Terreiros de matriz africana em Porto Alegre são invisibilizados pelo racismo religioso e expõem perseguição histórica

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Simone Dias Marques. Para acessar, clique aqui.

Intolerância | Demonização das tradições ligadas à Diáspora Africana é um processo tão histórico quanto a própria escravidão e o racismo estrutural da sociedade brasileira. Ataques incluem vandalismo, apedrejamento, destruição de terreiros e assassinatos

*Foto: Marcelo Pires/JU

Só em 2023 foram 1.478 denúncias por intolerância religiosa no Disque Direitos Humanos – Disque 100, um aumento de 80% em relação a 2022, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Conforme o levantamento, as pessoas violadas com mais frequência são pertencentes às religiões umbanda, candomblé e outras declarações de religiosidades afro-brasileiras.

Parte significativa desses casos inclui agressões físicas aos povos de terreiro, além de atos de vandalismo de seus símbolos e espaços sagrados. É o caso do ataque ocorrido na última semana na orla de Ipanema, em Porto Alegre, contra o monumento Mãe Oxum. Tombada como patrimônio histórico-cultural da cidade em 2023, a imagem foi alvo de vandalismo às vésperas da XVI Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa, realizada no Centro Histórico. O monumento foi vilipendiado pela pichação com as palavras ‘pagão’ e ‘Cristo vive’. A Federação das Religiões Afro-brasileiras (Afrobras) declarou à reportagem que “está buscando, pelos meios legais possíveis, a reparação com a identificação do criminoso ou criminosos, vândalos e intolerantes”.

“É inadmissível que em 2024 tenhamos que enfrentar tamanha barbárie. Estamos indignados. É difícil de expressar com palavras, pois isso fere de morte a FÉ, o que há de mais sagrado nesse mundo. Um ser humano sem fé é uma pessoa desgraçada, sem perspectivas”, declarou o presidente da entidade, José Antônio Salvador de Iemanjá. “Se deixarmos passar ‘in albis‘ [em branco] o cometimento desse crime, pode haver novas ações dessa natureza, culminando com atos cada vez mais violentos e expondo a integridade física e a própria vida dos irmãos de religião”, continuou.

O babalorixá também adiantou que haverá um ato junto ao monumento “para purificar, revitalizar e voltar ao status quo de antes” depois do encerramento do inquérito policial. “Somos pacíficos e interagimos com todas as religiões, pois certamente todas levam ao mesmo lugar, ainda que por caminhos diferentes. Além disso, nosso Estado é laico e temos o direito de manifestar nossa fé. Tanto é assim que o Poder Público tombou o monumento à Mãe Oxum; isso demonstra a importância daquele local, já sagrado e consagrado.”

Acontecimentos como esse, porém, não são fatos isolados nem são recentes na história brasileira. Estão relacionados à demonização das religiões de matriz africana e seus locais de culto, algo historicamente enraizado no imaginário social brasileiro e intimamente associado ao racismo estrutural. Por isso, como uma das formas de evitar serem alvos de violência, as casas de religião se tornaram “invisíveis” no ambiente urbano.

Para entender como e por que ainda é preciso que os terreiros sejam invisíveis, o JU investigou, junto a historiadores, antropólogos e sacerdotes de terreiro, como as linhas históricas se deram até aqui e por que os casos de racismo religioso contra as filosofias de matriz africana ainda existem – como mostram dados relacionados ao número de denúncias. Afinal, não é raro que cheguem até mesmo ao assassinato, como foi o caso da ialorixá Mãe Bernadete, morta com 25 tiros na Bahia, em 2023.

Fonte: Painel de dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
O diabo como justificativa para a perseguição

Ao longo desta reportagem, alguns elementos se sobressaíram e indicam a existência de racismo religioso no Brasil. O primeiro é a evangelização histórica associada às políticas de Estado, que chega com os portugueses com a missão de disseminar a fé cristã. O segundo é o papel da imprensa branca na deformação da opinião pública. A linguagem também surgiu como aspecto perverso, na utilização de termos pejorativos e negativos ou na apropriação cultural, rebatizando elementos ancestrais afro-brasileiros. 

