Taxar as plataformas para não depender delas

Publicado originalmente em OBJETHOS por Rogério Christofoletti. Para acessar, clique aqui.

Não foi uma coincidência o Google anunciar um programa de incentivo ao jornalismo dias antes de entidades de classe defenderem a criação de um fundo público para apoiar a atividade profissional. Os dois movimentos estão conectados e sinalizam que algumas placas tectônicas se movimentaram sob o terreno pretensamente harmônico entre big techs e indústria jornalística.

No começo de outubro, Google estimou que despejará 1 bilhão de dólares em três anos, remunerando alguns veículos por suas notícias. Como sempre, o anúncio abusou da retórica da gratificação: o conglomerado de tecnologia escolheu poucos países no mundo para investir, e neles, serão beneficiados raros casos de reconhecida qualidade editorial. Quem for alcançado pelo Google Showcase/Destaques terá um status de escolhido, ungido, quase abençoado… Em tempos de extrema escassez no setor, a ideia parece excelente, mas ela está longe de salvar a indústria de jornalismo, e os critérios de escolha são muito opacos, para dizer o mínimo. Iniciativas do tipo são bem-vindas, mas elas não podem ser tratadas de forma acrítica e francamente adesista. Já argumentei antes que o socorro das big techs ao jornalismo pode ter um preço altíssimo com a perda da independência editorial de meios e jornalistas. Nos planejamentos de conglomerados como Google e Facebook, programas de fortalecimento do jornalismo são ótimos investimentos de relações públicas: cabem nas planilhas de custos, domesticam um setor que pode ser incômodo e projetam uma imagem pública bastante positiva. Afinal, dá a impressão de que as empresas do Vale do Silício se importam com o público, a informação e a democracia.

Mas como eu dizia antes, o anúncio bilionário faz parte de um contexto mais amplo: cada vez mais se fala da necessidade de limitar os poderes das big techs; cada vez mais a indústria jornalística se queixa de que não é remunerada pelos seus conteúdos e serviços; cada vez mais essas tensões se tornam visíveis e aparentes para as sociedades.

Na mesma semana do anúncio do Google Showcase/Destaques, FIJ e Fenaj lançaram campanha para discutir a criação de um fundo para manter o jornalismo. Para financiar projetos e veículos, as grandes plataformas seriam taxadas, arcando com a conta. O debate ainda é inicial, e uma das possibilidades aventadas é que, no Brasil, seria criado um fundo setorial – como o FUST ou Fundeb -, a ser abastecido constantemente por uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), semelhante a um imposto e com destinação definida. Outras formas de receita poderiam desaguar no fundo, e sua gestão e distribuição de recursos seriam públicos e transparentes.

A ideia é arrojada e criativa. Há meses defendo que é preciso taxar as plataformas para subsidiar o jornalismo. Com isso, poderíamos enfrentar dois graves problemas: a crise financeira da indústria jornalística e o poder avassalador das big techs, que projeta perigosa sombra sobre a democracia, os direitos e o capitalismo.

Inimigas do jornalismo

Nos últimos tempos, Facebook e Google têm se aproximado estrategicamente da indústria jornalística. Destinam recursos para fortalecer o jornalismo local, oferecem treinamento a redações, desenvolvem soluções de gestão, discutem produto e engajamento, apoiam agências de checagem de dados, projetos de certificação e sustentam iniciativas de educação midiática. Ajudam, inclusive, os pequenos meios a prosperar! Diante dessa lista, a primeira impressão é a melhor possível: eles estão ajudando a salvar o jornalismo.

Olhando em perspectiva, o cenário é outro.

As big techs encarnam ameaças existenciais reais à indústria do jornalismo. Nos últimos anos, Google e Facebook drenaram oceanos de verbas publicitárias que antes irrigavam meios jornalísticos. Juntos, esses gigantes abocanham dois terços de toda a publicidade da internet hoje, e esse apetite parece infinito: eles não só têm as plataformas de exibição de anúncios, como também detêm os mercados e sistemas de anúncios, e controlam os algoritmos de visualização de conteúdos. Essa pecualiaridade dá a Facebook e Google a chance de chantagear seus clientes por mais visibilidade e alcance, arrastando-os para pagar por impulsionamentos ou para ter uma posição mais privilegiada entre os resultados numa busca.

Uma segunda razão para acreditar que as big techs não são as melhores amigas do jornalismo: nos últimos anos, as plataformas convenceram o público a naturalizar produtos e serviços gratuitos na internet. Sabemos que não existe nada de graça, e que o modelo de rentabilidade das big techs alia publicidade e exploração de dados pessoais.

A disseminação de uma mentalidade de internet free é deletéria ao jornalismo e a muitas outras atividades humanas, que encontram pouca margem para cobrar por seus serviços. Há uma confusão deliberada no termo “free” que pode tanto significar “livre” como “grátis”. Mas as operações humanas têm custos, e o jornalismo não é diferente. Alimentar a ideia de que é possível acessar conteúdos e usufruir de conteúdos sem custos não prejudica a indústria só no presente. Compromete o futuro também porque as novas gerações estão mergulhadas na mentira da gratuidade, e se mostram muito indispostas a “ter que pagar por notícias”.

