Publicado originalmente em Coletivo Bereia por João Pedro Capobianco e Gabriella Vicente. Para acessar, clique aqui.
Nas últimas semanas teve grande repercussão nas mídias sociais um vídeo do 14º Dalai Lama, líder religioso do budismo tibetano e Nobel da Paz, interagindo com uma criança. Nas imagens o religioso aproxima o rosto do rosto de um menino, diz a frase em inglês “suck my tongue” (chupe minha língua) e coloca a língua para fora.
O conteúdo compartilhado, em sua maioria acompanhado de mensagens de repúdio, associam o ato a casos de pedofilia e abuso infantil praticados por líderes religiosos, tema de grande apelo popular. A reação gerou um pedido oficial de desculpas por parte do Dalai-Lama, mas também uma onda de apoio ao líder religioso.
Na tentativa de elucidar o caso, algumas figuras ligadas ao budismo tibetano se pronunciaram, explicando aspectos culturais desconhecidos na maior parte do mundo. Bereia checou as origens e o contexto do vídeo e do comportamento do líder religioso.
Quem é Dalai-lama
Dalai, em mongol, significa ‘oceano’ e lama é um termo usado para indicar um elevado grau de realização espiritual e de autoridade, capaz de passar seus conhecimentos adiante. Sendo assim, uma das traduções seria ‘Oceano de sabedoria’
Os seguidores do budismo tibetano acreditam que os dalai-lamas são a reencarnação de uma longa linhagem de lamas que optaram por reencarnar para ensinar sua sabedoria a toda humanidade.
Tenzin Gyatso é o atual dalai-lama, tido como a 14ª encarnação do primeiro, Gendun Drup. Os dalai-lamas foram até 1959 também líderes políticos, já que o sistema político no Tibete antes da anexação à China era considerado teocrático.
Em que contexto foi produzido o vídeo
O vídeo de grande repercussão negativa sobre a atitude do Dalai-lama com a criança é na verdade parte da transmissão ao vivo de uma formatura ocorrida em 28 de fevereiro na cidade de Dharamsala, na índia.
Durante a cerimônia, um menino cuja mãe trabalha para a instituição de ensino e está presente, pede para dar um abraço no Dalai-Lama. Depois de abraçar o religioso, os dois trocam outros gestos de carinho e brincadeiras. O religioso chega a fazer cócegas no menino e por fim dá um conselho à criança para que escolha boas companhias.
A presença dos pais do garoto e todo o contexto foram omitidos nas publicações que atacavam o comportamento do líder budista. Após a cerimônia, o menino concedeu uma entrevista dizendo que se sentiu muito bem na presença de Dalai Lama. “É um sentimento muito legal conhecê-lo e você recebe muito daquela energia positiva”, afirmou.
Vídeo viral e a língua na cultura tibetana
No vídeo completo, é possível testemunhar o pedido feito pelo menino para que pudesse abraçar Dalai Lama. Acolhido, o garoto abraça o líder espiritual e, a pedido do monge, beija seu rosto. Depois, Dalai Lama, segurando o queixo da criança, beija sua boca, num gesto aparentemente inocente.
Segundos depois, os dois tocam suas testas, no que aparenta ser um momento de bênção ou oração. Então, Dalai Lama diz “chupe minha língua” e traz o rosto do garoto para perto do seu. O menino se aproxima, mas o ato não se concretiza.
Diante da revolta gerada pelo vídeo, diversas figuras ligadas à realidade tibetana saíram em defesa de Dalai Lama, elucidando que, na cultura local, mostrar a língua é algo corriqueiro. Uma das fotos mais famosas de Dalai Lama retrata o líder com a língua para fora.
Além disso, esclareceu-se que há, no Tibete, uma brincadeira lúdica que os idosos costumam fazer com crianças. A frase “che la sa”, que poderia ser traduzida como “coma minha língua”, funciona como um ensinamento às crianças, para que entendam que não há mais o que se possa fazer em uma situação. A diferença da frase tradicional para a frase proferida por Dalai Lama seria justificada pela barreira linguística, já que o religioso não possui completo domínio do idioma inglês.
O grupo de advocacy e pesquisa política “Tibet Rights Collective” (Coletivo Direitos do Tibete) se manifestou relatando nuances desse tipo de comportamento, afirmando haver até mesmo a prática de dar pequenos doces às crianças diretamente da boca do adulto, de boca para boca.
Pedido de desculpas
Graças à repercussão do episódio, porém, houve um pedido oficial de desculpas por parte de Dalai Lama. Em seu site oficial, é possível encontrar uma declaração em que o monge pede desculpas ao garoto e sua família, bem como a todos os amigos ao redor do mundo pela dor que possa ter causado.
No comunicado, apesar das desculpas, há um esclarecimento de que Dalai Lama frequentemente provoca as pessoas que encontra, sempre de um jeito inocente e divertido, mesmo que em público e diante de câmeras, ressaltando o caráter corriqueiro das ações.
Não é a primeira vez que a liderança vai a público pedir desculpas por ações ou comentários. No passado, afirmações polêmicas levaram-no a se retratar, como quando afirmou que, caso o próximo Dalai Lama seja uma mulher, seria necessário que fosse uma mulher “ mais atraente”. Na retratação, também afirmou que era uma brincadeira.
Uma conhecida polêmica sobre o que o líder teria dito sobre refugiados que buscam um novo lar na Europa também gerou grande repercussão. Na ocasião, o posicionamento oficial foi esclarecer que a frase fora tirada de contexto, publicando a íntegra da fala.
