Voluntários e profissionais levam recreação a adultos e crianças acolhidos no Câmpus Olímpico

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Guilherme Freling e Alexandre Briozo Gomes Filho. Para acessar, clique aqui.

Saúde mental | Promovidas pelo grupo Movimenta Esefid e Departamento de Difusão Cultural da UFRGS, atividades físicas, sessões de cinema e brinquedoteca proporcionam momentos de escape e de elaboração da realidade

*Foto: Guilherme Freling/JU

Enquanto um grupo de crianças pulava cordas, no pátio da Esefid, outro brincava com bolas. Algumas meninas dançavam “Maria Mariah você não sai da minha cabeça”. Uma senhora jogava canastra e reclamava dos três meninos em volta assistindo. Em uma quadra, mais distante, outras crianças faziam atividades de educação física. Uma menina usava uma luva de borracha para brincar de limpar quem estivesse na volta.

Embora pudesse lembrar o pátio de uma escola, a cena da última quarta-feira, 22, era um dos momentos de lazer promovidos diariamente pelos voluntários do “Movimenta Esefid”. Desde que a enchente deixou milhares de pessoas desabrigadas no Estado, o grupo de alunos da UFRGS promove atividades de recreação e movimentação para os abrigados no Câmpus Olímpico da universidade. Hoje, a Esefid abriga cerca de 500 pessoas, das quais 170 são crianças. A maioria vem dos bairros Arquipélago, Humaitá, Sarandi e Vila Farrapos.

A iniciativa do projeto foi de estudantes do câmpus, que perceberam a demanda por recreação dos abrigados. Luisa Garcia, estudante de Fisioterapia, é uma das idealizadoras. No dia 04 de maio, quando os primeiros abrigados chegaram, ela foi uma das primeiras voluntárias do local. Passou o dia trabalhando onde precisasse. Junto com o namorado, Henrique, estudante de Educação Física na UFRGS, pensaram em propor atividades de recreação para as crianças. 

“A gente foi embora pensando nesse monte de pessoas no nosso câmpus, sem ter nenhuma atividade”, lembra ela. “As pessoas estavam em um momento horrível, né? Então a gente pensou: e se a gente fizer alguma coisa, tipo uma recreação com as crianças?”

Sugeriu, então, à coordenação do abrigo e recebeu sinal verde. Logo, organizou o grupo de WhatsApp e um formulário para inscrição dos voluntários. No dia 06, já iniciaram as atividades: uma hora no turno da manhã e uma à tarde. Já na primeira semana, o grupo ganhou o acompanhamento de professores dos cursos de Educação Física, Fisioterapia e Dança. 

A professora do curso de Educação Física Roseli Belmonte Machado é uma das coordenadoras do grupo. Para ela, a ação do Movimenta é fundamental para a saúde física e mental das crianças, porque fornece uma rotina de convivência e movimentação. “Essas crianças não estão na convivência do espaço escolar e é a escola que vai trazer o coletivo, o estar com outro, a regra, a socialização. E aqui [nas atividades do Movimenta] eles têm isso”, explica ela. 

O que começou como um projeto para atender às crianças ganhou outra dimensão com a permanência da situação de calamidade. Hoje, o Movimenta é o responsável por toda recreação do abrigo. Mesmo as atividades propostas por voluntários externos, como sessões de cinema, são mediadas pelo grupo. Para os adultos, o Movimenta organiza atividades esportivas, de yoga, relaxamento, alongamento e ginástica. Porém, a adesão ainda é tímida, relata Roseli. Quem se engaja mesmo são as crianças. 

“Domingo, por exemplo, o Movimenta não funciona, até para ter uma rotina e eles poderem ficar mais com a família. Mas eles já sentem muita falta, a família vem conversar conosco e perguntar por que não teve”, conta ela.

Como todas as atividades do câmpus neste período, a professora explica que a proposta é fazer um convite aos interessados. “A gente também não quer ser invasivo, dizer que todo mundo vai fazer tal coisa. É um convite. A pessoa que está se sentindo disponível naquele momento vai, assiste, participa”.

Atendimento psicopedagógico

Em paralelo às atividades do Movimenta, uma equipe de profissionais da psicologia, enfermagem e pedagogia organizaram a “Sala do Brincar”. O ambiente é frequentado principalmente por crianças entre três e oito anos.

