente e com uma formação básica. Segundo a oceanógrafa, o potencial de maior impacto nesse tipo de pesquisa se dá pelos próprios cidadãos que se tornam coparticipantes da investigação, além de agentes replicadores do conhecimento e de mudança em suas comunidades.
Essa interação e esse engajamento com moradores do entorno dos locais de pesquisa acabaram sendo fundamentais na investigação sobre o papagaio-de-peito-roxo, ressalta a pesquisadora e doutora Viviane Zulian. “Criamos um canal de comunicação com os moradores pelo WhatsApp, no qual os moradores podem enviar registros dos papagaios, fotos e vídeos. Não é possível pensar em conservação da biodiversidade sem integrar e sensibilizar moradores para a importância da conservação de espécies”, refere. Além disso, o uso de dados coletados por “cidadãos cientistas” é uma forma de valorizar e incluir esse conhecimento em pesquisas científicas, sendo a formação um passo para consolidar a ciência cidadã com qualidade, garantem os pesquisadores.
“Gostaria de destacar o fato de que o papel da Ciência Cidadã vai muito além de contribuir para ampliar a base de dados de conhecimentos sobre determinado campo da ciência”, ressalta a pesquisadora da UFBA. Para ela, há diversos estudos que mostram sua importância na construção da cidadania científica, no letramento científico e no desenvolvimento do pensamento crítico – criando pessoas resistentes às pseudociências, capazes de compreender a complexidade dos problemas do mundo real –, na formulação de políticas públicas, na tomada de decisão, além de favorecer a participação de cidadãos na gestão de recursos naturais e na proteção ambiental.