Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Direitos reprodutivos | Com o avanço na área de Reprodução Humana, há uma década o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece regulamentações que viabilizam que casais homoafetivos tenham filhos por fertilização in vitro e gestação por substituição
*Foto: Designed by Freepik
No último mês de julho, quando se celebra o Orgulho LGBTQIAP+, os papais Manoel e Marcelo comemoraram o primeiro ano de vida das gêmeas Laira e Kaila. As mamães Janaína e Valessa, de modo semelhante, viveram os primeiros dias com a filha Eduarda nos braços. As histórias dos casais se conectam não apenas pela atual vivência da parentalidade, mas pelo semelhante caminho que percorreram para realizar o desejo de ter filhos.
Há dez anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a partir da Resolução CFM n.º 2.013/13, assegura de maneira clara e definitiva que casais homoafetivos utilizem as técnicas de reprodução assistida, bem como a cessão temporária do útero de forma restrita — quando uma mulher, a partir de determinadas regras, cede seu útero para a gestação de um embrião.
A trajetória do advogado Manoel Cardoso e do empreendedor Marcelo Alcazar teve início há 17 anos, quando começaram o relacionamento. Com o passar do tempo, o casal passou a desenvolver o desejo de ter um filho fruto da relação. Num primeiro momento, a adoção parecia ser a única forma de viabilização, o que os levou a buscar orientações sobre como iniciar o processo. No entanto, com a chegada da pandemia, os procedimentos precisaram ser pausados.
Em 2021, em uma conversa entre familiares, a irmã de Marcelo, Flávia Alcazar, declarou ser candidata a gestar um bebê, indicando a possibilidade de ceder seu útero para que os dois tivessem um filho. O casal pouco sabia a respeito de técnicas de reprodução assistida para casais homoafetivos masculinos. “Nós acabamos abraçando a ideia. Estudamos, conversamos e fomos atrás de informações. Enfim, demos início a isso”, relembra Manoel.
De acordo com a ginecologista Marta Hentschke, doutora em Reprodução Humana e professora na Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, os primeiros passos para um casal homoafetivo que deseja ter um filho biológico incluem procurar atendimento em uma clínica de reprodução assistida, marcar uma consulta com um especialista em reprodução humana e explanar o desejo. De acordo com a médica, o avanço nas tecnologias abriu muitas possibilidades tanto para casais quanto para pessoas solteiras que desejam ter filhos.
“A fertilização in vitro, que é justamente a união de um gameta masculino com um feminino em laboratório, permite que tenhamos a união desses gametas não necessariamente apenas para um casal hétero”
Marta Hentschke
Isto é, a fertilização in vitro, também conhecida como FIV, envolve a combinação de um óvulo e um espermatozoide em laboratório com o objetivo de formar embriões que serão cultivados, selecionados e transferidos para um útero. No caso de casais masculinos, os parceiros escolhem quem dos dois irá oferecer os espermatozoides. Os óvulos são obtidos por doação obrigatoriamente anônima por meio de um banco. Além disso, é necessária a cooperação de uma terceira pessoa, uma mulher disposta a ceder o útero temporariamente apenas para a gestação.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina permite que a cedente do útero seja da família de um dos parceiros em até quarto grau. Mãe, avó, irmã, tia ou prima, portanto, podem gestar. “Qualquer caso que saia do estabelecido pelo Conselho pode ser tratado de forma particular e ser julgado por uma câmara técnica”, adiciona a médica Hentschke. As regras vigentes não permitem qualquer tipo de envolvimento lucrativo e comercial. Dessa forma, contratar uma “barriga de aluguel” em território brasileiro é expressamente proibido.
Flávia já tinha passado pela gestação de seus dois filhos e se disponibilizou a gestar o bebê para o irmão e seu marido. O casal, então, selecionou um óvulo de uma doadora anônima e optou por recolher material genético de ambos, mas decidiram não saber qual seria fecundado. A partir da união dos gametas em laboratório, dois embriões foram transferidos à irmã de Marcelo. “Deu tudo certo. Quando vimos, eram as duas meninas. Ou seja, os óvulos implantados vingaram. Elas estavam ali, firmes e fortes.”
