Um caminho para a alfabetização de idosos além da EJA

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Educação | Bibliotecas comunitárias oferecem oficinas para ensinar pessoas da terceira idade a ler e escrever e oportunizam aprendizado para a população em maior índice de analfabetismo

*Foto: Marcelo Pires/JU (Esta imagem recebeu edição para retirada de marca comercial, segundo orientação da Secretaria de Comunicação Social/UFRGS)

Ireni Maria do Carmo e Maria do Carmo de Brito são participantes das oficinas de alfabetização para idosos organizadas pela Biblioteca Comunitária Raio de Luz, no bairro Santana, em Porto Alegre. As duas senhoras, uma com 78 e outra com 82 anos, frequentam as oficinas desde o início, em agosto de 2023, e não faltaram nenhuma aula. No dia 28 de setembro, chegaram juntas à oficina, trazendo seus cadernos, folhas de tema de casa e lápis. Estavam prontas para a aula de matemática que teriam pela primeira vez desde que saíram da escola e para a de português que aconteceria em seguida.

Pessoas como Ireni e Maria, que estudaram até a quinta série (atual sexto ano), estariam dentro da modalidade de ensino EJA (Educação de Jovens e Adultos), porém nunca conseguiram chegar a essas aulas. Ambas relatam que quando crianças eram cheias de afazeres; depois, o tempo passou e não puderam dar continuidade aos estudos.

Maria do Carmo lembra que fugia para brincar quando a mãe a deixava na escola, porém gostaria de ter estudado mais. “Depois eu comecei a trabalhar e depois casei. Às vezes a gente não vai porque não quer, porque mesmo tu sendo casada, tu ‘tando’ trabalhando tem o espaço de noite, mas aí vem o marido com ciúmes, com coisinha, principalmente de noite, então a gente nem vai.”

De acordo com a legislação atual, o período de escolaridade obrigatória inicia na educação infantil, com 4 anos, e vai até o fim do ensino médio. Todavia, como ressalta o professor do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação (Faced/UFRGS), Evandro Alves, com a lei nem sempre foi assim, as pessoas da terceira idade não tiveram acesso a todos esses níveis de escolaridade. Isso se reflete nos índices de analfabetismo: de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54,1% da população que não sabe ler ou escrever tem mais de 60 anos, sendo, em maioria, pretos ou pardos.

Na oficina da Biblioteca Raio de Luz, os alunos são apresentados às cores, além do alfabeto (Marcelo Pires/JU)

Evandro diz que a luta por manter a criança na escola é algo recente, um movimento que se consolida com o Estatuto da Criança e do Adolescente na década de 1990. Até então se costumava atribuir a falta de estudo ao desinteresse, o que não reflete a realidade do que acontecia: muitos não tinham acesso à escola, em função da distância, ou precisavam trabalhar para manter a família. Dessa forma, a origem da EJA, a partir dos anos 1950 e 1960, ocorre fora do meio escolar formal, atrelado a uma educação popular.

Em Porto Alegre, existem 31 escolas na rede municipal que oferecem aulas na modalidade EJA. Nem sempre, entretanto, é possível, para as pessoas da terceira idade, frequentarem essas aulas: a localização das escolas, o medo de sair à noite ou mesmo a vergonha são alguns dos fatores que dificultam o acesso. Oficinas como as oferecidas pela Biblioteca Raio de Luz ressoam a origem da EJA e oportunizam uma nova chance de estudo.

A Biblioteca Aninha Peixoto, no bairro Rubem Berta, também oferece oficinas para alfabetização de idosos. No dia 5 de outubro, havia cinco pessoas – uma das quais estava ali acompanhando a irmã. Todos os participantes relataram buscar as oficinas para aprender o que não tiveram oportunidade quando jovens. A partir de suas próprias trajetórias e impedimentos, Georgina Almeida (82), Maria Ivone Maciel (66), Geraldo Padilha (88) e Tânia Marisa Pires (76) demonstram interesse e satisfação ao participar das atividades da biblioteca.

Georgina relatou que, quando jovem, morava muito longe de escolas. “Meu pai só botou os filhos homens na escola. As mulheres não precisavam estudar e só trabalhavam em casa”, completa. Tânia afirma: “Eu estou aqui por um motivo: eu sempre admirei quem estuda, quem é formado. [Para] Nós, como negros, é lindo chegar num hospital, chegar num dentista, chegar num advogado e ter uma preta atendendo. É um privilégio para nós”.

Aulas são pensadas a partir da realidade dos alunos

Na Biblioteca Raio de Luz, a ideia de ofertar as oficinas vem das vivências como assistente social e pessoais de Susane Souza, coordenadora da biblioteca. “Eu venho de uma família majoritariamente liderada por mulheres, todas mulheres negras, que estudaram, na época, até o primário.” Ela observa que os idosos são muito ativos e dispostos a auxiliar a família – um exemplo é o cuidado com os netos.