Todos esses aspectos se ligam por meio de uma mesma ideia: o uso do imaginário cristão sobre o diabo para perseguir, atormentar, criminalizar e violentar as populações negras e suas manifestações religiosas. O diabo é a figura-chave que serve, de forma conveniente, para justificar tais iniquidades, primeiro pelo catolicismo e hoje em dia pelo neopentecostalismo.

Os povos de terreiro são comunidades tradicionais cujas ancestralidades, práticas terapêuticas, religiosidades, idiomas e modos de vida estão associados à diáspora negra em todo o Brasil. São verdadeiros corpos sociais que se identificam sob diversas denominações, a depender da região do país; se organizam a partir de valores civilizatórios e cosmovisões de matrizes africanas e são reconhecidas pelo seu patrimônio cultural, pelo seu acolhimento e pelos serviços comunitários. 

As religiões de matriz africana compõem diversas crenças que se caracterizam por respeitar as sabedorias ancestrais, as forças da natureza e da vida, o cultivo do bom caráter, do acolhimento a todas as pessoas sem discriminação de cor, credo, escolaridade, classe ou orientação social. A cultura alimentar e o ato de comer são parte das práticas sagradas dos terreiros – espaços de convivência coletiva, partilha, conhecimento e fé.

Como afirma o decreto federal 6040/2007, são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

Parece ocioso informar, mas os povos de terreiro têm seus direitos reconhecidos e assegurados na legislação brasileira – à sua cultura, a seus territórios e terreiros, à identidade, aos recursos naturais e à manifestação religiosa, como consta da Constituição Federal (artigo 5.º, VI): “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.

Mesmo diante de todas essas garantias, o racismo ainda é o fator principal de violência física e de patrimônio contra a existência de quem pertence a diversas linhas de religiões de matriz africana. Justamente por conta do ódio racista e das agressões, os terreiros são invisíveis. A discrição forçada se dá como forma de sobrevivência.

A construção histórica do medo sobre as práticas afro-brasileiras

Macumba, batuque, feitiço, sortilégio. Por que essa linguagem, em tom negativo e pejorativo, parece sempre estar associada a casos de racismo religioso? A demonização das tradições religiosas de matriz africana é ligada a diversos fatores históricos próprios do Brasil.

“A constituição do rito africano como algo primitivo, atrasado, é fruto de políticas do início do século XX. É como se tudo o que vinha da África fosse embebido de uma ideia atrasada, portanto perigosa, que faz ‘o mal’; as pessoas, no entanto, só têm medo porque também acreditam em feitiço”, afirma o historiador Jovani Scherer, doutorando em História pela UFRGS que está desenvolvendo o projeto de tese “Príncipe Custódio e a formação do Batuque no RS: história do parentesco de nação mina, nagô e jeje na institucionalização do Batuque”.

Como diz o ditado, feitiço vai e volta. “Então, as pessoas preconceituosas acabam ironicamente acreditando e tendo medo, pode ser até de uma pipoca, porque não entende para que aquilo está ali. É uma construção simbólica que se deu na nossa sociedade; ‘fulano é macumbeiro, faz trabalho’. Como um grupo perseguido, os afro-religiosos podem usar desse mesmo simbolismo como se fosse um jogo de poder para se protegerem”, explica.

Assinalado pela memória batuqueira como um momento de perseguição intenso, o final da década de 1930 é marcado principalmente pela ação policial e pelo papel da imprensa contra os terreiros. “Logo após a morte do Príncipe Custódio, em 1935, há um momento de bastante repressão. Nesse momento, passam a surgir diversos relatos noticiados pela imprensa que criam a atmosfera de demonização, de ser um ritual perigoso e que leva pessoas à morte. Lembro de pegar uma série de reportagens, todas da década de 30, e elas são muito pesadas, criando uma atmosfera de ilegalidade, de dizer que eles (povos de terreiro) são aproveitadores, como alguém que faz alguma coisa primitiva ou indigna de confiança como uma atividade criminosa. O papel da imprensa, pelo menos em Porto Alegre, foi fundamental para colaborar com a invisibilidade e perseguição aos povos de terreiros”, comenta Jovani.

