Usos e abusos da fome: o caso “marmita gate” e as brechas da ausência do Estado

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Denise de Sordi. Para acessar, clique aqui.

O combate à fome deve levar em conta que a fome decorre de sistemas econômicos e sociais

“Marmita gate” é expressão que ganhou as redes socais no dia 26 de setembro, atingindo os tópicos mais comentados do Twitter Brasil no dia 27. A expressão tem sido utilizada para designar e denunciar um caso de suposta fraude na arrecadação de doações em dinheiro para a atuação de duas voluntárias em Blumenau (SC) a partir da suposta distribuição de marmitas para dezena de pessoas em situação de rua. 

Infelizmente, o termo faz referência à prática, amplamente difundida no país, de entrega gratuita de marmitas para pessoas empobrecidas que deixaram de ter como se alimentar. Um cenário que foi agudizado nos últimos anos com o aumento acelerado da pobreza, e que se expressa no retorno do país ao Mapa da Fome e na condição de insegurança alimentar de 33,1 milhões de brasileiros, de acordo com dados de Inquérito realizado pela Rede Brasileira em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

O “marmita gate” poderia ser somente mais um caso, dentre outros, de pessoas que agem de maneira lamentável, mas extrapola o limite das más práticas individuais porque pode ser associado à ações responsáveis e sérias que correm em escala nacional. O ocorrido ganha relevo não só por ser impulsionado pela repercussão nas redes sociais, mas pela conjuntura do país caracterizada pelo completo apagão das políticas e programas sociais que tinham como missão impedir o avanço da pobreza e da fome e reduzir as desigualdades sociais, ao corte quase total de verbas para alimentação e ao sucateamento dos serviços de assistência social. É trágico que a prática de distribuição de marmitas – ou quentinhas – que é também uma forma histórica de organização social e solidária corra o risco de ser associada e desmoralizada devido à práticas que, no calor do chamado à consciência individual, acabam por ser apoiadas por centenas de pessoas.

Casos como este têm se tornado recorrentes e se diferenciam mais ou menos entre si, mantendo em seu núcleo a constante do abuso e da violência dirigidos à brutal condição de fome e aos trabalhadores empobrecidos que a vivenciam. No início de setembro, cabe lembrar, outro caso do tipo ganhou relevo: um apoiador do governo Bolsonaro filmou um vídeo no qual distribuía marmitas a uma mulher alegando que, mediante o apoio desta à candidatura de Lula, ela não receberia mais marmitas. Além da chantagem sofrida, a senhora foi exposta nas redes, procurada pela imprensa e teve seu caso e sua imagem amplamente explorados. Todos queriam saber quem ela era, o que havia ocorrido e como era sua relação com a entrega, também voluntária, de alimentos por aquele senhor. 

Este episódio se soma no conjunto da escalada não só de violência social, mas do projeto de apagamento que é dirigido aos sujeitos que estão em condição de pobreza e que são designados frequentemente como “pobres”, a “massa”, os “populares”, os “eleitores pobres” que parecem orbitar dentro e fora da esfera dos conflitos sociais ao sabor da análise que se pretende fazer. Quase sempre e em geral, nunca como agentes, como cidadãos ou mesmo pessoas dignas de direitos, mas sempre como “beneficiários”, como os “vulneráveis” a serem atendidos, por alguém, mas frente a ausência do Estado e o fechamento dos instrumentos de participação popular: por quem? 

O “marmita gate” nos revela algumas questões nesse sentido: se alguém prestasse atenção nas supostas pessoas atendidas tudo teria vindo à tona mais rapidamente? A que ponto os espaços de assistência social e de reivindicação pelo atendimento de Direitos Sociais, dentre eles, o direito à alimentação, foram desmanchados para que a naturalização de iniciativas individuais, descoladas de projetos coletivos ganhassem maior relevo que a construção e defesa destes espaços?  

O caso nos revela outro ponto: frente à fragilização e o desmanche das políticas e programas sociais, do desemprego, do empobrecimento, da inflação e da fome são os movimentos sociais historicamente consolidados que têm cumprido o papel do Estado brasileiro. Nos últimos anos, eles têm atendido, nos ensinado e formulado a política enquanto espaço público do pensar e de atuação para colocar em xeque, não só a naturalização da fome, mas a necessidade de reivindicação que, ao contar também com a ação voluntária, se organiza coletivamente para a construção de outro projeto de sociedade e de futuro. A ação dos movimentos sociais não se relaciona com o voluntarismo individual, e sim gera espaços de reivindicação coletiva, é transparente e conta com o acompanhamento da sociedade, seja para a crítica ou para o apoio.

No caso de chantagem política com comida, foi o Movimento Sem Terra (MST) quem acolheu, ouviu e apoiou a senhora afetada. No caso da distribuição de alimentos, os movimentos de luta pela terra e pela produção campesina, a exemplo do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), são os que têm se somado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) para a distribuição de milhões de quentinhas produzidas nas trinta e duas Cozinhas Solidárias, que compõe o projeto homônimo do MTST, apoiado com doações e em funcionamento exitoso em onze estados. 

Como nos lembra Josué de Castro em seu “Geografia da Fome”, o apoio ao combate à fome deve levar em conta que a fome decorre de sistemas econômicos e sociais, ou seja, para que exista é preciso que estruturas e formas que organizam as relações sociais sejam produzidas e reproduzidas. O empobrecimento e a fome são escolhas políticas, não são naturais e não acontecem sem motivo. O combate à fome é o combate a estas escolhas em favor de outras, que sejam melhores e mais justas socialmente para todos nós. 

Por isso, o combate a estas escolhas políticas, isto é; à fome, não pode ocorrer de forma individual e voluntarista, deslocada de um projeto social e coletivo – de futuro. É a defesa deste projeto coletivo, e o apoio de sua expressão pelas mãos dos movimentos sociais que pode oferecer soluções melhores, mais representativas e mais rápidas para o atual cenário do país.

Os trabalhadores, ainda que empobrecidos, têm agência (agency) e devem também atuar nas escolhas e decisões políticas que organizam a forma como convivemos em sociedade. A distribuição de alimentos é um tipo de engenharia de urgência possível frente a ausência do Estado, mas não é somente um fim, é um meio para a mobilização e para a construção deste espaço de agência. Considera, enquanto projeto coletivo e social, que não há como combater a fome sem falar de segurança e de soberania alimentar, que a transição agroecológica e a preservação do meio-ambiente caminham juntos, e que só com instrumentos de gestão democrática a cidadania pode ser ampliada.

Casos como o “marmita gate” alertam que, para nós, que ainda conseguimos nos alimentar três vezes ao dia, todos os dias, se voluntariar é válido, mas se organizar e apoiar os movimentos sociais é necessário.

Denise De Sordi é historiadora,?pesquisadora dos programas de pós-doutorado?da COC/Fiocruz e da FFLCH/USP

Edição: Thalita Pires

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