Tratamento precoce e Kit Covid

Publicado originalmente em Rede Análise COVID-19. Para acessar, clique aqui.

Afinal, os medicamentos incluídos têm comprovação científica?

Referência da imagem: https://rarehistoricalphotos.com/testing-football-helmets-1912/

Autores: Larissa Brussa (@laribrussa); Mateus Falco (@mateuslfalco)

Revisores: Pâmela Guimarães (@pamgguimaraes); Luciana Santana (@lucfsantana1812); Isaac Schrarstzhaupt (@schrarstzhaupt)

A imagem acima retrata um teste para um protótipo de capacete de futebol americano, realizado em 1912 [1]. A fotografia é um tanto inusitada e nos leva a achar engraçado imaginar que uma pessoa em sã consciência colocaria sua vida em risco em um teste que ela não sabe se terá resultado positivo ou negativo, ainda mais se tratando de bater com a cabeça na parede. Essa atitude retratada na imagem pode ser usada como uma analogia à insistência de prescrição aos medicamentos que compõem o “tratamento precoce” e o “kit covid” por alguns médicos. O fato é que uma grande quantidade de pessoas estimula o uso desses medicamentos na esperança de obter um resultado que traga a cura para a COVID-19 e a normalidade para suas vidas, e isso, até o momento, é uma fuga da realidade. Bom, mas vamos em frente conversar sobre as comprovações científicas (ou a falta delas) que estão por trás da decisão das pessoas em aderir a esses medicamentos.

Enquanto a vacina não chega aos braços da grande maioria das pessoas, as informações incorretas sobre o “tratamento precoce” persistem e prejudicam mais do que auxiliam na crise de saúde pública. O pior acontece quando secretarias municipais ou mesmo o Ministério da Saúde divulgam tamanha desinformação, sustentando uma atitude temerosa com relação à saúde da população. Um exemplo nesse sentido é o artigo sobre o uso da nitazoxanida no “tratamento precoce”, que foi publicado pela revista European Respiratory Journal [2]Este estudo foi feito com financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) brasileiro e teve resultados negativos quanto aos efeitos do medicamento no tratamento precoce contra a COVID-19. Outros estudos tentaram indicar a hidroxicloroquina, em associação ou não com outros medicamentos como a ivermectina e azitromicina. E, se não bastasse, ainda temos os fervorosos defensores da suplementação com vitaminas C, D e Zinco. Até o presidente americano Donald Trump foi divulgador dessa insanidade, mas quando testou positivo, e sentiu os primeiros sintomas da COVID-19, “esqueceu-se” do kit covid e buscou o tratamento de alta tecnologia da farmacêutica Regeneron. A terapia é conhecida como REGN-COV2, um “coquetel” de dois anticorpos monoclonais (chamados de casirivimab e imdevimab), produzidos a partir da seleção de dois anticorpos que melhor neutralizaram uma versão do novo coronavírus em testes de laboratório. Os pesquisadores da Regeneron clonaram (replicaram de maneira sintética) esses anticorpos e testaram como tratamento em pacientes, e em dezembro de 2020 foi publicado um estudo super robusto com os seus resultados [3]. É importante salientar que esse coquetel é uma nova terapia combinada que foi desenvolvida especificamente para a COVID-19, sua produção é complicada e demorada, envolve tecnologia de ponta e nesse momento não é uma terapia viável para tantos pacientes. Essa terapia foi aprovada pelo FDA para uso emergencial nos EUA.

Parece inacreditável que em pleno janeiro de 2021, com um início bastante lento das campanhas de vacinação no Brasil, ainda tenhamos profissionais de saúde que prescrevem o tratamento precoce e o kit covid, apoiados por políticos que deveriam prezar por uma medicina baseada em evidências. O nosso papel como comunidade científica, amparados nos melhores estudos, é sempre divulgar os dados científicos para sustentar a tomada de decisão correta. Não defendemos ideologias, mas sim a ciência. Caso novos estudos robustos, bem feitos e sérios venham a demonstrar a eficácia desses tratamentos, divulgaremos e apoiaremos como tantos outros estudos que trazemos aqui. Todavia, enquanto nada disso acontece, vamos destrinchar cada uma dessas falácias defendidas com unhas e dentes por muitas pessoas, algumas das quais nos últimos dias estão até tentando retroceder em suas posições e incentivos, dizendo que “nunca o fizeram”. Infelizmente, para esses defensores, muitas vezes o bem maior, que é a saúde do paciente, fica em segundo plano. Por isso, pedimos encarecidamente que, antes de repassar qualquer informação divulgada dessa forma, se coloque no lugar de um paciente recebendo este tratamento e reflita se vale a pena defender uma causa vazia e sem fundamento. Agora é hora de analisar os medicamentos que fazem parte do tratamento precoce e do kit covid, então vamos juntos!