Renata Sperrhake é pedagoga, professora da Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS e integrante do projeto de extensão Quem Quer Brincar. Ela explica que, para as crianças, as brincadeiras e os desenhos são tanto um momento para escapar da realidade quanto uma oportunidade para compreender essa mesma realidade. “É importante porque ela, através da brincadeira, vai se construir como sujeito e vai poder significar, dar sentido às experiências que ela teve”, destaca. 

“A gente consegue interagir com as crianças nessa situação [de calamidade] dentro de um contexto que é do faz-de-conta, que é do lúdico, e ali a criança vai significando, vai dando sentido para suas próprias experiências e para si mesmo”

Renata Sperrhake

A professora da Faculdade de Psicologia da UFRGS Milena da Rosa Silva lembra da importância do preparo dos voluntários e profissionais para lidar com os abrigados. Ela menciona as orientações sobre os Primeiros Cuidados Psicológicos, uma série de procedimentos e recomendações elaborados pela Organização Mundial da Saúde para lidar com vítimas de crises intensas, sejam adultos ou crianças. Alguns desses cuidados são:

Respeitar o direito das pessoas de decidirem por si mesmas, inclusive sobre quererem (ou não) ajuda;

Ajudar as pessoas a suprirem suas necessidades básicas, como alimentação, água e informação;

Escutar as pessoas, sem pressioná-las a falar sobre sentimentos e reações que tiveram em relação a um evento;

Confortar as pessoas e ajudá-las a se sentirem calmas, sem fingir que tudo está bem e que as dificuldades passarão logo;

Ser honesto e confiável, sem fazer falsas promessas ou fornecer informações incorretas;

Ajudar as pessoas na busca de informações, seguindo instruções de autoridades competentes e sabendo quais respostas de emergência estão sendo organizadas e quais recursos estão disponíveis para ajudar as pessoas, caso haja;

Adequar a comunicação às necessidades da pessoa – crianças, por exemplo, usam brincadeiras e desenhos para se expressar e apreender.

Fonte: Organização Mundial da Saúde

Desde que o abrigo foi aberto, Milena tem trabalhado com a equipe de profissionais da psicologia e da assistência social. Ela destaca que a interação com as crianças é especialmente delicada. “É uma questão das possibilidades de compreensão das crianças, que tem a ver com a faixa etária e com questões do desenvolvimento.”

“Se pros adultos já é difícil, porque é uma coisa que ninguém de nós nunca viveu, para as crianças isso pode ser ainda mais angustiante por elas não terem, às vezes, a mínima possibilidade de dar um contorno naquilo”, esclarece. Por isso, é importante que os profissionais e voluntários estejam dispostos a compreender o que as crianças estão passando. 

“Muitas dessas crianças já vinham de contextos de grandes ou vulnerabilidades, e tudo isso tá aqui numa grande panela de pressão”, lembra a psicóloga. Dessa forma, a abordagem com relação à enchente precisa ser feita com sensibilidade, respeitando os tempos e demandas dos pequenos.

“Se elas trouxerem [o assunto da enchente], a gente conversa. Tem coisas que a gente vai precisar explicar, mas sempre respeitando o que a criança traz. Eu não vou provocar, eu não vou perguntar, eu não vou fazer uma coisa propondo esse tema”

Milena da Rosa Silva
Lidando com as emoções

Na quarta-feira, 22, quando a reportagem acompanhou o trabalho do Movimenta, Diego* e Juliana estavam de aniversário. Completavam 9 e 11 anos. Ganharam um parabéns gaudério, cantado pelo Guri de Uruguaiana e balões. À reportagem, Marcelo contou que seu estilo de músicas favorito era k-pop. Ketlin, que brincava com a luva cirúrgica, uma hora cansou. Quando pediu para transformar a luva em balão, estava furada. Ana confidenciou que tem uma voluntária favorita, mas a reportagem concordou em não revelar. “Ela me deixa mexer no celular dela”, revela a menina. Henrique não gostou que Junior tenha pegado a bola e quis brigar.

