Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Elstor Hanzen. Para acessar, clique aqui.
Educação | A partir de 2024, todos os editais de seleção para ingresso nos PPGs da UFRGS deverão ter reserva de vagas por ações afirmativas. Além de fortalecer a equidade, nova resolução, publicada em junho, traz orientações claras e dispositivos legais que buscam dar segurança aos candidatos
*Foto: Flávio Dutra/JU
Educadora popular há cerca de três décadas em Porto Alegre e mulher negra, Paulina dos Santos Gonçalves sonhava em entrar em uma universidade pública desde os anos 90. Graduou-se em Serviço Social e fez especialização em instituições privadas, e o sonho da pós-graduação pairava no horizonte. “Foram mais de 20 anos olhando editais, mas sem real oportunidade”, descreve a atual doutoranda.
Em 2019, por intermédio de uma amiga, soube do curso Afirmação na Pós. “Fui selecionada para o curso e, na primeira aula já me motivei a participar do edital para mestrado que estava aberto na Educação. Foi desafiador porque, na época, trabalhava 40 horas na coordenação de equipe”, relata. Para dar conta da rotina, estudava de madrugada e nos finais de semana.
Logo veio a pandemia, e os desafios do cuidado com a vida e a família se sobrepuseram às demais tarefas. Mesmo assim, Paulina conseguiu terminar, em 2021, o mestrado e participar da seleção para o doutorado na mesma linha de pesquisa. Aos 53 anos, cursa doutorado em Educação na UFRGS. “Assim, de certa maneira, engatei na pós em 2019 e sigo até aqui ainda investigando as juventudes em situação de rua e os processos de aprendizagem possíveis, sobremaneira na manutenção da vida”, resume.
Assim como Paulina, Graziela Oliveira Neto da Rosa, 42 anos, é mulher negra, tem origem e trajetória semelhante. Preparou-se no curso de extensão Afirmação na Pós, concluiu o mestrado em 2021 e entrou no doutorado em 2022 na UFRGS. “Venho da periferia de Porto Alegre, Cohab Cavalhada. Estudei em escola pública a vida toda. E, quando conclui o ensino médio, deparei-me com sérias dificuldades em acessar a universidade pública”, lembra.
Quando Graziela começou a se preparar para ingressar na pós, ainda não havia ações afirmativas, além de ter a necessidade de trabalhar para sobreviver. Só 12 anos após concluir o Ensino Médio, ao terminar a primeira graduação, tomou coragem para enfrentar a seleção da pós-graduação.
“Também vivi um processo de não pertencimento, porque eu fui educada a entender que a UFRGS não era meu lugar. Isso acabou retardando a minha chegada”
Graziela da Rosa
Partida e chegada
O suporte que faltava para Paulina e Graziela acessarem a pós-graduação em universidade pública foi obtido no curso Afirmação na Pós. A iniciativa de extensão começou em 2018, momento em que surgiam os primeiros processos seletivos para pós-graduação da UFRGS com ações afirmativas. “Posso dizer que nasceu da escuta. Em certa ocasião, durante uma atividade do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), em parceria com o Sopapo Poético, ponto negro de poesia, um participante perguntou quando poderíamos fazer um projeto pra auxiliar negros e negras, principalmente aqueles há mais tempo afastados da academia, a entrar nos cursos de pós-graduação”, relembra Rita de Cássia dos Santos Camisolão, coordenadora do Afirmação na Pós.
A programação do curso aborda questões relevantes que o candidato irá enfrentar nos processos seletivos de modo geral: elaboração de anteprojeto de pesquisa, organização de currículo lattes e memorial descritivo, e preparação para entrevista. Além disso, a ideia é proporcionar o encontro entre interessados e pós-graduandos já inseridos em programas de pós-graduação pela reserva de vagas. A cada edição do curso também podem acontecer reformulações nas atividades, a partir da avaliação realizada com a participação dos cursistas. Segundo Rita, normalmente a elaboração do anteprojeto de pesquisa e do currículo lattes são os elementos mais apontados como fundamentais na formação.