Cloroquina (CQ) e Hidroxicloroquina (HCQ)

Os primeiros medicamentos a serem verificados são os recordistas, a famosa dupla Cloroquina (CQ) e Hidroxicloroquina (HCQ), que são os precursores do “tratamento precoce”. A Cloroquina e a Hidroxicloroquina têm uma longa história na prevenção e tratamento da malária e no tratamento de doenças inflamatórias crônicas, incluindo lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reumatoide (AR) [5]. 

Ao pesquisar sobre as palavras-chave “Cloroquina”, “Hidroxicloroquina” e “COVID-19” no PubMed, o maior repositório mundial de artigos científicos publicados, encontramos um total de 1327 publicações [4]. Isso demonstra que esse assunto é bastante discutido e que possui estudos amplamente divulgados. Mas o que de fato esses estudos têm a nos dizer? 

Uma prova científica forte sobre esse tema é uma revisão sobre o assunto, publicada em maio de 2020, no renomado periódico JAMA – Journal of American Medical Association. Esse periódico possui fator de impacto 19.989, e está em 5º lugar dentre 154 periódicos na categoria “Medicina, Geral e Interna”, sendo um jornal com fortíssima aceitação entre a comunidade científica. Nesta revisão foram incluídos um total de 1315 artigos sobre os termos relacionados a SARS-CoV-2 (novo coronavírus), tratamento e farmacologia [5]. Uma das conclusões do estudo aponta que, no momento, não há terapias médicas que tenham demonstrado definitivamente melhorar os resultados de pacientes com COVID-19. Vários medicamentos já demonstraram atividade in vitro (ou seja, em células cultivadas de forma laboratorial) contra o vírus SARS-CoV-2 [7] ou benefícios clínicos potenciais em estudos observacionais, mas nenhum demonstrou evidência desses possíveis benefícios in vivo. 

Sobre os estudos incluídos nesta revisão, os autores destacam os seguintes aspectos: apesar dos resultados de inibição do SARS-Cov-2 in vitro (com doses altas de CQ e HCQ) [7] e de poucos resultados clínicos supostamente promissores, esses estudos favoráveis possuem uma série de limitações, tais como: o número pequeno de participantes; a retirada de 6 pacientes que pertenciam ao grupo que estava recebendo a HCQ, pois foi necessário interromper precocemente o tratamento devido ao surgimento de doença crítica ou intolerância, ambas as situações devido aos medicamentos; as cargas virais variaram ??entre os grupos que receberam apenas a HCQ e os que receberam alguma terapia combinada (HCQ + outro medicamento); e, por fim, nenhum resultado clínico ou de segurança foi relatado [6]. Essas limitações, juntamente com as preocupações de cardiotoxicidade atreladas aos medicamentos, não apoiam a adoção desse regime sem estudos adicionais. 

Em relação à falta de evidências que suportem o uso desses medicamentos, um estudo prospectivo realizado na China, com 30 pacientes internados pela COVID-19, escolheu aleatoriamente pacientes para receberem dois tipos de tratamento. Um grupo receberia 400 mg de HCQ diariamente, por 5 dias, além do tratamento padrão (tratamento de suporte, administração de interferon e outros antivirais) e o outro grupo receberia apenas o tratamento padrão, na proporção de 1:1 (1 paciente HCQ + tratamento padrão comparado com 1 paciente apenas tratamento padrão). Neste estudo não foi encontrada diferença nos resultados de carga viral do novo coronavírus entre os participantes. No sétimo dia, a redução na quantidade de vírus foi semelhante, com 86,7% de eliminação do vírus para o grupo HCQ + tratamento padrão e 93,3% para grupo tratamento padrão apenas, e essa diferença entre os valores não teve significância estatística [8]. Nem mesmo a dose ideal a ser prescrita pelos médicos é um consenso, visto que mais estudos são necessários para determiná-la [9]. Outro fator importante a ser destacado é que tanto a HCQ quanto a CQ  podem causar efeitos adversos raros e graves (<10%), incluindo prolongamento da atividade dos ventrículos, hipoglicemia (diminuição níveis de glicose nas células), efeitos neuropsiquiátricos e retinopatia (problemas na visão). Aos pacientes que fazem uso desses medicamentos é indicado a eletrocardiografia básica antes e após início do uso, devido ao potencial para arritmias, especialmente em pacientes gravemente enfermos e aqueles que tomam medicamentos concomitantes como azitromicina e outras classes de antibióticos [9]. 

