Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta. Para acessar, clique aqui.
*Bruno Ferreira, assessor pedagógico do Instituto Palavra Aberta
O novo comercial da Volkswagen apela à emoção ao reviver Elis Regina dirigindo uma Kombi antiga, por inteligência artificial. O automóvel alcança o novo modelo do carro, dirigido por Maria Rita, filha de Elis. Ambas, numa estrada comum, cantam lado a lado “Como nossos pais”, icônica canção de Belchior que, muito além de abordar modelos de comportamentos aprendidos com pais e repetidos por filhos, é um protesto à ditadura militar. “Mas é você que ama o passado / E que não vê / Que o novo sempre vem”, diz um dos vários trechos críticos da letra.
A peça publicitária gerou muito debate na sociedade. Há quem a enxergue como bem sucedida, por incorporar criativamente algo tão contemporâneo, como a inteligência artificial, à sua mensagem, atrelando-a não apenas à novidade do seu produto, a Kombi elétrica, mas sobretudo à memória afetiva de uma cantora-mãe que, até hoje, é um ídolo nacional. A afetividade que permeia toda a peça, porém, começa antes mesmo da aparição da Elis artificial, com uma sequência de imagens de outros modelos antigos da marca, que remetem a um álbum de família, relíquia que registra o passado saudoso de momentos em família.
No entanto, a positividade da mensagem escamoteia a incoerência de atrelar a letra de Belchior e a imagem de Elis, vozes críticas à ditadura, a uma empresa que contribuiu com o regime militar, no Brasil. Em seu Instagram, a antropóloga e historiadora da USP Lilia Schwarcz chama a atenção para isso, mencionando uma investigação feita em 2015 pelos Ministérios Públicos Federal, do Estado de São Paulo (MP-SP) e do Trabalho (MPT) que resultou num relatório que aponta colaboração da empresa alemã com os militares.
“O relatório destaca uma carta do presidente da subsidiária brasileira de 1964, no qual o ex-filiado ao partido nazista Friedrich Schultz-Wenk elogia ‘a organização da revolta, que havia sido extremamente bem-preparada’. A correspondência, dirigida ao presidente da companhia na Alemanha, demonstra ainda conivência com a violência por parte do Estado. A empresa também entregou funcionários e mentiu para as famílias”, diz o post da historiadora.
Além dessa questão, referente à autoria e contexto de produção da mensagem publicitária, é preciso refletir sobre a recepção dela: muitos referiram-se à “recriação” de Elis Regina como uma deep fake, modalidade de fake news criada a partir de inteligência artificial. Mas isso é um engano conceitual.
No comercial da Volks, é evidente que a representação de Elis não quer fazer o público acreditar que se trata da cantora de fato, mas de reforçá-la como uma artista do passado que segue sendo relevante no presente. Por isso, não se trata de uma deep fake. Esse equívoco de denominação, no entanto, é uma oportunidade para refletirmos mais profundamente sobre o papel da inteligência artificial na criação de mídias.
Mensagens construídas por meio desse artifício não têm, necessariamente, a intenção de enganar nem de ser conteúdos fraudulentos, no sentido de disfarçar a autoria de quem os produz. Trata-se de uma nova forma de facilitar processos criativos, testar ideias, produzir arte. O caso do Papa Fashion, imagem artificial do Papa Francisco com um estiloso casaco branco, já tratado anteriormente por nossa coluna, é um bom exemplo disso.
É claro que conteúdos produzidos dessa forma podem enganar, embora não tenham essa intenção. Assim como imagens reais, mas equivocadamente atribuídas a outros contextos, também podem enganar. Foi o que aconteceu com as fotos verdadeiras do Corpo de Bombeiros do Estado de Minas Gerais em uma operação de resgate em 2018 que foram equivocadamente atribuídas ao acidente em Brumadinho, ocorrido em 2019.
Mas para além de analisar a intenção de recorrer à inteligência artificial para criar uma mensagem, o polêmico comercial da Volks é um exemplo da necessidade de termos mais capacidade crítica para interpretar conteúdos de mídia, demonstrando a importância de atrelar diferentes repertórios para leituras cada vez mais complexas, em diferentes camadas. Neste caso, foi preciso recorrer à História para compreender que o golaço da mensagem como um todo foi, na verdade, um gol contra.