Outro fator que colabora com o racismo e a invisibilidade das pessoas e religiões negras é a ideia do Rio Grande do Sul como uma região “europeia”, sobretudo com a chegada de imigrantes. Soma-se ainda, segundo Jovani, o contexto da eugenia científica, além da forma como os brancos se relacionavam com as pessoas do continente africano: como selvagens, seres inferiores e “sem alma” a serem “catequizados”, já que estudiosos da época viam os cultos africanos como animistas e fetichistas, como uma etapa histórica a ser superada.

Ao ser desalmada, a pessoa é objetificada. Isso quer dizer que ela não é mais vista como um ser humano. Enquanto objeto, pode ser usada como se bem entender. Em última análise, é desumanizada e transformada em coisa, logo, passível de destruição sem ser necessário ponderar sobre ética ou ter pudores solidários, tampouco religiosos.

Mas a associação com o diabo é posterior a essa época.

“Talvez, inclusive, pela popularização das religiões de matriz africana e a vinculação ao Exu, há uma associação direta com o demônio, com um discurso neopentecostal sensacionalista, exagerando nos tons em relação ao culto de matriz africana, principalmente na imprensa. Isso vale para o início do século XX até hoje”

Jovani Scherer

“É uma construção histórica. As visitações do Santo Ofício estiveram no Brasil três vezes para descobrir crimes e heresias e penalizar as manifestações afro. O catolicismo aqui era religião de Estado. Hoje, após o Império, ainda há inúmeras instituições sociais, como escolas e universidades, que disseminam seus valores”, resume o professor do departamento de Antropologia da UFRGS Vitor Queiroz.

Queiroz conta que, por volta de 20 anos atrás, por causa da necessidade de crescimento do número de fiéis, os neopentecostais passaram a buscar adeptos nas comunidades pobres, periferias e favelas. “Havia uma competição religiosa pelas pessoas.” Dessa disputa advém a promessa neoliberal de “trabalhar para Deus” e prosperar ainda nesta vida, em contraposição ao Além e ao Paraíso. Outra face desse novo ethos religioso é a ênfase em rituais de cura e exorcismo para espantar o demônio, criando um contexto de guerra espiritual, com estratégias de marketing atreladas a uma linguagem militarizada: a luta contra o diabo, a guerra contra Satanás. Os fiéis se tornam, assim, os “guerreiros” de Jesus.

Narcopentecostalismo e a defesa da “pureza” com metralhadoras

Na guerra por almas, nesse contexto belicoso, nasce inclusive uma facção criminosa no Rio de Janeiro: os “Traficantes de Jesus”, um fenômeno narcorreligioso composto por quadrilhas que forçam praticantes de religiões de matriz africana a abandonarem seus terreiros em favelas do Rio de Janeiro, como a Baixada Fluminense, Vigário Geral e São Gonçalo. Há pelo menos 120 grupos de traficantes evangélicos nos morros cariocas. Os criminosos pertencem ao TCP (Terceiro Comando Puro) e são convertidos por incursões de líderes de igrejas evangélicas nas prisões do Rio com autorização da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP). 

“É chocante!”, diz Bàbá Hendrix Silveira, historiador, teólogo das tradições de matriz africana e membro do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. “Os Traficantes de Jesus expulsam as mães de santo dos morros, apontando metralhadoras para a cabeça delas; obrigam-nas a quebrar todas as suas obrigações, altares e depois as expulsam de suas casas e do morro, alegando que elas são do demônio.” 