Outro grande estudo chamado Solidarity, planejado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgou resultados de ensaios de mortalidade de quatro medicamentos já existentes e reaproveitados para tratar a COVID-19 – remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir e interferon beta-1a – em pacientes hospitalizados por COVID-19. Os pacientes internados foram divididos aleatoriamente entre um dos regimes de medicamentos do ensaio e controle aberto (ou seja, não receberam essas medicações, apenas o tratamento padrão). Foram calculadas as taxas de mortalidade, com estratificação de acordo com a idade e a situação da ventilação mecânica (suporte geralmente oferecido aos pacientes graves) que o paciente recebeu no início do estudo. Como conclusão geral, os autores citam que esses regimes de remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir e interferon tiveram pouco ou nenhum efeito em pacientes hospitalizados com COVID-19, conforme indicado pelos dados de  mortalidade geral, início da ventilação mecânica e duração da internação hospitalar avaliados [10]. Uma meta-análise (estudo com maior poder de comprovação – para entender a hierarquia dos estudos, acesse esse outro texto da rede) publicada em agosto de 2020 pelo periódico Clinical Microbiology and Infection, com fator de impacto de 6.4, incluiu 11.932 participantes para o grupo da HCQ, 8081 para HCQ com azitromicina (AZ) e 12.930 para o grupo controle (participantes que não receberam medicação). O estudo divulgou a conclusão de que a HCQ isolada não foi associada à redução da mortalidade em pacientes hospitalizados com COVID-19, e que a combinação de HCQ e AZ aumentou significativamente a mortalidade dos pacientes.

Desde que a pandemia se instalou em países como os Estados Unidos e Brasil, nota-se a promoção do “tratamento precoce” com esses medicamentos, endossada por políticos de extrema-direita (vide os presidentes atuais dos dois países). O Instituto Questão de Ciência citou em um de seus textos que existe uma lista de recomendações de automedicação (que, como de costume, vem acompanhada de um alerta clínico sobre os perigos da automedicação) circulando no Facebook sob o nome de “Protocolo de Marselha”. “Marselha” é o nome da cidade francesa em que atua o pesquisador francês Didier Raoult, de péssima reputação, que numa série de artigos científicos de baixa qualidade, com diversas limitações e vieses (fatores estes que podem mascarar a resposta verdadeira do estudo) teria demonstrado a eficácia da combinação HCQ+AZ contra o novo coronavírus [12]. O autor deste artigo, inclusive, foi descrito como “mago” descobridor da “cura milagrosa” do COVID-19 pelo próprio Trump. 

Para testar a indicação desses medicamentos como “tratamento precoce” foi conduzido um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo nos Estados Unidos e em partes do Canadá, testando a HCQ como profilaxia pós-exposição. O estudo contou com adultos que tiveram exposição doméstica ou ocupacional a um indivíduo com diagnóstico confirmado de COVID-19. Um grupo ficou exposto a uma distância de menos de 2 metros por mais de 10 minutos, sem usar máscara facial ou protetor para os olhos (exposição de alto risco)  e outro grupo foi exposto fazendo uso de máscara, mas sem proteção para os olhos (exposição a risco moderado). Dentro de 4 dias após a exposição,  os participantes foram distribuídos aleatoriamente para receberem placebo ou HCQ (800 mg uma vez, seguido de 600 mg em 6 a 8 horas, depois 600 mg por dia por 4 dias adicionais). O desfecho primário avaliado foi a incidência de COVID-19 confirmada em laboratório ou doença compatível com COVID-19 em 14 dias. Os resultados apontaram que, após a exposição de alto risco ou risco moderado, a HCQ não preveniu a doença e os participantes confirmaram a infecção quando usada como profilaxia pós-exposição dentro de 4 dias após a exposição. Além disso, os efeitos colaterais foram mais comuns com HCQ do que com placebo (40,1% vs. 16,8%), e não foram relatadas reações adversas graves [11].