Outros momentos constrangedores costumam repercutir na internet. Um vídeo de um encontro com a cantora Lady Gaga, voltou a circular nas últimas semanas, na esteira das reações negativas ao comportamento do monge budista. Nele, Dalai Lama leva as mãos às pernas da cantora, que se mostra desconfortável com o gesto.
Imagem mundial do Nobel da Paz e contexto histórico do Tibet
O 14º Dalai Lama é uma figura amplamente conhecida no Ocidente. Sua história já foi contada em livros e filmes e o próprio Dalai Lama foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz de 1989. Sendo o líder político e religioso que é, sua imagem está ligada também a conflitos e interesses políticos.
Por ser o mais importante líder do Tibete, região com grande relevância estratégica para a China graças a sua altitude e bacias hidrográficas, sua figura é bastante explorada pelos países ocidentais, que buscam evidenciar suas características positivas, seus ensinamentos humanísticos e sua vocação para a paz.
Além de ser um líder religioso considerado santo no Tibete, o Dalai Lama seria também um chefe de Estado. A região, hoje pertencente à China, já foi independente e é cercada de controvérsias históricas em relação a seu status político.
Ocidente x Oriente
Em 1959, um levante local contra o controle pela jovem República Popular da China levou o governo tibetano a se exilar em território indiano. Desde então, a Administração Central Tibetana, liderada por Dalai Lama, sediou-se na Índia, onde ainda hoje está instalada, na cidade de Dharamsala.
Os países ocidentais tentam explorar a ruptura política para alimentar a rivalidade com a China, uma vez que o país é considerado o grande antagonista do mundo ocidental capitalista na atualidade. Existem movimentos a favor da independência do Tibete, apesar de o próprio Dalai Lama já ter afirmado que a região pertence à China.
Porém, a disputa política que instrumentaliza a autoridade e o respeito inspirados pela liderança de Dalai Lama tem também sua contraparte. No recente caso envolvendo o vídeo com o garoto, muitos defensores do monge afirmaram haver em curso uma campanha oficial chinesa para arranhar a credibilidade do líder tibetano. Há relatos de que a China gostaria de influenciar a escolha do próximo Dalai Lama, buscando garantir que não surjam novos movimentos separatistas na região.
Acusações à China e relativismo cultural
Numa conferência de imprensa realizada em Delhi, Penpa Tsering, atual líder político do governo tibetano exilado, defendeu que as investigações lideradas por si demonstram que muitas “fontes pró-China” estão envolvidas na divulgação do vídeo e que “o ângulo político deste incidente não pode ser ignorado”.
Não é possível apontar quem editou parte do vídeo e compartilhou nas mídias sociais pela primeira vez, mas a repercussão só aconteceu no início do mês de abril. Isto mostra que a cerimônia e as atitudes do líder religioso em público não são uma questão para a comunidade onde elas ocorreram. É preciso considerar que o recorte que se espalhou pelas redes digitais carrega a intencionalidade de trazer escândalo sobre algo que aparentemente é comum em outra cultura e incomum na cultura ocidental.
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Bereia considera enganoso o conteúdo checado. O vídeo que gerou reação negativa foi cortado e os títulos e imagens que ganharam repercussão não correspondem ao que é exposto na íntegra, instigando julgamentos negativos de uma pessoa. O conteúdo necessita de substância e contextualização para ser corretamente compreendido. A rapidez com que o caso ganhou as redes no Ocidente demonstra que houve pouca ou nenhuma preocupação em avaliar o contexto e as tradições locais. Como tem sido frequente nas mídias sociais, temas que envolvem abuso de crianças e religião geram grande repercussão e alimentam discursos de ódio, mesmo sem maiores informações disponíveis.
A defesa do comportamento de Dalai Lama parece ser coerente com a realidade local e estar de acordo com as tradições de um povo milenar, por mais que pareçam em desacordo com as práticas ocidentais. Apesar disso, mesmo reconhecendo a diferença cultural, é possível que muitos interlocutores discordem da atitude do monge.
Predominantemente, no entanto, as reações apontavam se tratar de um caso de abuso infantil, o que não parece se sustentar. Não se pode descartar no ocorrido, que houve um pedido de desculpas do Dalai Lama ao menino e sua família, pois o caso, ainda que não tenha sido intencional, afetou não apenas a imagem e a reputação do líder religioso, mas também estas pessoas comuns, que tiveram suas vidas expostas, especialmente a criança.
Bereia alerta para a necessidade de que leitores e usuários de redes digitais tentem se informar e compreender o contexto dos vídeos apresentados em partes e não na totalidade, antes de disseminar discursos incompletos que podem alimentar um comportamento reativo e generalista sobre assuntos complexos e que precisam ser cuidadosamente analisados antes de conclusões definitivas.
Referências de checagem:
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O Globo. https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/dalai-lama-ganha-nobel-da-paz-pela-defesa-da-liberdade-do-povo-tibetano-9988632 Acesso em: 20 abr 2023
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Olhar Budista. https://olharbudista.com/2023/04/14/a-polemica-com-o-dalai-lama-um-beijo-perturbador-ou-um-mal-entendido/ Acesso em: 20 abr 2023
Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=bT0qey5Ts78&t=916s&ab_channel=Jigme Acesso em: 20 abr 2023
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Foto de capa: Webted / Flickr