Já Maria Heloísa da Rosa, coordenadora da Biblioteca Aninha Peixoto, conta que, em 2019, realizou um cinedebate com os idosos no dia dos avós, momento que gerou diversos relatos sobre o que gostariam de ter sido ou estudado. Após esse momento, começou a projetar o que poderia fazer para colaborar com a educação das pessoas nessa faixa etária.

Ambas as bibliotecas realizam as oficinas apenas com voluntários. Na Raio de Luz, as aulas de português são dadas por Pamela Ferreira, estudante de filosofia da PUCRS, e as de matemática por Andrea Zeni, professora de física aposentada. A biblioteca Aninha Peixoto conta com a professora aposentada Eliana Leão, formada em pedagogia pela UFRGS.

Na Raio de Luz, Pamela e Andrea realizam uma sondagem para entender o que as alunas já sabem, pois as idosas têm uma bagagem de aprendizado da vida. As aulas são estruturadas partindo do que as professoras observam e do que as estudantes relatam. As aulas de matemática estão iniciando e acontecem em paralelo às atividades oferecidas para as crianças da Escola Estadual São Francisco. Quando as crianças vão embora, as senhoras ocupam as mesas próximas ao quadro para a aula de português. As oficinas ocorrem nas quintas-feiras, iniciando às 14h com matemática e às 15h com português, na quadra da Escola de Samba Fidalgos e Aristocratas (Av. Ipiranga, 2485). Para se inscrever na atividade, basta comparecer ao local às quintas-feiras, das 9h às 16h.

Na Aninha Peixoto, Eliana tenta utilizar diferentes recursos, desde aulas mais formais até atividades com jogos, lápis de cor e massinhas de modelar. “Até porque, com 84 anos, tem coisas que eles não vivenciaram, não tinha no tempo deles”, ressalta. No dia 05 de outubro, por exemplo, as atividades, voltadas para a socialização, utilizaram jogos de tabuleiros. As oficinas acontecem das 9h às 12h, todas as quintas-feiras na biblioteca Aninha Peixoto (Av. Donário Braga, 159). Interessados em participar das oficinas podem se dirigir ao local nesse dia e horário ou entrar em contato previamente pelo e-mail mariaheloisatur@gmail.com, whatsapp (51)985277844 ou Instagram @bcaninhapeixoto. Embora o público-alvo sejam os idosos, Heloísa destaca que qualquer pessoa que queira participar é bem-vinda, enquanto houver disponibilidade de vagas.

Alcibiades Quinteiro Canedo começou a participar da oficina de alfabetização na Biblioteca Raio de Luz no final de outubro. Nas primeiras aulas, os alunos vão aos poucos sendo apresentados ao alfabeto (Marcelo Pires/JU)
Iniciativas aceitam doações e parcerias

As aulas não são as únicas atividades oferecidas pelos espaços. Na Fidalgos e Aristocratas, a biblioteca Raio de Luz também oferece oficinas literárias, reforço e palestras temáticas. O projeto aceita todos os tipos de doações de material escolar, como cadernos, folhas de ofício, cartolina, lápis de cor e de escrever, materiais utilitários, como cadeiras e computadores, e também voluntariado. Mais informações pelo e-mail omoaladun12@gmail.com, whatsapp (51)991717318 ou Instagram @biblioraiodeluz.

Na Aninha Peixoto ocorre o curso pré-vestibular popular Emancipa. A biblioteca também tem parceria com a escola estadual Santa Rosa, onde há uma “geloteca” que funciona como ponto de distribuição de livros. Para abastecer a geloteca, o projeto aceita doações de livros, principalmente os de contos, poesias e crônicas, que são os mais demandados. A biblioteca também aceita propostas de parcerias e voluntariado. Mais informações pelo e-mail mariaheloisatur@gmail.com, whatsapp (51)985277844 ou Instagram @bcaninhapeixoto.

Como participar das oficinas de alfabetização

Biblioteca Raio de Luz (quadra da Escola de Samba Fidalgos e Aristocratas – Av. Ipiranga, 2485)

Horário das aulas: quintas-feiras, das 14h às 16h

Inscrições: quintas-feiras, das 9h às 16h, no local das aulas

Biblioteca Aninha Peixoto (Av. Donário Braga, 159 – Rubem Berta)

Horário das aulas: quintas-feiras, das 9h às 12h

Inscrições: diretamente no local e horário das aulas ou pelo e-mail mariaheloisatur@gmail.com ou whatsapp (51)985277844

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