Em resumo, podemos salientar que o uso precoce desses medicamentos, logo aos primeiros sintomas e na ausência de diagnóstico, aparenta ser a receita ótima para dar a impressão de que o remédio funciona, mesmo que ele não sirva para nada. Não apenas cidadãos comuns, mas também médicos dedicados podem, infelizmente, acreditar. Além disso, mesmo para sintomas graves da doença, esses medicamentos não possuem comprovação científica que justifique seu uso e demonstre que seus benefícios superam os prejuízos causados. Atualmente existem vários ensaios clínicos randomizados de cloroquina e hidroxicloroquina para examinar seu papel no tratamento da COVID-19. Estudos de profilaxia com CQ em profissionais de saúde [13] e HCQ para profilaxia [14] pós-exposição após exposições de alto risco estão planejados ou em andamento.

Azitromicina

A azitromicina é um antimicrobiano da classe dos macrolídeos usado para o tratamento de infecções como gonorreia, tratamento de pneumonia adquirida na comunidade, tratamento de uretrite em ambos os sexos e cervicite no sexo feminino, causados por Clamídia. Mais informações sobre esse medicamento podem ser encontradas neste texto da Rede [15].

Os benefícios clínicos relatados da combinação de HCQ e azitromicina para pacientes para a COVID-19 vem de reportagens da mídia ou de ensaios não randomizados com pequeno número de participantes (menos de 100 pacientes). O benefício documentado da HCQ com ou sem azitromicina é muito limitado, especialmente na doença grave. Embora esses medicamentos, individualmente ou em combinação, possam ser eficazes, esses benefícios precisam ser estabelecidos com ensaios clínicos randomizados antes da adoção generalizada desses tratamentos [5]. Outro argumento contrário ao uso desse medicamento é que, por ser um antimicrobiano, ele não tem capacidade de combater uma infecção viral como a causada pelo SARS-CoV-2. É importante destacar que o tratamento com antimicrobiano para COVID-19 deve ficar restrito ao uso hospitalar em caso de agravamento do quadro clínico do paciente, como uma infecção bacteriana oportunista.

Em agosto de 2020 a revista Antimicrobial Resistance & Infection Control publicou um artigo de revisão sobre a resistência da bactéria Neisseria gonorroeae à azitromicina. Essa bactéria está associada com a doença sexualmente transmissível chamada gonorreia, responsável por afetar genitais de ambos os sexos, além de colonizar cavidade orofaríngea e ser passível de transmissão vertical (mãe-filho). Segundo essa revisão, ocorrem 78 milhões de novos casos de gonorreia no mundo por ano, na faixa etária entre 15 a 49 anos, sendo que até 85% desses casos ocorrem em países em desenvolvimento, como o Brasil. A questão levantada pelo artigo é sobre a resistência da bactéria N. gonorroeae no tratamento clássico com azitromicina. Um dos principais receios está relacionado com a administração conjunta com outro antimicrobiano, ceftriaxone, preconizada em alguns países, sugerindo o risco do aumento de resistência bacteriana. Quando se faz um tratamento combinado com mais de um antimicrobiano é porque a chance de que apenas um deles funcione contra a infecção é menor [16]. Assim, é possível notar que estão surgindo cepas de N. gonorroeae mais resistentes a azitromicina, ou seja, esse medicamento sozinho (monoterapia) não é mais suficiente para eliminar a infecção bacteriana, acarretando prejuízo no tratamento dos pacientes acometidos pela infecção. Além disso, não existe tratamento alternativo e poucas drogas estão em processo de desenvolvimento, então existe a necessidade de vigilância no surgimento de cepas resistentes e de otimização dos tratamentos disponíveis. Essa otimização passa pelo uso racional de antimicrobianos. Mas, qual a ligação entre tratamento precoce da COVID-19 com azitromicina e N. gonorroeae resistentes à azitromicina?

Figura 1 – Representação da resistência bacteriana à Azitromicina [Adaptado da Cartilha da Fiocruz, 2018].