Segundo Bàbá Hendrix, para popularizar suas ações violentas, os criminosos gravam vídeos levantando as metralhadoras nas mãos e dizendo: “Aqui no morro não vai ter macumbeiro, não, o morro é de Jesus”. “Vemos o aumento das violências sendo perpetradas principalmente nesse período de convergência do conservadorismo político e religioso, que atribui uma salvação por meio da política, e os políticos se arvoram nessa condição (de salvadores) para legitimar os atos de ódio que os conservadores religiosos propagam”, completa o babalorixá. 

Se há criminosos do chamado narcopentecostalismo de um lado, do outro há as estruturas de poder não laicizadas e seus agentes, que ajudam a alimentar o imaginário degenerado contra as tradições afro-diaspóricas. Hendrix recorda de vários casos no Rio Grande do Sul, entre eles um ocorrido no Vale do Rio dos Sinos: “Um corpo de criança foi encontrado na rua, e o delegado de polícia tinha certeza de que o assassino era um pai de santo de lá. Mas quando perguntado sobre qual era a evidência, o delegado, que é evangélico, disse que foi ‘o espírito santo que disse’ que era aquela pessoa. Foi só por causa dessa declaração que o juiz acabou soltando o pai de santo. É por aí que vemos as religiões hegemônicas no país se valendo das estruturas de poder para reprimir principalmente as tradições religiosas de matriz africana”.

Para Hendrix, a mistura entre o Estado, suas legislações e estruturas evidencia a manutenção de valores de apenas uma religião para toda a população brasileira.

“Quando se diz tão alto que queremos um estado laico de fato, não é para infringir regras, mas para que as pessoas tenham liberdade de escolha, e não que o Estado escolha por elas. Então, por exemplo, qualquer religião pode ser contra o aborto, mas isso não pode ser uma decisão do Estado”

Bàbá Hendrix Silveira

Bàbá Diba de Iyemonja, coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), encorpa os argumentos e aponta que, além do racismo religioso, trata-se de racismo institucional. “A perseguição era, inicialmente, muito mais pelo segmento da Igreja Católica, mas a partir do final da década de 70, início de 80, começam a surgir as igrejas pentecostais que acirraram ainda mais a perseguição religiosa. É preciso, entretanto, compreender também a falta de acolhimento pelo racismo institucional por parte do Estado e de toda a sua aparelhagem, por exemplo, pela Brigada Militar e Polícia Civil.” 

De fato, Bàbá Diba entende que o aumento da violência contra terreiros encontra cada vez mais consistência dentro do setor neopentecostal, mas ganhou ainda mais força nos últimos anos.

“Desde esse penúltimo regime do governo federal, as perseguições ficaram mais acirradas; é como se houvesse uma espécie de permissivismo para se declarar o ódio”

Bàbá Diba de Iyemonja

Na esfera estadual e municipal, o número de abordagens e truculência policial também cresceu: “A Brigada Militar voltou a abordar os terreiros, a fazer batidas e, inclusive, a ameaçar apreender nossos tambores, porque o instrumento emite um som que ‘perturba a vizinhança’. Então, em pleno século XXI, a gente continua espiando por trás da cortina para ver se não vai estacionar na frente de casa uma viatura da BM para causar constrangimento à nossa liberdade de cultuar o nosso sagrado”, afirma Bàbá Diba. “As religiões de matriz africana têm 10.065 anos. A questão da invisibilidade, principalmente no Brasil, se resume à uma única e simples palavra: racismo”, corrobora Tiago de Bará-Onilú, coordenador da Associação Independente em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (Asidrab).

Mas se engana quem acha que apenas negros são perseguidos por suas tradições sagradas. No solo gaúcho, hoje, há cada vez mais pessoas de etnia branca que são do povo de terreiro. No interior do Estado, muitos terreiros são 100% brancos. Mas, conforme Pai Tiago, “quando uma pessoa branca se declara de matriz africana, também sofre perseguição, às vezes muito dissimulada”. 

