Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Tecnologia | Debate sobre uso excessivo de dispositivos eletrônicos precisa ir além da individualização de responsabilidades e ser feito por toda a sociedade
*Foto: Francisco Avelino Conte
O uso de telas por crianças foi impulsionado durante a pandemia de covid-19, uma vez que, em função do isolamento social, as aulas e as relações passaram a ser mediadas por dispositivos digitais. A pesquisa Tic Kids Online mostra que, quando colocado em série histórica, o uso de telas por crianças tem começado cada vez mais cedo: em 2015 o número de crianças de 0 a 6 anos que acessava a internet pela primeira vez era de 26,1%, já em 2022, após a incorporação do ensino remoto, o número cresceu para 46,3%.
Os chamados ‘nativos digitais’ são esses indivíduos que já crescem em contexto digital e têm suas experiências atravessadas pela inserção de aparatos eletrônicos no seu cotidiano. No entanto, para além de todas as problemáticas amplamente conhecidas – prejuízos à visão, sedentarismo, desvio de atenção e até tendinite –, o que as mídias digitais têm efetivamente afetado na formação subjetiva do ser criança?
A psicopedagoga e diretora científica da Associação Brasileira de Psicopedagogia, Monica Eidelwein, explica que a formação constitutiva do indivíduo se dá de duas formas nos primeiros anos da infância. Uma delas é a significação de seus desejos e anseios biológicos a partir do que os pais conseguem resolver, como, por exemplo, quando a criança chora porque sente fome e o responsável a alimenta. A segunda é o momento do brincar livre, que possibilita que a criança projete sua própria subjetividade na elaboração das brincadeiras. Esses dois momentos são primordiais na elaboração da personalidade do sujeito, uma vez que diferenciam os desejos dos pais e da criança, permitindo que ela se perceba como um indivíduo à parte.
Quando a tela substitui as interações entre pais-filho – por exemplo, o celular sendo usado para minimizar a ausência momentânea do responsável, ou o cuidador fragmentando sua atenção entre dispositivo e criança –, ocorre o fenômeno da tecnointerferência, que ocasiona a dessensibilização dos pais em relação às questões infantis.
Quais os impactos dos conteúdos consumidos?
O programa infantil “Castelo Rá-tim-bum”, que foi ao ar entre maio de 1994 e dezembro de 1997, contava com uma vasta equipe de pedagogos em sua produção. Com quadros que estimulavam o raciocínio lógico, a aquisição da linguagem e o famoso “Porque sim não é resposta”, o show demonstrava uma preocupação com que as crianças tivessem contato com conteúdos lúdicos e educativos, aproveitando o boom dos aparelhos de televisão nos anos 90.
Claro, o programa era um dentre vários outros que não dispunham de uma equipe especializada em educação. No entanto, quando as crianças estão expostas a conteúdos nocivos de maneira instantânea na internet, como ocorre hoje, os prejuízos desse consumo inapropriado são amplificados:
“O consumo desses conteúdos tem ocorrido de maneira prematura, antes de a criança já ter capacidade de fazer escolhas mais adequadas, se tornando um alvo fácil. A instantaneidade traz uma satisfação imediata que impossibilita a criança lidar com suas frustrações e resulta em um indivíduo impaciente e mais agressivo”
Monica Eidelwein
Monica destaca que, clinicamente, algumas consequências desse consumo já são observadas – como alguns diagnósticos de autismo que, na verdade, são transtornos de linguagem. “Por exemplo, crianças que repetem falas de um personagem e aparentam saber tudo sobre um jogo. Supostamente essa criança parece ter uma linguagem avançada, mas na verdade não é uma linguagem funcional porque o sujeito não se comunica, apenas reproduz.”
A psicopedagoga ressalta que, para que o processo de aprendizagem ocorra de maneira plena, é necessário que primeiramente haja um sujeito. Ao ocorrer um atravessamento dos dispositivos nesses processos constitutivos, tem-se uma perda das capacidades de elaboração da criança sobre si mesma e, por consequência, uma defasagem no processo de aprendizado.