O uso indiscriminado da azitromicina no tratamento precoce traz o problema da seleção de bactérias N. gonorroeae. Como alertado anteriormente, não existe um medicamento capaz de tratar os pacientes infectados para essa bactéria caso a azitromicina perca a sua eficácia e são poucas as drogas em fase de desenvolvimento, revelando a urgência do assunto. A seleção das bactérias resistentes pelo uso irracional da azitromicina ocorre como demonstrado na imagem acima (Figura 1): 

1 – Como vimos acima, cerca de 85% dos casos de gonorreia ocorrem em países em desenvolvimento como o Brasil. E dentro dessa enorme quantidade de casos alguns pacientes podem apresentar uma população de bactérias resistente à azitromicina. Na figura vemos várias bactérias suscetíveis (azul) e uma bactéria resistente (verde);

2 – O uso indiscriminado da azitromicina através do “tratamento precoce” por muitas pessoas no Brasil pode levar a seleção dessa bactéria resistente (verde). O uso irracional e irrestrito da azitromicina acaba “eliminando” as bactérias suscetíveis (azul), e isso por si só não é um problema. O problema é quando ocorre a seleção de uma bactéria resistente (verde) como mostrado na imagem; 

3 – A bactéria resistente (verde) selecionada agora começará a colonizar a população. Sabemos que a gonorreia é uma doença transmitida sexualmente, portanto, os casos vão se espalhar. A situação ficará crítica quando os tratamentos convencionais não funcionarem mais para combater a infecção, como a azitromicina. E se apenas por hipótese essa bactéria for capaz de causar mais infecções? E se essa versão resistente ainda venha a causar uma doença mais grave? Não teríamos uma saída com medicamentos porque o tratamento primário com azitromicina foi esgotado. Lembrando que um novo medicamento demora para ser desenvolvido.

Explicado o possível surgimento das cepas resistentes das bactérias resta alertar a população do uso irracional de um medicamento importante no combate a gonorreia e outras doenças. Em resumo, o uso sem necessidade, inclusive de forma inapropriada como no “kit covid”, poderá acarretar surgimento de uma superbactéria e possivelmente com consequências pandêmicas se considerarmos os números de infectados mundialmente, que são ao menos 78 milhões de pessoas. 

Ivermectina

Assim como a HCQ e CQ, o uso da ivermectina surgiu devido à divulgação de um artigo que afirmava sua ação antiviral in vitro, em doses muito maiores do que aquelas receitadas para seres humanos [17]. Além disso, nenhum outro estudo em modelos animais ou humanos demonstrando a eficácia da ivermectina para COVID-19 foi publicado. Recentemente nós escrevemos um texto explicando os detalhes sobre esse medicamento, e o porquê de ele endossar o coro dos negacionistas que insistem em acreditar em tratamentos sem evidência científica [18].

Um adendo precisa ser feito em virtude da recente publicação do artigo “Os efeitos do tratamento precoce com ivermectina na carga viral, sintomas e resposta humoral em pacientes com COVID-19 não severa: um teste clínico randomizado piloto, duplo-cego, placebo e controlado” (tradução e grifo nosso) publicado na revista EClinicalMedicine. O trabalho pertence ao grupo Institute of Global Health (ISGlobal) baseado em Barcelona sob a coordenação de Carlos Chaccour, médico e professor assistente na University of Navarra Clinic. Esse estudo é um piloto para avaliar se a dosagem de 400 mcg/kg de ivermectina, aprovada para administração na Europa, tem impacto no início da doença. Esse estudo também faz parte do projeto SAINT (SARS-CoV-2 Ivermectin Navarra-ISGlobal Trial) desenvolvido pelo ISGlobal e pela Universidade de Navarra. A escolha dos 24 pacientes participantes foi feita a partir do resultado positivo de RT-PCR e com sintomas de febre e tosse com menos de 72h de surgimento. Foram selecionados pacientes de um único centro de Emergência (em Pamplona), com sintomas leves, que foram divididos em 2 grupos com 12 participantes cada. Um grupo recebeu o placebo, enquanto o outro recebeu o tratamento com ivermectina. Os pacientes do estudo foram avaliados por 28 dias após o tratamento, responderam um questionário sobre os sintomas, avaliação dos sinais vitais e amostras de sangue para testagem. Testes RT-PCR com amostra de swab nasofaríngeo foram aplicados nos dias 4, 7, 14 e 21 do estudo com a finalidade de avaliar a carga viral, através da avaliação da expressão dos genes N e E do novo coronavírus. O desfecho primário do estudo (resultado principal esperado) foi quantificar os casos positivos para SARS-CoV-2 (novo coronavírus). Os desfechos secundários foram avaliar quantidade de carga viral, sintomas e a piora do quadro clínico levando ao óbito.