Outro equívoco é achar que, pela adesão dos brancos, existe um embranquecimento das religiões africanas no Rio Grande do Sul. “Você tem que olhar com as lentes da afrocentricidade. O que existe é o empretecimento do povo branco a partir da inserção deles na tradição de matriz africana. Então é o contrário: a gente está enegrecendo a sociedade gaúcha”, esclarece Bàbá Diba. “A única diferença é que, na hora em que manifestam os orixás, eles ficam vermelhos”, brinca o babalorixá.

Na imagem homem negro, de aproximadamente 50 anos, aparece em pé, acompanhado de cinco mulheres negras, com vestidos e turbantes brancos. No lado esquerdo, está em destaque trono em tons azuis, enquanto o ambiente inteiro apresenta quadros e demais objetos sagrados.
O coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde Bàbá Diba de Iyemonja (ao centro, de azul), mantém um terreiro na Vila João Pessoa, em Porto Alegre (Marcelo Pires/JU)

Se as práticas de racismo são uma construção introjetada na sociedade, todas as instâncias do preconceito racial desnudam e evidenciam o processo escravocrata que estruturou a formação do Brasil e que ainda persiste no tecido social. “A escravidão durou 352 anos no Brasil. O primeiro Navio Negreiro aportou aqui em 1536, 36 anos após a invasão feita por Pedro Álvares Cabral e só ‘acabou’ em 13 de maio de 1888. Mas a escravidão está aí até hoje. Recentemente, em 2023, mais de 200 trabalhadores foram resgatados em Bento Gonçalves na colheita de uva. Até de chicote eles apanhavam”, assinala o antropólogo Marcelo de Andrade Vilarino, coordenador, em Porto Alegre, da pesquisa Mapeamento das Comunidades Tradicionais de Terreiro nas capitais e regiões metropolitanas, realizada em 2010 pelo Governo Federal nos estados de Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Ele enfatiza que a intolerância religiosa é uma das violências mais fortes e impactantes do processo escravocrata.

“Você lida com o sagrado do outro e nega a ele o direito de viver sua fé. Religião é religare, é ligar com o mundo não vivo, o mundo extracarne. Proibir ao outro a possibilidade de cultuar os seus deuses é uma violência inimaginável. Nesse contexto, o nosso desafio enquanto sociedade é gigantesco”

Marcelo de Andrade Vilarino

Outra estrutura que ainda precisa ser desconstruída é o conceito de branquitude, o privilégio associado à condição de ser branco. Para Vilarino, é fundamental romper com essa ficção de superioridade para construir um mundo equânime e digno, em que todos os indivíduos recebam tratamento igualitário e tenham acesso às mesmas oportunidades. “É imperativo que, como sociedade, nos debrucemos sobre essas questões para alcançarmos uma democracia genuína”, aponta.

Política de eugenia: fazendo os negros sumirem do mapa

A presença do racismo em Porto Alegre é um aspecto histórico que influenciou sua formação atual, incluindo a aplicação de políticas públicas de “higienização”: a remoção da população negra para áreas cada vez mais afastadas do Centro. O bairro Colônia Africana, por exemplo, surgiu no final do século XIX a partir de ações de expulsão de negros ex-escravizados. Atualmente, essa região é hoje conhecida como bairro Rio Branco graças à chegada de imigrantes, em 1959. Assim, a prefeitura oficializou o processo de “branqueamento” nominal definitivo.

Ao tentar expulsar a população negra da capital, reprimir a cultura e a religiosidade desse povo, a ideia era apagar as pessoas negras. Ao longo da primeira metade do século XX, influenciado por teorias eugenistas predominantes à época, o jornalismo disseminou uma série de estigmas associados aos negros, atribuindo a eles ideias de desordem, malandragem, imoralidade, o que dava base à repressão brutal da polícia à cultura, à religiosidade e às vidas negras.