Não bastasse sugar boa parte da publicidade que mantinha a indústria jornalística e desencorajar os consumidores a pagarem por informação, as plataformas vão além: elas utilizam os conteúdos jornalísticos e não remuneram organizações ou seus produtores, os trabalhadores jornalistas. O movimento do Google Showcase/Destaques e acordos pontuais da plataforma com publishers confirmam que a remuneração por uso não é um padrão, mas uma condição isolada.

Então, raciocinemos: se alguém tira o que mantinha o seu sustento, convence outras pessoas a não te pagar, e se alguém ainda usa seus produtos ou serviços sem te remunerar, essa pessoa é sua amiga? Claro que não. Se alguém contribuiu em várias frentes para uma crise que hoje asfixia o seu negócio, esse alguém é seu inimigo, e é o que as big techs são para a indústria jornalística. Acenar com soluções aqui e ali não faz delas mais preocupadas com o setor. Imaginar isso é ingenuidade.

Até porque os movimentos das plataformas acontecem num momento muito particular. Um volumoso relatório da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos indica que as big techs abusam de seus poderes e que é necessário revisar isso. Na mesma direção, na metade do mês, o Departamento de Estado iniciou um processo antitruste contra Google que não se via há décadas. Parece prosperar uma disposição nos Estados Unidos de intervir e regular, o que não é frequente. Não há bonzinhos nesta história, é verdade, mas essa guerra afeta a todos. Na Europa, parlamentos e tribunais têm alertado de que as práticas anticoncorrenciais e as continuadas invasões de privacidade não são toleráveis. A ideia de que o modelo de negócio dessas big techs e seus comportamentos monopolistas são incompatíveis com a democracia e o panorama econômico global.

Taxar é a saída?

Na semana passada, um debate pela internet reuniu representantes da Fenaj, ABI, agências de fact-checking, empresas do setor e da Coalizão Direitos na Rede (CDR), que reúne ativistas, movimentos sociais e setores acadêmicos. Com um nome sugestivo – Jornalismo e Plataformas: Quem Paga a Conta? -, a discussão girou em torno de um trecho do projeto de lei 2630, que foi apelidado de PL das Fake News. O setor empresarial quer incluir o tema da remuneração no texto, assunto que Fenaj e CDR reconhecem importância, mas que julgam estar fora de lugar. Há divergências notórias entre as partes, mas elas concordam em um ponto: a conta tem que ficar com as big techs. “Isso era um não-assunto antes. Agora, [fazer com que as plataformas paguem] é uma questão de quando e como”, afirmou o advogado Marcelo Bechara, representante do setor empresarial e publicitário.

Obrigar os grandes conglomerados a pagar taxas que venham a subvencionar serviços ou setores não é uma invenção nacional. Na Europa, já não se sussurra isso. Alguns países já gritam pela Taxa Google.

Naturalmente, não podemos acreditar que se trate de uma solução milagrosa ou única. A meu ver, é uma questão de justiça econômica, fiscal e social. Se compreendemos que o jornalismo é uma atividade que atende ao bem comum, que tem um caráter social, pois provê a sociedade com produtos e serviços de finalidade pública, nada mais justo que protegê-lo ou fortalecê-lo. Se o jornalismo pode ser um instrumento de distribuição de conhecimento, informação e cultura, se pode atuar para instruir populações, fiscalizar poderes, e promover – mesmo que indiretamente – a emancipação humana, ele precisa se manter sustentável, amplo, universal e perene.

Taxar as plataformas é uma maneira de reparar os muitos prejuízos que elas vêm causando à indústria há anos; não restitui todos os danos causados, mas ao menos oferece sobrevida a organizações e trabalhadores do setor.

A taxação não impede que Google e Facebook continuem a apoiar o jornalismo com seus programas, mas a taxação amplia os benefícios para todo o ecossistema informativo, e não apenas aos escolhidos pelas plataformas. Um fundo público alcançaria os pequenos meios, os coletivos mais longínquos, projetos jornalísticos com desenhos variados, que são desprezados ou esquecidos pelas plataformas em suas políticas de concessão. Uma saída desse tipo pode efetivamente contribuir para o sistema informativo, sem onerar o Estado ou a sociedade, e dar às plataformas uma oportunidade de se provarem verdadeiramente engajadas na solução dos grandes problemas globais, como o da desinformação.

Taxar as grandes plataformas para não depender delas parece paradoxal, mas não é. Cobrar delas uma diminuta parcela de seus ganhos para compor um montante para ser proporcionalmente distribuído é uma forma de não esperar caridade ou boa vontade. Ações pontuais e acordos isolados de Google e Facebook darão lugar a uma política mais ampla e equilibrada de divisão de verbas. Um sistema mais difuso e efetivo num ecossistema tão diversificado. No fundo, é uma questão de justiça.

Rogério Christofoletti
Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS

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