Uma ressalva importante a ser feita é entender a enorme quantidade de estudos observacionais sobre o assunto. O projeto SAINT, conduzido por Carlos Chaccour, deve ser um guia para o entendimento sobre como o método científico progride, pois é um modelo de pesquisa que busca responder objetivos claros, apesar dos resultados não conclusivos, devido ao baixo número de participantes e da participação de um único centro de atendimento dos pacientes. O primeiro resultado avaliado foi que 100% dos pacientes avaliados apresentaram positividade para o vírus após o dia 7 de tratamento, ou seja, o tratamento não curou os pacientes tratados. 

Sobre a avaliação na diminuição da expressão dos genes N e E, e consequentemente carga viral, foi relatada uma tendência de redução de um dos genes, mas essa redução não apresentou valor estatisticamente significativo, ou seja, não é um valor comprovadamente relevante, devido à limitações atreladas ao estudo. Outra análise realizada envolveu os sintomas, e foi possível observar uma melhora de 50% na anosmia/hiposmia (sintomas de perda de olfato e paladar relatados pelos participantes) entre os participantes do grupo que recebeu o tratamento com ivermectina, e também uma redução de 30% na tosse. Porém, quando a gravidade dos sintomas aumenta, como febre, dor de cabeça, distúrbios gastrointestinais e dificuldade para respirar, o grupo que recebeu ivermectina apresentou os piores resultados em relação ao grupo placebo. A avaliação de resposta imune foi feita observando-se a formação de anticorpos IgG, que estão presentes em uma resposta imunológica tardia. O grupo que recebeu ivermectina teve uma diminuição dessa resposta, ou seja, menor presença de anticorpo IgG. Uma hipótese que pode explicar essa diminuição da resposta é devido a menor carga viral, portanto, fica uma ressalva quanto a diminuição da resposta imunológica em pacientes em tratamento com ivermectina. 

Sobre os dados de segurança do uso da ivermectina entre os pacientes testados, não houve diferenças significativas, com alguns relatos de visão turva e tontura maior no grupo tratado com ivermectina. Todavia, outros estudos precisam ser feitos com  um número maior de pessoas, para avaliar os efeitos adversos com propriedade. Com relação aos sinais vitais, marcadores inflamatórios e outros parâmetros não demonstraram diferenças importantes. O autor ressalta que apesar dos resultados mencionados acima, ainda é necessária uma maior exploração desse tipo de dado em testes clínicos maiores e com uma diversidade maior de pacientes. Como esse é um estudo piloto, é preciso esclarecer que não houve uma diminuição da duração dos sintomas, como febre e mal-estar e nem melhora diretamente relacionada com os marcadores inflamatórios. Aguardamos outros estudos mais amplos para maiores conclusões.

Nitazoxanida

A nitazoxanida é um vermífugo que, assim como os seus três companheiros descritos acima, apresentou atividade antiviral contra coronavírus, e também contra influenza e hepatite B e C em experimentos in vitro. Devido a esse efeito antiviral verificado em laboratório ela passou a ser vista como uma alternativa no tratamento da infecção por SARS-CoV-2. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) financiou o artigo “Uso precoce da nitazoxanida em Covid-19 moderada: randomizado, teste placebo-controle” publicado na revista European Respiratory Journal. O estudo concluiu que não houve diferença na resolução dos sintomas como tosse seca, febre e fadiga entre os grupos que tomaram nitazoxanida e placebo durante os 5 dias da terapia. O desfecho primário do estudo, que era a resolução dos sintomas, foi analisado pela Rede Análise Covid-19 após o lançamento espalhafatoso feito pelo governo federal. Naquela análise foi demonstrada a ineficácia do medicamento, antes mesmo da publicação na revista Europen Respiratory Journal. Não questionamos a integridade e idoneidade dos pesquisadores que conduziram esse estudo. Porém, uma das críticas a serem feitas é com relação à propaganda exagerada por parte do ministro Marcos Pontes do MCTI e à divulgação desse medicamento como eficaz no site do MCTI. Infelizmente, o financiamento de 5 milhões de reais foi gasto em uma pesquisa sem fundamento prático, apenas como motivação política. Hoje é possível ver os desdobramentos desta ação em uma luta cansativa para empurrar o tratamento precoce por meio dos “kits covid” em oposição à vacinação. Sendo assim, vamos apresentar os resultados na tabela a seguir:

Figura 2 – Curva Kaplan-Meier mostrando as diferenças nos resultados entre grupo intervenção (nitazoxanida, em azul) e grupo controle (placebo, em vermelho).