Além de auxiliar na qualificação para o enfrentamento aos editais, o curso e a convivência no ambiente universitário mexem com aspectos pessoais e de autoestima dos candidatos, igualmente importantes na preparação para entrada na pós. “Para o ingresso no mestrado, o maior desafio foi romper com a ideia de que a pós-graduação não era para mim”, relata Paulina. Esse autojulgamento negativo foi superado no cursinho preparatório. “Eu sempre digo que meu currículo lattes nasceu durante o curso”, completa.
Não ser oriunda da UFRGS, não conhecer os professores, não saber como se dão as etapas do processo e, por tudo isso, não se sentir capaz de ocupar esse lugar de intelectualidade também foram dificuldades que tiveram que ser desconstruídas por Graziela na preparação para o processo seletivo. “Precisamos estar dentro da academia para ajudar nesse processo de descolonização, nesse ambiente que ainda é eurocêntrico. Na dúvida, busque apoio com outras pessoas que já passaram por esse processo”, aconselha. Depois disso, é ler o edital com atenção e encarar com tranquilidade o processo.
Como se preparar para um processo seletivo de uma pós-graduação dentro das ações afirmativas? Graziela e Paulina dão algumas dicas:
- Entender-se como pessoa sujeita do direito à educação e às ações afirmativas.
- Ler atentamente o edital e as orientações para cada etapa e estabelecer um cronograma pessoal para providenciar as documentações exigidas.
- Organizar tempo para leituras e as produções, fazer fichamento, filtrando aquelas que dialogam com seus interesses de pesquisa.
- Pesquisar na página do programa quem são as professoras e os professores, suas pesquisas, os grupos de orientandos e orientandas e publicações.
- Usar os canais de comunicação com o programa de pós-graduação para tirar suas dúvidas.
- Compreender que as ações afirmativas são um caminho, mas ainda enfrentam desafios.
Equidade e meritocracia
Para o diretor do DEDS e docente do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da UFRGS (Faced) José Antônio dos Santos, quem mantém as universidades públicas são os mais pobres, que são a maioria da população brasileira, negros e negras. O professor destaca que é justo que essas pessoas ocupem esses espaços e abram as portas, como fizeram desde o começo da discussão nacional sobre as cotas, no início dos anos 2000, para os demais grupos pauperizados (indígenas e pobres brancos de escolas públicas).
O docente da Faced ressalta que a meritocracia é uma palavra polissêmica que une poder e mérito. Partindo daí, segundo José Antônio, merecimento e esforço, em geral, justificariam o desempenho individual nas conquistas. Nesse sentido, ele enfatiza que não acredita na meritocracia, mas nas conquistas como resultado do esforço de muitas pessoas ou de coletivos.
“Ninguém faz nada sozinho. Todos precisamos de pessoas, amigos, familiares, trabalhadores que nos ajudam nas conquistas, vistas como individuais na compreensão ocidental capitalista”
José Antônio dos Santos
Ainda conforme o professor, para um indígena ou negro, por exemplo, jamais a conquista é individual. As justificativas de manutenção das desigualdades são respaldadas pelas ideias de meritocracia, aponta.
Uma referência mais justa, que leva em conta a desigualdade de condições dos candidatos na concorrência, é a equidade. “Com relação à questão de equidade, estamos com uma resolução vigente que contempla, no mínimo, 30% das vagas em cada PPG destinado a candidatos oriundos de ações afirmativas”, afirma o pró-reitor de Pós-graduação da UFRGS, Júlio Barcellos.
Ele se refere à Resolução n.º 837/23 da Câmara de Pós-graduação (Campg), aprovada em junho deste ano. A resolução contempla um universo relativamente amplo, que possibilita pessoas de diferentes origens serem incluídas na pós-graduação. “Abrigamos, inclusive, a estrangeiros, refugiados”, aponta. Ressalta ainda que se trata de algo inovador numa universidade do porte da UFRGS, pois praticamente há mil alunos ingressando por esse sistema, o que resulta numa pós-graduação mais inclusiva, rica culturalmente, mesmo valorizando e mantendo o mérito da qualidade. “Acreditamos muito nesse sistema”, pontua.