Essas representações negativas, propagadas principalmente por jornais, ajudaram a construir na opinião pública a ideia de “higienizar” e “sanar moralmente” diversas regiões da cidade, expulsando os moradores negros para áreas periféricas através de ações contínuas e sistemáticas por parte das autoridades públicas. “Quando houve a remoção de comunidades dos territórios negros do Centro e da Cidade Baixa, muitos terreiros foram para a Restinga e o Partenon. Se a gente fizer um recenseamento, vai encontrar nesses bairros a maior população de religiosos afro-brasileiros da cidade”, afirma a cientista social Janine “Nina Fola” Cunha, membra do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e Indígenas da UFRGS e militante antirracista há mais de 30 anos.

Atualmente, Porto Alegre é a cidade com o maior número de terreiros no Brasil, com cerca de 25 mil locais. “No Rio Grande do Sul são 65 mil, com predominância do batuque. Isso significa que o território gaúcho tem o maior número de terreiros no mundo”, enumera o Pai Tiago, descendente de santo do Príncipe Custódio Joaquim de Almeida, o “Príncipe Negro” apontado como o responsável pelo assentamento do Bará do Mercado Público de Porto Alegre.

De acordo com o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há cerca de 600 mil pessoas que se autodeclararam seguidores de religiões de matriz africana, sendo 407 mil praticantes de umbanda, 167 mil do candomblé e 14 mil de outras religiões, entre elas o batuque. Dos 407.332 brasileiros que se declararam umbandistas, 140.315 estavam no RS, representando 34,45% do total. “Somos pacíficos e interagimos com todas as religiões, pois certamente todas levam ao mesmo lugar, ainda que por caminhos diferentes. Além disso, nosso Estado é laico e temos o direito de manifestar nossa fé”, destaca José Antônio Salvador de Iemanjá, presidente da Federação das Religiões Afro-brasileiras (Afrobras).

“Acarajé de Jesus” ou “Bolinho de Deus”: como funciona o apagamento cultural

O acarajé é um bolinho de feijão fradinho votivo à orixá Iansã, originário da África Ocidental, cujo nome em yorubá é àkàrà (“bola de fogo”) para ajeum (“para comer”), sendo compreendido como “comer bola de fogo”. Seu preparo tradicional é reconhecido e certificado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio cultural e imaterial do Brasil. 

Pelo menos desde 2006, entretanto, os neopentecostais entraram na guerra por cristianizar o acarajé, batizando-o de “bolinho de Jesus”, desconectando-o da tradição ancestral e religiosa que liga as baianas do acarajé a essa comida votiva de orixá aos terreiros. Em gênese, é mais uma forma de dominação e violência.

“A ideia de impor um ‘acarajé de Deus’ foi vencida, pelo menos até agora eu acredito que sim. Mas a resistência contra o apagamento é constante. Fazemos o acarajé também aqui no Rio Grande do Sul para o mesmo orixá, que é Iansã (Oyá)”, explica Nina Fola.

“Denominar esse alimento como ‘bolinho de Jesus’ esvazia o seu significado histórico, simbólico e religioso. É mais uma forma de preconceito e branqueamento a tudo o que é de matriz africana”

Nina Fola

Nina reforça que as mulheres baianas do candomblé entendem o acarajé como uma forma de renda e de sustento das suas famílias e que, no tempo da escravidão, o dinheiro obtido era usado para comprar alforrias. “O acarajé, então, é um patrimônio, assim como as baianas, mas daí tem esse projeto neoliberal das igrejas neopentecostais de querer abocanhar toda a cultura para absorver mais pessoas e ganhar mais fiéis”, completa. O processo de apagamento cultural, de embranquecimento, é eurocêntrico, sempre existiu e tem como missão invisibilizar toda e qualquer forma de cultura de matriz africana no Brasil, acrescenta Pai Tiago.