São pequenos detalhes da vida de indivíduos que agora precisam conviver em uma nova rotina. Junto com as casas, as águas inundaram cotidianos, amizades e até memórias. Há três semanas essas crianças precisam reaprender a conviver com pessoas e realidades diferentes.

Nessa situação, é normal que surjam conflitos ou casos de violência. Milena explica que essas são formas da criança lidar com seus sentimentos como tristeza, frustração e insegurança diante do mundo. “Nem toda criança que está triste fica no cantinho”, destaca ela. As expressões mais comuns que os profissionais observaram nas crianças envolvem medo da chuva, agitação, brigas, xixi na cama e não conseguir fazer cocô. “As crianças vão manifestar suas dificuldades de várias formas e a gente precisa ter esse olhar cuidadoso [na hora de lidar com elas]”, orienta.

Os adultos têm mais mecanismos para compreender a situação traumática por que estão passando. Mesmo assim, ficam angustiados, tristes, irritados e vão externar esses sentimentos de diversas formas. Nas crianças isso é ainda mais intenso, pela dificuldade de processar o que aconteceu. Por isso, atividades como as propostas pelo Movimenta e as da Sala do Brincar são tão importantes. 

Por meio de desenhos e brincadeiras, crianças conseguem criança elaborar e ressignificar suas experiências (Fotos: Guilherme Freling/JU)
Sala Redenção oferece sessão de cinema

Pela manhã, o mágico Lucas fez bolinhas sumirem em um lugar e aparecerem em outro. Escapou do cadeado de polegares que ninguém mais conseguiria e transformou um lenço vermelho em varinha mágica. “Ooooh!’, disseram as crianças, boquiabertas. O show do Guri de Uruguaiana divertiu mais os pais, que entendiam as piadas, mas fez todo mundo cantar o Canto Alegretense, Querência Amada e o Hino do Rio Grande do Sul.

À noite, a Geodésia ganhou uma nova vigilante: Mariana, de oito anos. De pé no início da passarela que leva até a estrutura, Mariana “cuidava quem entrava e quem saía”, como fez questão de observar, da primeira sessão de cinema oferecida pela Sala Redenção e organizada pelo Departamento de Difusão Cultural (DDC) da UFRGS. Com o uso dos equipamentos do Centro Cultural, o filme O Palhaço (2011), de Selton Mello, foi a atração da noite.

Lidar com o desafio de manter cerca de 20 crianças na faixa etária dos oito anos sentadas durante uma hora e meia não é tarefa fácil. Além da equipe responsável pela organização da atividade, voluntários estiveram presentes para auxiliar na atenção e no cuidado com as crianças, em especial aquelas que não resistiam à tentação de projetar na tela um cavalo ou uma borboleta mimetizados com as mãos na frente do projetor. 

A produtora cultural e diretora do DDC e do Centro Cultural Lígia Petrucci conta que o intuito inicial era fazer uma sessão para a família. “Mas são as crianças que estão participando das atividades, os adultos ainda estão com muitas outras coisas para pensar”, relata. Se por um lado a preocupação com o que foi perdido e com o que o futuro resguarda ocupa a cabeça de mães e pais abrigados, por outro a insegurança e a novidade do desconhecido ainda assusta a mente dos pequenos. 

Foi difícil para Lucas, de oito anos, se manter sentado durante a exibição do filme. Como outras crianças, circular pelo tablado e interagir com os voluntários e demais colegas era mais interessante do que acompanhar as desventuras do circo itinerante de Benjamin e Valdemar. “Eu preferia estar assistindo Lucas no Formigueiro”, ele conta, se referindo ao longa de animação norte-americano de 2006, enquanto faz um truque de mágica com os dedos. Quando, com todo o tato possível, foi indagado sobre a quantidade de dias que ele e sua família estavam abrigados no câmpus, deu meia volta e saiu zanzando passarela afora.

“Vamos fazer uma correção de rumos e na próxima quarta já vamos trazer uma animação. E vamos ter pipoca!”, exclama Lígia. Além da exibição de filmes prevista para acontecer às quartas, ela detalha que a próxima iniciativa é levar para a Geodésia o Cenas Mínimas, projeto artístico de teatro, performance-arte, dança, circo, música e criações híbridas, cujo objetivo é aproximar artista e espectador.

*Todos os nomes das crianças foram substituídos para preservar as identidades

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