Além de assegurar o ingresso, há o desafio e uma ênfase especial para a permanência, conforme o pró-reitor. “Teremos que criar programas específicos de manutenção desses candidatos que são incluídos pelas ações afirmativas”, analisa. Isso porque, segundo Barcellos, a permanência não é uma questão exclusivamente financeira, mas que abarca também acesso, acolhimento, atendimento especializado, entre outras ações que estão no foco da pró-reitoria.
“Atualmente há uma diminuição muito expressiva na procura pelos estudantes por mestrado e doutorado, e alguns estudos apontam o desinteresse pela pesquisa, os baixos valores das bolsas, uma grande evasão na graduação e o aumento na oferta de vagas no Brasil”
Júlio Barcellos
Por isso, há uma série de ações para aumentar e ampliar a diversidade de candidatos na pós-graduação. Entra elas, mais divulgação dos processos seletivos, inclusive nas redes sociais, participação em seminários internos com os segmentos empresariais e realização de provas online em âmbito nacional e internacional. “Tudo isso para aumentar o universo de candidatos”, destaca Barcellos.
A UFRGS tem um conjunto de 110 programas de pós-graduação stricto sensu, abarcando praticamente todas as áreas de conhecimento, agrupados nas 47 áreas da Capes. No momento, apenas 17 programas não têm doutorado. “Isso basicamente ocorre porque ampliamos a nossa pós-graduação com programas novos, e estes recebem inicialmente a nota 3 para serem autorizados a funcionar”, explica o pró-reitor. Após a primeira avaliação, realizada quadrienalmente, é que o programa, ao receber uma nota 4, está autorizado a solicitar doutorado.
Transparência
A Resolução 837/2023 da Campg, assim como a 003/2018, estipula requisitos mínimos para os processos seletivos, como a etapa de inscrição e de avaliação de currículo. Os PPGs têm autonomia para propor quantas e quais forem as etapas que julgarem necessárias, respeitando esses parâmetros mínimos. A legislação também prevê elementos relacionados às diferentes formas de ingresso de discentes, como editais semestrais e editais de fluxo contínuo. Nesse sentido, a nova resolução não alterou elementos que estavam presentes na resolução anterior, pois há o entendimento de que, em relação à heterogeneidade dos processos seletivos, a UFRGS tinha e tem um bom instrumento normativo.
“Os membros da Campg entenderam que era necessário se explicitarem elementos relacionados à transparência nos processos seletivos e às ações afirmativas na pós-graduação da UFRGS”, destaca o presidente da Campg, Igor Salomão Teixeira. Ele enfatiza que a exigência de uma tabela com os itens de pontuação dos currículos é um dos exemplos.
Para que se chegasse ao atual estágio, a aprovação da Resolução 15/2023 do Conselho Universitário (Consun), que dispõe das ações afirmativas na pós-graduação, foi decisiva, afirma Igor. Além disso, conforme ele, nos trabalhos da Campg, foi observado que muitas diligências eram solicitadas a partir de itens relacionados à interposição de recursos, pontuação de currículos, exigências documentais e itens nos formulários de inscrição, motivando a edição nas novas regras para os processos seletivos da pós. “Procurou-se, então, explicitar os procedimentos relacionados aos itens que recebem o maior número de diligências”, resume.
Com isso, o período letivo de 2024 será, na prática, o primeiro em que 100% dos editais de seleção para ingresso nos PPGs da UFRGS serão publicados, prevendo-se a reserva de vagas por ações afirmativas. “Isso é importante frisar”, observa Igor. Quando a resolução que regulamenta essa matéria foi aprovada no Consun, havia editais já aprovados, publicados ou em andamento para ingresso em 2023 que não contemplavam a integralidade da Resolução 15/2023. O presidente da Compg avalia que o principal desafio, agora, será auxiliar os PPGs a efetivarem as ações afirmativas, e os editais são a primeira etapa dessa implementação.