Em epidemiologia, esse gráfico é conhecido como curva de Kaplan-Meier. Então, vamos entender como devemos ler essa tabela? Podemos compará-la como uma disputa, por exemplo uma “corrida subindo escada”. Vamos pensar na corrida entre nitazoxanida (azul) contra o placebo (vermelho). Porém, nessa “corrida” não vamos avaliar o resultado somente na chegada (último degrau), a avaliação é feita em etapas, como se fossem os degraus no gráfico, enquanto os dois grupos da pesquisa, nitazoxanida e placebo vão evoluindo no tempo. Então, essa subida é feita em duas direções: na vertical (melhora dos sintomas) e horizontal (tempo). Para uma melhor visualização no gráfico, quando comparamos as duas cores, azul (nitazoxanida) e vermelho (placebo), aquela cor que estiver mais alta em cada degrau significa que as pessoas que estão tomando nitazoxanida ou placebo apresentam melhora do quadro clínico. Usando como referência a linha horizontal do tempo, podemos verificar que o grupo placebo (vermelho) esteve em 3 momentos acima do grupo nitazoxanida (azul), nos dias 1 a 2, 3 a 4 e 4 a 5. Nos outros dois dias (0 a 1, e 2 a 3) os dois grupos não tiveram diferença na resolução dos sintomas. O que podemos concluir dessa “corrida de degraus” é que o grupo placebo tem os melhores resultados dos sintomas, diferentemente do grupo tratado com o vermífugo nitazoxanida. Afirmar que esse medicamento “salva vidas” passa longe de uma avaliação científica adequada como demonstrado acima. Um breve comentário: na realidade são as vacinas que estão salvando vidas!

A partir desse momento vamos mencionar a desistência do Ministério da Saúde em  relação ao uso desse medicamento, conforme publicado. Contudo, essa saída de cena de um medicamento ineficaz contra a COVID-19 não pode ser vista como uma desistência do “kit covid”, pois a propaganda continua sendo feita e com resultados desastrosos em uma região como Manaus, que pede por socorro, não com promessa e sim com ação. Desde o começo foi aventado o uso de ivermectina no Amazonas, e as quedas no número de casos foram comemoradas como se fossem devido ao uso do medicamento. 

Outro erro emblemático envolvendo o Amazonas é sobre o uso indevido do termo imunidade de rebanho. Permitir que as contaminações ocorressem livremente para tentar obter a tal imunidade de rebanho (que só deve ser atingida através da vacinação) não chegou nem perto de ajudar na imunização coletiva da população, pelo contrário, foi uma escolha temerária que levou ao colapso do sistema de saúde. O que resta é o questionamento: afinal de contas, quem vai se responsabilizar por essa falha? Sabemos que a situação não foi controlada no início da pandemia, o descaso continuou durante todo o ano passado e nada foi feito para preparar o Amazonas ou qualquer outro estado brasileiro para uma 2ª onda de contaminações. Em contrapartida, o que se viu foi a criação de muita desinformação e fake news para desviar a atenção do verdadeiro problema, junto com um ataque desproporcional à nossa maior ferramenta para tentar combater essa pandemia, que é a VACINAÇÃO

Outra atitude tomada pelo Ministério da Saúde nessa crise do Amazonas foi a divulgação de um aplicativo criado para profissionais de saúde chamado TrateCOV, que nada mais é do que uma propaganda de tratamentos sem comprovação científica, sendo estimulados de forma incorreta. Esse aplicativo era para ser usado exclusivamente por profissionais da saúde, mas a jornalista e divulgadora científica Luiza Caires, em uma postagem no Twitter, mostrou que qualquer cidadão pode obter o diagnóstico e a receita do tratamento precoce. Essa falha incentiva a automedicação e o não acompanhamento do paciente por um profissional de saúde. De acordo com o parecer nº 4/2020 do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o uso de hidroxicloroquina e cloroquina, a decisão para o uso desses medicamentos fica a critério do médico assistente em decisão compartilhada com o paciente. No entanto, a jornalista científica Luiza Caires demonstrou que o paciente consegue um diagnóstico e a receita sem a assistência médica, demonstrando de maneira prática que esse aplicativo está em desacordo com os preceitos afirmados pelo CFM quanto a prescrição dos medicamentos.