O nascimento de Kaila e Laira foi um dia de festa não apenas para os pais, mas também para os profissionais do hospital. Segundo relatos, aquela era a primeira vez que o local experienciava a situação. “Nós acompanhamos as meninas desde a hora em que elas foram implantadas. Elas nasceram, nós dois estávamos no centro cirúrgico com a Flávia. Nós acompanhamos tudo”, conta o casal.
Gestação compartilhada
A educadora física Valessa Silveira e a contadora Janaína Godoy, atualmente, vivem os primeiros dias da dupla maternidade com a filha Eduarda, a Duda. Após nove anos de relacionamento, em uma consulta médica, elas compartilharam com a profissional o desejo que tinham de se tornarem mães. “Nós sempre pensamos em ter uma família, em ter um filho; no caso de casal homoafetivo, precisa desse planejamento”, relata Valessa.
No caso de casais femininos, há duas opções de procedimentos, a fertilização in vitro e a inseminação artificial (intrauterina). Enquanto em uma a formação do embrião é realizada em laboratório, fora do corpo da mulher, na outra envolve a introdução de espermatozoides capacitados, próximo ao período de ovulação, diretamente no útero.
As duas optaram por realizar uma prática comum entre casais femininos, a gestação compartilhada: uma oferece o óvulo e a outra gesta. Assim, Valessa doou sua carga genética, que foi unida ao gameta de um doador masculino anônimo em laboratório e transferida ao útero de Janaína. O positivo, contudo, não apareceu na primeira tentativa.
“Quando começamos a fazer um processo de fertilização, vamos entendendo duas coisas que são bem importantes: primeiro, que ainda bem que a ciência existe e que ela pode auxiliar. A outra coisa é que a ciência não caminha de modo separado da natureza. A natureza acaba fazendo a parte dela. É um processo de várias etapas”
Valessa Silveira
Ao todo, o casal passou por três tentativas até a chegada do resultado aguardado. “Dentro das expectativas e da porcentagem, tem mais chance de não dar certo. São tentativas que dependem de como se dará o desenvolvimento. Saber lidar com isso é bem complicado, é o psicológico”, recorda Janaína.
A especialista em reprodução humana Marta Hentschke afirma que é importante para o casal estudar o tema para conhecer todas as possibilidades e dificuldades. Além disso, ela orienta aos pacientes buscarem acompanhamento psicológico durante o tratamento, diante das expectativas que envolvem o processo. “A maior dificuldade é que nada é 100%. Há o medo do negativo, e isso gera uma ansiedade muito grande.” O sentimento está vinculado ao percentual de sucesso, já que as chances de que a FIV resulte em gravidez gira em torno de 30%.
Legislação e (in)viabilidade no Sistema Único de Saúde
O Conselho Federal de Medicina tem sido, ao longo dos anos, responsável pela publicação das normas que regem a prática da reprodução assistida no Brasil. A advogada Luiza Sartori Parise, pós-graduanda em Direito de Família e membro do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS, explica que a legislação brasileira se silencia diante dos procedimentos e da cessão temporária de útero, ficando a cargo do CFM estabelecer os mecanismos de regulamentação e os parâmetros éticos das práticas, mas sem peso de lei.
Até 2021, expressamente se previa o acesso às técnicas por casais heterossexuais, homoafetivos e por pessoas solteiras. Em razão da resolução vigente, a n.º 2.320/2022, generalizou-se, ao se citarem “todas as pessoas capazes”. Conforme a advogada, a nova indicação foi dada para fins de não discriminação e de igualdade.
Atualmente, o CFM estabelece uma série de regras, como o estabelecimento de idade máxima para mulheres e os limites para a realização da cessão temporária de útero, mesmo que permita exceções. Parise aponta que o fato de não haver uma normativa na legislação brasileira, junto às dificuldades impostas pelo Conselho, acabam-se abrindo inseguranças jurídicas. “Em razão, contudo, da ausência normativa, incentiva-se a clandestinidade, tendo em vista que a ‘barriga de aluguel’ ocorre à margem da existência de regulamentação específica, principalmente em grupos de Facebook e de WhatsApp, já que mulheres cedem seus úteros de forma onerosa e acabam incorrendo em crimes”, comenta.