Panorama diaspórico: evangelizar, explorar, desalmar, apagar

Quando se quer dominar um povo, em primeiro lugar apagamos sua história e sua cultura. De acordo com Pai Tiago de Bará, os portugueses chegam à África para saquear o continente e dominar o povo em um processo de sequestro. “O termo diáspora é usado para quando se é obrigado, por questão política ou religiosa, a sair dos seus territórios e migrar. Nesse processo de vir para o Brasil nos tumbeiros – os navios negreiros eram legítimas tumbas –, o povo africano era obrigado a passar pela ‘árvore do esquecimento’ antes de embarcar”. 

A árvore Baobá é considerada sagrada, uma espécie de árvore da vida, e é parte intrínseca da identidade social de muitos povos africanos. Ela representa os ancestrais e as memórias da comunidade. O ritual de desenraizamento em torno dessa árvore era empregado exatamente para machucar, para atormentar: para que negros e negras, incluindo crianças, tivessem a última visão da sua cultura e de sua terra. “Nós temos esse processo de perseguição diaspórico”, sustenta Pai Tiago. “Essa mão de obra que foi sequestrada, violentada, escravizada, aparece por aí em livros de história como se os negros viessem num barquinho bonitinho só para cortar cana-de-açúcar”, ironiza.

Não bastasse, veio a evangelização, o processo de apagamento religioso: “A Igreja Católica, através de Bulas, denominou os negros como sem alma. As missões evangelizadoras pelo mundo afora culminam com o saque de um continente que era extremamente rico, com suas tecnologias milenares e ancestrais, e que hoje vive de uma forma miserável, porque a apropriação ainda existe por meio de marcas famosíssimas e governos mundo afora explorando à exaustão todos os recursos e a mão de obra”.

Pai Tiago de Bará narra que, a partir da diáspora e da escravidão, em um contexto de horrores desumanos, era imperioso sobreviver – e uma forma de preservar a própria cultura e a religiosidade foi através do sincretismo. “Eu digo isso com muita dor, mas como proteger e salvaguardar a tua realidade? Era tudo proibido. Então, é assim que nasceu a questão da diversidade de matriz africana. Porque em África, cada região cultua uma divindade diferente. Por exemplo, eu sou filho de Bará, que em África é conhecido como Exu. Tem regiões que cultuam somente Exu, tem outras que cultuam só Iemanjá. Os cultos vieram para cá de regiões diferentes”, explica. 

Assim, para a sobrevivência da tradição religiosa e da própria vida, foi preciso cultuar os orixás juntos, mesclar as línguas de diversas regiões e misturar as entidades com santos católicos, driblando os senhores de engenho. O sincretismo foi, portanto, uma forma de resistência em que os negros empregaram o que tinham à disposição para adaptar os recursos que tinham no Brasil ao seu culto. Nesse sentido, Pai Tiago de Bará entende que essa atitude facilitou a aceitação, mas “de uma maneira escondida, para disfarçar os orixás e as suas divindades, porque por tudo, qualquer tipo de rastro de rito de África, os escravos eram punidos até mesmo com a morte”.

Embora o som dos tambores do batuque siga ressoando ancestralidade e resistência, a intolerância também continua perseguindo e atentando contra os terreiros e as pessoas de religiões afro-brasileiras. No entanto, na compreensão de Pai Tiago de Bará, muitos dos que hostilizam e satanizam os rituais “são os mesmos que vêm ao terreiro tomar seu passe, e no dia 31 de dezembro vão pular as ondinhas vestidos de branco e pedindo a boa sorte para Iemanjá”.

Elementos de terreiro na Vila João Pessoa, em Porto Alegre (Marcelo Pires/JU)
Mapeamento de terreiros no Brasil e no RS: o batuque como alimento

Em 2010, o Governo Federal organizou o Mapeamento das Comunidades Tradicionais de Terreiro, abrangendo capitais e regiões metropolitanas dos estados de Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul. O levantamento foi realizado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) do Ministério do Desenvolvimento Social e Cidadania, em parceria com o Iphan e a Fundação Palmares, e viabilizado pela Unesco. 