 O Brasil já perdeu dois ministros da saúde, Henrique Mandetta e Nelson Teich, ambos médicos, e mais de 210 mil vidas. Ainda teremos que lidar com as possíveis sequelas provocadas pela COVID-19 e pelo uso irracional de medicamentos, tudo por uma simples questão de não assumir o erro e trabalhar em favor do país. Não apenas se questione sobre os erros, mas cobre quem comete esses erros, exija atitudes com nível de responsabilidade das nossas autoridades. A saúde de uma nação é o bem mais precioso dela, e requer que as autoridades tenham responsabilidades que o cargo máximo exige. A situação do estado do Amazonas hoje é calamitosa e não podemos atribuir a culpa das mortes à falta de adesão da população ao tratamento precoce com cloroquina. Infelizmente, sabemos que a população por lá toma SIM cloroquina, mas para combater a malária, doença endêmica por lá e até o momento, não temos evidências científicas de que a cloroquina tenha efeitos positivos para a COVID-19.

Conclusão

O fato de juntar vários medicamentos com um mesmo propósito, batizando-os de “kit covid”, e tendo como objetivo um suposto tratamento precoce parece ser um método interessante em uma análise superficial. Quando pensamos que cada um dos componentes desses kits apresenta efeitos colaterais já deveríamos ficar alertas com o uso irrestrito, e quando pensamos que estão sendo administrados vários medicamentos ao mesmo tempo, as possibilidades de efeitos adversos aumentam. A situação é muito parecido com o teste do capacete na imagem inicial, o paciente admite o risco ao usar esse conjunto de medicamentos. Sem contar que cada paciente apresenta possibilidades de reagir de forma diferente a cada um desses medicamentos. E para muitos, a indicação indiscriminada já é uma situação gravíssima. Por exemplo, nos casos de pacientes cardíacos ou hipertensos a prescrição não pode ser feita de modo aleatório e nem deveria ser proposta. Queremos frisar que, no momento, não há terapias médicas que tenham demonstrado definitivamente melhorar os resultados em pacientes com COVID-19. Vários medicamentos demonstraram somente atividade in vitro contra o vírus SARS-CoV-2, ou apenas benefícios clínicos potenciais em estudos observacionais ou pequenos estudos não randomizados. É preciso ficar claro que até o momento vários dos medicamentos estão sendo testados individualmente e que não existe um estudo robusto com o conjunto dos medicamentos distribuídos nos kits para avaliar os efeitos desses em um tratamento.

Referências

[1] https://rarehistoricalphotos.com/testing-football-helmets-1912/

[2] https://erj.ersjournals.com/content/early/2020/12/17/13993003.03725-2020

[3]https://investor.regeneron.com/news-releases/news-release-details/regeneron-announces-encouraging-initial-data-covid-19-antibody/

[4]https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/?term=chloroquine%20hidroxicloroquina%20covid-19

[5] https://sci-hub.se/https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2764727

[6]https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0924857920300996?via%3Dihub

[7] https://academic.oup.com/cid/article/71/15/732/5801998

[8] http://www.zjujournals.com/med/CN/10.3785/j.issn.1008-9292.2020.03.03

[9]https://www.accessdata.fda.gov/drugsatfda_docs/label/2019/009768Orig1s051lbl.pdf

[10]https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33264556/ 

[11]https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32492293/

[12]https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/06/03/pesquisador-de-medicamentos-para-malaria-explica-perigos-da-cloroquina

[13] https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04303507

[14]https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04308668?cond=NCT04308668&draw=2&rank=1

[15]https://redeaanalisecovid.wordpress.com/2021/01/08/o-uso-off-label-de-medicamentos/

[16]https://aricjournal.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13756-020-00805-7#Abs1

[17]https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0166354220302011

[18]https://redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/12/22/ivermectina-sera-mesmo-a-droga-milagrosa/

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