A Constituição Federal propõe que é de livre decisão dos casais o planejamento familiar e de competência do Estado a promoção de recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
“O direito à reprodução não tem caráter absoluto, tendo limites para o seu exercício a partir da previsão da parentalidade responsável e do melhor interesse da criança”
Luiza Sartori Parise
A Política Nacional de Saúde LGBT descreve que um de seus principais objetivos é garantir os direitos sexuais e reprodutivos da população LGBTQIAP+ no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O acesso às técnicas de reprodução assistida no sistema público é, contudo, restrito a casais heterossexuais.
Para os casais Marcelo e Manoel e Valessa e Janaína, o principal desafio foi o planejamento financeiro. Um procedimento como a fertilização in vitro pode custar em torno de 30 mil reais, o que se soma a uma grande chance de não sucesso. Diante da impossibilidade de realização pelo SUS, da não abrangência por parte dos planos de saúde e dos altos custos, muitos casais, principalmente os femininos, recorrem a métodos perigosos, como a inseminação caseira. A prática envolve a coleta do sêmen de um doador e sua introdução imediata em uma mulher com uso de seringa ou outros instrumentos. A prática é normalmente feita entre pessoas leigas e em ambientes domésticos, fora dos serviços de saúde.
Dois pais e duas mães
Os nomes de Manoel e Marcelo estão descritos na certidão de nascimento de Laira e Kaila, assim como os de Janaína e Valessa estão na de Eduarda. A lei assegura a casais homoafetivos o direito de obter o registro civil de filhos gerados a partir de técnicas de reprodução assistida, diante da comprovação do procedimento.
No contexto da gestação por substituição, a pessoa cedente do útero não integra o registro nem terá qualquer relação de parentesco civil com a criança gerada. No caso de Manoel e Marcelo, Flávia, como irmã de Marcelo, é a tia das meninas. “Ela sempre se colocou nessa posição de tia. Ela sempre falou ‘Eu não sou a mãe, eu sou a tia. Eles são os pais’. Ela tem um carinho muito grande pelas bebês”, comenta Manoel.
De acordo com a médica psicanalista e doutora em Antropologia Social pela UFRGS Elizabeth Zambrano, as novas tecnologias propõem um rompimento das estruturas tradicionais diante das possibilidades que se oferecem aos casais LGBTQIAP+. Ao longo do tempo, a compreensão e a definição de família mudaram, reconhecendo diferentes formas de relacionamento e configurações, deixando de ser uma entidade estabelecida apenas pelo instituto do casamento, assim como deixou de se restringir ao núcleo pai-mãe-filhos. O foco são as relações intersubjetivas, nas quais há diversos conceitos e formatações com base no princípio do afeto.
“A criança precisa de cuidados. Então, se tiver pessoas que se responsabilizam pelo cuidado, que vão amar e vão cuidar daquela criança, não importa se são pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes. As funções de cuidado, de proteção, de passagem de valores, essas são as funções parentais. Elas não têm essa divisão entre função materna ou função paterna. Elas não estão ligadas à anatomia de cada parceiro”
Elizabeth Zambrano
O importante, portanto, é nutrir um ambiente amoroso e respeitoso, no qual a criança possa crescer e se desenvolver de maneira saudável e feliz.
“Na nossa família, somos duas mães e estamos vivendo a maternidade. Ela é compartilhada, é somada”, afirma Valessa. Ela e Janaína são o primeiro casal lésbico do seu núcleo social a terem um filho a partir de fertilização in vitro. Com o nascimento de Duda, ambas deram início a uma nova fase em suas vidas, na qual buscam oferecer um apoio mútuo constante, dividindo as preocupações e celebrando as conquistas. Valessa, inclusive, apesar de não ter gestado a menina, optou por tomar hormônios para que também pudesse amamentar e compartilhar essa experiência com a esposa.
Manoel e Marcelo criaram um diário para as filhas nas redes sociais com o objetivo de, no futuro, terem registros das diferentes fases vividas pelas gêmeas e da dupla paternidade vivida por eles. “É um diário de vida para contar a história delas quando forem maiores. É também uma forma de materializar esse sonho”, conclui.