Terceirizar o HGR é um atestado de desrespeito com a coisa pública

Publicado originalmente em Rede Amazoom por Fábio Almeida. Para acessar, clique aqui.

O Amazoom conversou com o Dr. em Políticas Públicas, Ananias Noronha, sobre a tentativa de terceirização da gestão do Hospital Geral de Roraima (HGR). A proposta feita pelo governo de Antônio Denarium (PP) prevê que uma Organização Social em Saúde (OSS) assuma a gestão administrativa e hospitalar por um valor de R$ 429 milhões.

O edital de chamamento para credenciamento das OSS terá as propostas apresentadas abertas no dia 05/04/2023. Ananias Noronha afirma que a adoção da terceirização consiste na prática no reconhecimento da gestão estadual do SUS da sua incapacidade de gerir o único hospital de referência de alta complexidade do Estado de Roraima.

Amazoom: A terceirização da gestão de uma unidade hospitalar pode ser compreendida como uma ação suplementar prevista na Lei 8080/1990?

Dr. Ananias Noronha

Ananias Noronha: Sabedores somos de que ao interpretar a legislação, alguns doutores da lei, utilizando-se da hermenêutica, poderão vir a afirmar que a situação em tela, qual seja, terceirizar a gestão de uma unidade de saúde encontra-se amparada no arcabouço legal do SUS, uma vez que a Constituição Federal, passando pela Lei 8080/1990 e o Decreto 7508/2011 permitem a inciativa privada participar de forma complementar, entretanto, não estamos falando aqui de uma unidade de saúde de baixo impacto na atenção à saúde do estado de Roraima.

Estamos falando da ÚNICA UNIDADE DE SAÚDE DE REFERÊNCIA para atendimento do estado que recebe toda a demanda de agravos à saúde dos cidadãos de Roraima, uma unidade de saúde de cuidados terciários. Não temos nenhuma outra unidade de cuidados como o HGR, assim, ao propor terceirizar a saúde, a gestão estadual do SUS, deve, na realidade, pedir para sair, assumir sua total incompetência para gestão do SUS e dar espaço para quem tem compromisso com a população e com o SUS. Terceirizar o HGR não se configura, nem de longe, primar por qualidade na atenção à saúde do povo de Roraima, se configura com o atestado de desrespeito para com a coisa pública.

Amazoom: A saúde pública é regulada por uma ação integrada na organização da oferta de serviços. A terceirização da gestão interferirá nesta lógica de organização do SUS no Estado?

Ananias Noronha: É necessário esclarecer que qualquer atendimento privado contratado pelo SUS, cabe ao contratado, com fins lucrativos ou não, submeter-se à lógica do SUS, ou seja, atender os princípios e diretrizes do SUS, no entanto, sabemos que na prática, qualquer um desses entes acaba por escamotear essa lógica, buscando na maioria das vezes ofertar o serviço que tenha o menor custo, comprometendo, por vezes, a integralidade da assistência e a resolubilidade, colocando em risco os cidadãos que buscam por esses serviços.

A história não se repete, mas eventos atuais podem repetir práticas anteriores que ressuscitam memórias e acontecimentos históricos. Roraima já teve experiências devastadoras com a terceirização na área de saúde, como, por exemplo, a COOPERPAI-MED, no final dos anos 1990, onde se copiou o modelo que a cidade de São Paulo implementava à época, situação que comprometeu recursos da saúde, precarizando a assistência e dilapidando os cofres públicos, observamos agora esse déjà vu para nos preocupar.

Amazoom: O Estado prever um gasto de R$ 429 milhões com a contratação da OSS para gerir o HGR. Isso impactará os demais serviços de saúde?

Ananias Noronha: Se considerarmos que o orçamento para a saúde do estado de Roraima chega a 1 bilhão de reais, a terceirização de uma única unidade comprometendo quase 50% desse orçamento, é possível inferir que as demais ações de saúde do estado de Roraima fiquem muito comprometidas, não atenderá, possivelmente, as demandas de rotina, muito menos as situações imprevistas que ocorrem na área de saúde.

Amazoom: A transferência de gestão hospitalar para OSS funcionou em algum lugar?

Ananias Noronha: É importante destacar que investigar cientificamente uma OSS é muito difícil, no entanto, pesquisadores de universidades já demonstraram que mesmo com a falta de dados empíricos conclusivos na literatura científica revisada, há fortes argumentos legais, administrativos, e políticos que sugerem que as OSS não se constituem como solução para resolver os problemas de gestão de serviços no SUS.

Embora se apresentem como modelo “sem fins lucrativos” ou filantrópico e fundamentado em técnicas gerenciais modernas e eficientes, as OSS tendem a fortalecer a privatização do sistema público de saúde brasileiro. Desta forma é importante destacar que as OSS não se qualificam como o caminho para uma gestão do SUS comprometida com a vida das pessoas, mas tão somente com a possibilidade de enriquecimento fácil por meio do acesso aos recursos da saúde, recursos esses advindos dos impostos do povo brasileiro, diga-se de passagem, dos impostos pagos pela classe trabalhadora desse país de extrema desigualdade social.

Amazoom: Qual sua opinião diante da ausência de consulta pública sobre essa privatização?

Ananias Noronha: Primeiro quero destacar minha decepção com o Conselho Estadual de Saúde, instância de controle social do SUS, no âmbito da gestão estadual, o qual deveria defender todos os princípios e diretrizes do SUS, aquele Conselho deveria ser o primeiro a solicitar que a imprensa divulgasse tal intensão da gestão estadual do SUS. Não consultar a população sobre tema tão sensível, demonstra o descompromisso dos gestores do SUS para com a população do estado de Roraima.

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