Três pedras no nosso caminho

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Carlos Castilho
Pesquisador associado do objETHOS

Este texto é uma proposta de reflexão sobre três temas que já estão mudando a nossa visão do que é o jornalismo e qual a sua função dentro da realidade digital que começa a contagiar o mundo em que vivemos. A nova relação do jornalismo e dos jornalistas com a sociedade, as comunidades de trabalho como forma de exercício da atividade jornalística e a notícia vinculada à produção são três questões fundamentais no conjunto de novas práticas e teorias que já estão definindo a forma como a produção noticiosa é desenvolvida atualmente.

Notem que uso a expressão “atividade” em vez de “profissão” porque esta diferença está ligada à nova relação dos jornalistas com as comunidades que o cercam. A distinção é importante porque o termo “profissão”, dentro do campo do jornalismo, foi associado à condição de assalariado de uma corporação ou de alguém que vende trabalho físico ou produção intelectual.

A atividade jornalística na era digital começa a perder seu caráter fundamentalmente empregatício para assumir uma função social e isto não é apenas o resultado de uma opção ideológica, política ou humanitária. É sobretudo uma consequência do fato de que a produção de notícias está deixando de ser financiada por publicidade paga para se dependente do apoio de pessoas que necessitam de dados e fatos para tomarem decisões que afetam o seu dia a dia e sua sobrevivência.

Trata-se de uma mudança fundamental na atividade noticiosa porque até agora a maioria esmagadora dos jornalistas tinha em mente o establishment e os seus patrões na hora de produzir uma notícia, comentário, entrevista ou investigação. A prioridade no relacionamento com as pessoas ainda é um comportamento pouco presente na atividade jornalística, mas as redes virtuais ampliaram consideravelmente o alcance dos novos ecossistemas informativos (1) forçando o surgimento de pautas noticiosas mais vinculadas aos interesses dos segmentos tradicionalmente excluídos do debate público.

Há uma rápida multiplicação de softwares e estruturas de engajamento entre jornalistas e comunidades, o que reforça a tendência à inovação no âmbito das novas práticas do jornalismo contemporâneo. Há necessidade de que os cursos de jornalismo, tanto os presenciais como os a distância, levem esta discussão para as salas de aula, no mínimo para incentivar a interatividade entre professores e alunos sobre uma realidade que afeta ambas as partes. Há urgência na abertura de fóruns dentro das redações e fora delas para que repórteres, editores, comentaristas, programadores e designers percebam como os ecossistemas informativos estão mudando no Brasil e no mundo.

São Sebastião: O vácuo noticioso local

As fontes do jornalista estão deixando de priorizar os especialistas, dirigentes empresariais, governantes ou líderes políticos para, cada vez mais, recorrerem às personagens comuns que frequentam supermercados, farmácias, lojas, escolas e clínicas médicas. São estas pessoas que enfrentam problemas à espera de soluções que, em sua maioria, dependem de informações para serem alcançadas. São indivíduos que dependem das informações publicadas por jornalistas em blogs, páginas noticiosas locais ou redes sociais para decidirem o que fazer na sua rua, bairro, casa, transporte, educação ou saúde.

A agenda de Brasília concentrada nas polêmicas sobre teto de gastos, equilíbro fiscal e desoneração da gasolina continua relevante, mas perde o espaço na agenda jornalística local para questões como a solução do problema dos desabrigados pela tragédia de São Sebastião, no litoral de São Paulo. Alguém acha que as centenas de pessoas afetadas pela enchente do Carnaval está preocupada em ler a Folha ou o Estadão para saber se o Congresso nacional vai ou não votar o teto de gastos públicos?

Todas as atenções dos moradores de São Sebastião estão voltadas para os problemas de uma cidade que não tem canais de informação jornalística local e hiperlocal. É apenas um exemplo dramático de como o jornalismo local tem uma função social insubstituível numa situação extrema. Você, leitor, não acha que se houvessem jornalistas no local, informando sobre o local para moradores da região, todos teriam interesse direto na sobrevivência financeira desta iniciativa? Isto mostra como as pessoas podem vir a sustentar um jornal local desde que ele se torne indispensável para o bem-estar da população,

As comunidades jornalísticas de prática

O segundo tema desta proposta de reflexão é o trabalho coletivo dentro da atividade jornalística. Até agora predominou o esforço individual como motivação principal do trabalho noticioso. Há razões tecnológicas, funcionais e contextuais que explicam este comportamento, mas desde que as tecnologias digitais empurraram o jornalismo para o uso de múltiplas mídias, o exercício da atividade se complicou. A visão individualista ainda é majoritária no exercício do jornalismo, mas ele depende cada vez mais da interdisciplinaridade para produzir, por exemplo, noticiários mais envolventes graças ao uso combinado de texto, imagens (fotos, vídeos e animações), sons, dados e interatividade com outras pessoas. Na era analógica, já era necessária uma boa dose de trabalho em equipe, especialmente na televisão e no cinema. No ambiente digital, esta exigência se tornou ainda mais intensa e imprescindível.