Os resultados da pesquisa indicaram a presença de 4.045 terreiros de religiões de matriz africana nas quatro capitais pesquisadas (Porto Alegre, Recife, Belém e Belo Horizonte). A partir dos dados levantados, foi possível saber quem são essas comunidades, onde estão localizadas, quais são suas principais atividades, como está a situação fundiária, a infraestrutura e outros aspectos socioculturais e demográficos.

“Porto Alegre foi uma experiência extremamente impactante para mim, porque, se não me falha a memória, identificamos 16 entidades representativas de várias frentes, tanto de defesa das práticas ligadas a terreiros e questões culturais de apoio à juventude negra como também ligadas a uma atuação política partidária”, recorda o antropólogo Marcelo de Andrade Vilarino, mestre em Sociologia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). A partir de reuniões com tais entidades representativas, o grupo de pesquisa conseguiu “desinvisibilizar” mais de 2.500 endereços de terreiros da capital gaúcha. “Na Região Metropolitana, visitamos mais de 5 mil endereços”, assinala.

Com o intuito de facilitar a identificação dos locais, a abordagem utilizada consistiu em envolver pessoas de terreiros em, no mínimo, 50% dos entrevistadores. “Essa estratégia não apenas simplificou a nossa entrada, mas também promoveu uma maior compreensão e proximidade com as comunidades em questão.” 

O estudo tinha três focos: violência, ações de discriminação e racismo; também levava em consideração a segurança alimentar e o acesso à água. Como parte dos terreiros se localiza historicamente em regiões de periferia, eles se tornam ambientes territoriais de ajuda às comunidades para enfrentar as situações de miserabilidade da população brasileira. Segundo o antropólogo, isso evidenciou que são espaços de construção de dignidade social. “Vimos que as casas de tradição africana desenvolviam ações que fomentavam a segurança alimentar do seu entorno, na comunidade.”

Vilarino afirma que esse mapeamento foi um trabalho importante para toda a sociedade brasileira, porque foi a primeira vez que o Estado se debruçou e investiu recursos significativos para planejar ações para os povos de terreiro.

“Afinal, como o governo pode pensar políticas públicas específicas para eles se não sabe quantos são, onde ficam nem quais são as suas necessidades? Tanto que depois da pesquisa, a SEPPIR conseguiu construir o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos de Matriz Africana no Brasil”

Marcelo de Andrade Vilarino

Ele também ressalta que a dinâmica alimentar das casas de religião afro é extremamente eficaz e contribui de forma muito efetiva para segurança alimentar das pessoas que ali frequentam: “No processo de oferecer alimentos aos deuses, eles, uma vez agradados, possibilitam que também aos homens não falte o alimento. É uma dinâmica de reciprocidade, a chamada Lei da Dádiva. Ao fazer uma oferenda, você destina para as entidades apenas algumas partes daquela comida; todo o restante tem que ser distribuído, partilhado com as pessoas. Alguns terreiros inclusive fazem essa ação de distribuição de cestas de alimentos ao seu entorno”. Ou seja, ninguém passa fome perto de um terreiro.

Vilarino faz questão de salientar que, entre as lideranças religiosas que mais participaram desse mapeamento de terreiros em Porto Alegre estavam Bàbá Diba, Bàbá Hendrix e Mãe Vera Soares; Mãe Carmem de Oxalá em Guaíba e Mãe Maria de Fátima de Oxalá em Gravataí. “São pessoas pelas quais tenho a maior reverência, muito comprometidas com a valorização das casas de matriz africana. Tenho profundo respeito e gratidão pelo que eles contribuíram com o nosso trabalho”, completa.

Como denunciar?

Casos de intolerância religiosa devem ser denunciados na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos pelo serviço Disque 100. Entidades da sociedade civil, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nos estados também possuem comissões ou representações que acolhem as denúncias.

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