Tese de doutorado analisa a onda de disseminação negacionista do modelo Terra Plana

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Antropologia | Pesquisador observou que a conversão de terraplanistas se dá, principalmente, a partir de imersão aprofundada em vídeos publicados no YouTube

*Foto: drobotdean – Freepik.com

Dentre as tendências sociais que a década de 2010 viu ascender no meio social, o negacionismo é uma das que mais se intensificaram nos últimos anos. A prevalência de emoções e crenças pessoais em detrimento de saberes cientificamente embasados é o que caracteriza o fenômeno da pós-verdade, atual momento da sociedade ocidental. Eventos como a pandemia de coronavírus e a crise climática foram e são exemplos que salientam a popularização do negacionismo no Brasil: ainda que se tenham evidências científicas de que a vacina salva vidas e de que a emissão de gases do efeito estufa provenientes de ações humanas estão acelerando o aquecimento global, há quem prefira estar do lado de teorias conspiratórias que negam essas informações.

Diretamente ligado às redes sociais, o fenômeno da pós-verdade também alimentou a expansão da crença de que a Terra é plana. Preocupada em compreender as causas e consequências em torno desse movimento social, uma tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS analisou a formação de público e as dimensões estéticas da onda de disseminação do modelo Terra Plana, que tomou forma nas plataformas digitais. A tese, de autoria de Jorge Garcia de Holanda, observou como o “despertar” para a “verdade oculta”, defendido pelos terraplanistas, se deu a partir de imersão aprofundada em conteúdos de mídia, em sua grande maioria vídeos publicados na plataforma YouTube.

Imersão aprofundada e despertar

No final de 2018, enquanto navegava despretensiosamente pelo YouTube em busca de músicas, Jorge esbarrou numa sugestão de vídeo sobre terraplanismo. O antropólogo já havia sido vagamente introduzido ao termo. Curioso, decidiu arriscar o clique para saber o que havia de tão interessante. O vídeo de horas mostrava um youtuber estadunidense documentando a situação em torno do tema, e a partir daí surgiram várias outras recomendações de pessoas defendendo a teoria. “Era um choque [pra mim]. Como assim, tem pessoas defendendo algo sobre o qual a ciência já produziu uma série de fatos em completo desacordo?”, se indagou.

O projeto inicial da tese, que seguia a linha do mestrado e abordaria pessoas em situação de rua, foi reformulado. O interesse de Jorge em aprofundar suas buscas partiu da necessidade de compreender como era possível sustentar algo que vai tão na contramão da ciência e qual a relevância de se produzirem tantas imagens. “Toda uma coisa muito contraintuitiva para qualquer pessoa que teve uma formação em escola e estudou que a terra é esférica”, diz.

“Essas imagens são, por exemplo, do horizonte, em que você não nota uma curva acentuada. As pessoas perguntam ‘Cadê a curva?’ e apontam: ‘Ó, essa imagem foi tirada do alto de um avião e ainda não estou vendo a curvatura’. São vários tipos de imagens. Outro exemplo é um vídeo de uma estação espacial que a NASA gravou, e a pessoa identifica uma coisa que ela entende como um erro de gravação e que denuncia que aquilo foi feito em estúdio”

Jorge Garcia de Holanda

A pandemia de coronavírus havia acabado de ser decretada quando ficou claro para Jorge que sua pesquisa teria de ser feita de maneira remota. Por coincidência, o terraplanismo, assim como outras teorias conspiratórias adjacentes, é um fenômeno em grande medida digital. Antes da pandemia, Jorge compareceu a convenções presenciais sobre a temática e entrevistou seus entusiastas, método que encabeçaria boa parte da tese.

Surpreendido pela imprevisibilidade, o jeito foi ir em busca de respostas se valendo de outros métodos: o autor analisou as imagens produzidas e disponibilizadas na internet, com foco especial nas centenas de vídeos assistidos. Ao relacionar o conteúdo com suas leituras sobre análise de imagem, veio a compreensão de que a imersão aprofundada nos vídeos era o principal meio pelo qual se dava o “despertar”, a revelação da “verdade” e a consequente produção de subjetividade.

Dentre os métodos utilizados pelos terraplanistas para justificar suas crenças, os mais incidentes eram: (1) vídeos de divulgação científica produzidos por uma “ciência oficial”; (2) vídeos de terraplanistas conduzindo experimentos para provar que a Terra é plana, como o chamado teste de curvatura; (3) comprovações a partir de passagens bíblicas que supostamente afirmam que a Terra é plana; e (4) imagens que supostamente atestam uma conspiração mundial, tal qual programas de TV, como o seriado animado Os Simpsons, a organização da Maçonaria, a chamada Nova Ordem Mundial e os demais atores conspiratórios.

O autor conclui que o sistema de recomendação das plataformas digitais atuais deu uma nova roupagem ao modelo da Terra Plana, cujos registros datam, pelo menos, desde o século XIX, contribuindo com a formação de públicos e atribuindo novas dimensões estéticas. “Pra gente entender o terraplanismo, é interessante compreender quais os efeitos estéticos que ele produz. Esses efeitos de realidade que dão aos vídeos que produzem tornam esses vídeos eficazes para muita gente que imergiu nesse mundo da Terra plana e passou a entender que aquilo que se apresentava naquelas imagens era o mundo real”, explica Jorge. Ainda de acordo com ele, um vídeo só não faz um terraplanista: a imersão aprofundada é essencial para que nasça um simpatizante da teoria.

O movimento arrefece, mas se ramifica

Quando o YouTube passou a regular os anúncios em torno do terraplanismo, a presença desse tema nas discussões sociais tem diminuído. Com isso, migrar para canais como o Telegram foi uma das alternativas adotadas por esses grupos. No início da pandemia, essa comunidade vivenciou uma convergência discursiva, abrangendo o negacionismo a respeito da efetividade da vacina e a credibilidade das instituições sociais.

Desde novembro, Jorge é professor substituto de Antropologia na Universidade Federal do Ceará. “Estou com muita demanda ultimamente, muita aula para dar conta. Ainda não consegui voltar para a minha pesquisa, inclusive para desenvolver artigos a partir dela”, relata. Apesar dos compromissos atuais, o antropólogo pretende, em algum momento, desenvolver mais as ideias trabalhadas na tese, com foco nas plataformas digitais, nas dimensões estéticas e nas recomendações de algoritmo.

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google
Language »
Fonte
Contraste