O jornalismo online multimídia, o jornalismo do futuro, depende de equipes de trabalho onde as funções de complementam e se somam. Os softwares mudam constantemente o que obriga a atualização permanente dos envolvidos em atividades jornalísticas. Não dá para uma só pessoa estar permanentemente atualizada em todos os aspetos da multimídia o que impõe uma integração forçada dos encarregados de cada função e é aí que ocorre o conflito entre os comportamentos, regras e valores associados ao individualismo e as rotinas do trabalho coletivo. Esta mudança de comportamento não ocorre da noite para o dia e nem de forma espontânea. Ela precisa ser induzida pelo debate teórico e por instrumentos como as comunidades de prática (2). O trabalho coletivo em equipe é condição básica para a inovação informativa, algo que é permanente e estrutural na atividade jornalística.

Muitos ainda perguntam se nessas condições o diploma de jornalismo é indispensável para o exercício da atividade noticiosa. O diploma como pedaço de papel não vale nada. O que conta é a competência de quem participa da produção de conhecimentos e informações vinculadas ao interesse social em pequenas e médias comunidades. Isto é facilmente detectável pela prática tanto da convivência social com o público alvo como pela habilidade no manejo de programas e equipamentos eletrônicos. A nova conjuntura torna inevitável uma atualização e revisão dos currículos universitários do jornalismo em instituições de ensino superior, tanto na modalidade presencial como online. Mais ainda quando começa a ficar claro que as faculdades de jornalismo não produzem mais mão-de-obra para o mercado corporativo, mas promovem a formação de especialistas em informação para atuação em comunidades.

A falácia da notícia velha

E por último, o terceiro ponto a refletir é sobre o novo caráter da notícia. Ela perde o caráter de commodity comercializável na troca por publicidade e passa a ser um elemento fundamental na produção de conhecimentos, principalmente das pessoas comuns. Não se trata de um desejo, mas de uma realidade criada pelo fato de a internet ter gerado a publicação de uma superabundância de dados, fatos e eventos que reduziram a quase zero o valor econômico da notícia. Em compensação, aumentou a sua importância social porque as pessoas passaram a poder tomar decisões mais acertadas por disporem de mais opções de escolha.

Além disso, as novas tecnologias digitais de informação e comunicação acabaram com o conceito de notícia velha. O que temos hoje é a notícia não atualizada porque a produção noticiosa tornou-se um processo contínuo, dependente apenas do interesse e recursos de jornalistas investigativos. Os formatos clássicos de apresentação das notícias, como o uso da pirâmide invertida já não tem mais a relevância que tinham antes por que as narrativas se diversificaram em função da enorme variedade de produtores de informações viabilizada pelas redes sociais. A padronização de estilos imposta pelas limitações tecnológicas da era digital na hora de publicar notícias estão cedendo espaço para formatos tipo contador/a de histórias, especialmente quando a narrativa usa recursos multimidia e não linearidade.

Os três temas mencionados neste texto não são novos. Muitos de vocês talvez já tenham lido a respeito. O que ganha cada vez mais urgência é o fato de que estamos sendo atropelados pelas mudanças tecnológicas como a que já está em agenda como o uso da inteligência artificial para produção de conteúdos jornalísticos e a chegada em breve da computação quântica. A inovação tecnológica move-se por uma dinâmica própria e o jornalismo precisa assumir que o seu papel é de mediador entre a tecnologia da informação e as necessidades das pessoas. Não conseguiremos cumprir esta missão sem remover antes as três pedras colocadas em nosso caminho.

São muitos os enfoques e abordagens que podem ser adotados no debate sobre os três pontos que levantei. Eles não são definitivos e nem muito menos completos, porque o máximo que podem pretender é motivar interações no ambiente acadêmico.

Notas

  1. Ecossistema informativo é um conceito novo e que expressa o amplo conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, geográficos e culturais que condicionam os fluxos de dados, fatos e eventos a que estão expostos os membros de comunidades locais e hiperlocais. Um ecossistema não se restringe aos limites municipais ou distritais e nem ao tipo de veículo noticioso predominante na região, porque no ambiente digital as fronteiras físicas se tornaram fluidas e nebulosas.
  2. Comunidades de prática são estruturas formadas por pessoas com interesses comuns na busca de soluções de problemas, através da produção coletiva de conhecimentos. O elemento fundamental numa comunidade de prática é a adesão voluntaria e incondicional à proposta do grupo, porque disto depende a interatividade e criatividade na e

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