Só a ponta do iceberg
A doutoranda em Psicologia pela UFRGS Sofia Sebben, que integra o Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças (Nufabe), foi recentemente premiada por sua pesquisa em desenvolvimento infantil. No estudo e em outros usados como referência, a pesquisadora aponta que há evidências que indicam haver uma relação determinante entre a saúde mental e o contexto social das mães e o tempo de uso de tela pelos filhos.
Mães sobrecarregadas, com longas jornadas de trabalho e exaustas em função do deslocamento do transporte público acabam por utilizar os dispositivos como um recurso de entretenimento para os filhos; elas podem, assim, dar conta dos afazeres domésticos. Para Sofia, o debate sobre o uso de telas precisa ser complexificado, pois o uso excessivo é apenas a ponta do iceberg:
“Muitas outras coisas estão abaixo desse iceberg, por exemplo: falta de rede de apoio a essas mães que não têm com quem deixar seus filhos; falta de espaços verdes e parquinhos que possibilitem o brincar livre e a falta de atividades no contraturno para as crianças poderem sair das telas”
Sofia Sebben
Assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito de brincar é reconhecido como fundamental no desenvolvimento infantil. Entretanto, um estudo sobre espaços para brincar nas favelas brasileiras mostrou que, durante a pandemia, apenas 29% das crianças dispunham de locais adequados para brincar em suas comunidades. O relatório ainda detectou que 88% das famílias, majoritariamente as de baixa renda, tiveram que recorrer às telas quando não tinham tempo para os filhos.
Sofia afirma que culpar essas mães é contraprodutivo, e o caminho deve ser outro:
“Responsabilização em vez de culpabilização. A culpa nos fecha e nos coloca um fardo. Se formos pensar em culpa, devemos culpar os desenvolvedores de softwares e programadores de redes sociais. Mas a responsabilização nos faz refletir sobre o nosso próprio uso e depois o das crianças”
Sofia Sebben
As telas não são necessariamente danosas ou benéficas, mas, sim, a maneira como é feito seu uso. É nesse sentido que a pesquisadora irá promover junto ao Nufabe consultorias a escolas públicas com o objetivo de conscientizar pais e professores acerca dos benefícios de se usar as telas conjuntamente a outras atividades.
O tema também está em debate em esfera federal. Desde março deste ano, um grupo de trabalho com representantes de Ministérios, sociedade civil, academia e entidades tem atuado na elaboração de um Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes. Também foi realizada uma consulta pública, com 602 contribuições, e o guia deve ser lançado até o final de 2024, conforme a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
“Acho que a gente ia voltar a ser criança”
Provocado por todas essas inquietações, decidi descobrir o que as crianças realmente pensam sobre esse debate que tanto as envolve, mas que não as escuta. Para isso, fui à Escola Municipal Wenceslau Fontoura, na Zona Leste de Porto Alegre, e propus a dinâmica dos ‘quatro momentos do dia’, em que a criança desenha, de maneira livre, momentos do seu dia em quatro quadrantes de uma folha de ofício. Isso permite acessar alguns aspectos da subjetividade da criança a partir do que e como desenha. Também usei o ‘Kahoot’, site interativo de enquetes, para poder suscitar o debate entre o grupo de alunos.
Logo de início conversei com a equipe da escola, que me contou que, apesar de a questão estar latente nas salas de aula, ainda não há um posicionamento ou instrução da Secretaria Municipal de Educação (Smed) sobre como lidar com esse fenômeno, ou seja, a responsabilidade vem da própria equipe diretiva escolar. Todas as iniciativas até então têm surgido da aflição dos próprios educadores, que percebem o uso desenfreado dos dispositivos pelos alunos. Uma das professoras, inclusive, ao ouvir a minha pauta, se lembrou que tinha de tratar com a coordenação sobre um aluno do terceiro ano que estava dormindo em aula após passar a noite jogando no celular.
Tive a oportunidade de estar com duas turmas do sexto ano. E, quando chego, a turma fica estarrecida com meus quase 2 metros de altura. Após explicar a dinâmica, foi difícil os alunos de 12 anos se concentrarem em meio a tantas questões sobre eu jogar basquete ou vôlei.
Alguns titubearam, e assim que começaram, já gritaram: ‘terminei!’. Um aluno impaciente escreveu “nada” nos 4 quadrantes e saiu pela sala puxando o cabelo das colegas.
Os desenhos variaram na estética, mas os conteúdos foram parecidos: desde funções cotidianas sendo representadas por suas camas ou escovas de dentes, e muitos (muitos mesmo!) desenhos representando a escola como uma “prisão”. Vários representavam jogar bola e/ou usar o celular.
Com o Kahoot, pude explorar as concepções verbais dos alunos sobre o assunto. Perguntei a respeito dos prejuízos de passar muito tempo em frente às telas. Era consenso e havia uma noção muito definida de que faziam “mal pras vistas” e que os faziam “esquecer do mundo à volta”.
Pergunto, então, sobre a importância dos dispositivos em suas vidas; a maioria afirmou que amenizava o tédio. Uma menina comentou, rindo, sobre usar o cartão de crédito da mãe para apostar no ‘Jogo do Tigrinho’. Não posso confirmar a veracidade desse relato, mas o fato de isso se tornar algo passível de riso me faz questionar sobre como as mídias tomam forma dentro de algo inerente a qualquer criança: as brincadeiras.
Pergunto a uma menina que está com o celular conectado à tomada enquanto digita algo freneticamente sobre a importância do dispositivo para ela. A colega ao lado me corta, rindo: “Tio, o celular é a vida dela”, e conclui com tom travesso: “Ela leva pra todo lado”.
Ao serem questionados sobre o debate acerca da proibição dos celulares em sala de aula, uma mão levanta-se rapidamente, como que se finalmente houvesse uma oportunidade de declarar o que vem a seguir: “Acho que a gente ia voltar a ser criança”.
Pergunto à turma se eles concordavam com a posição do colega e, com a ajuda dos professores, consegui minimamente engatar pequenas discussões com eles em sala. As opiniões destoavam: uns diziam que tanto faz, outros nem celular tinham, poucos afirmavam que era ruim, pois não teriam como ficar sabendo caso houvesse alguma emergência, e alguns, como o colega que levantou a mão, diziam que o celular tirava as atenções de outras atividades, como brincar. Um dos alunos se empolga com o debate sobre banimento e vai longe: “Então tem que banir a internet, o Chromebook, o projetor, a eletricidade”.
Me pergunto o quanto disso varia de série para série e, ainda, o que pode ser feito para diminuir o impacto das tecnologias no desenvolvimento dessas crianças.
A própria escola Wenceslau Fontoura entende a necessidade de desconexão, ainda que as telas possam ser aliadas no uso pedagógico – um exemplo é o uso dos Chromebooks, um tipo pequeno de laptop que possibilita pesquisas rápidas sobre os assuntos tratados em aula.
O problema tem sido o uso fora dessa finalidade. Em uma reunião sobre banir ou não os celulares em sala, ficou claro que os dispositivos não eram prejudiciais, mas, sim, a distração que os aplicativos de rede social e jogos causavam, e como os próprios alunos não percebiam que estavam viciados.
Foi pensando nisso que uma professora da escola propôs conscientizar os alunos sobre a importância de desconexão, muito mais do que simplesmente banir. Assim, cartazes espalhados pela instituição orientam sobre quando usar o celular na escola e dão dicas para facilitar a desconexão.
Pequenas iniciativas como essa, assim como a elaboração do Guia do Uso de Telas, mostram que, aos poucos, governo e sociedade estão percebendo a necessidade de discutir e repensar o uso de telas na infância. É necessário, porém, colocar o tema em um espectro muito maior do que simplesmente individualizar a responsabilidade, envolvendo educadores, pais, pesquisadores, profissionais de saúde e toda a sociedade.