Publicado originalmente em Brasil de Fato por Alex Pegna Hercog. Para acessar, clique aqui.
Imprensa dá destaque a suposta ‘confusão’ e silencia sobre debate de modelos de produção agrícola
A chegada de João Pedro Stedile à “CPI do MST” foi marcada por um cortejo. Mães e filhas de santo seguiram de mãos dadas com o líder sem terra numa procissão pelos corredores da Câmara Federal junto a parlamentares e demais representantes do movimento social. Na porta da sala da comissão, seguranças restringiam o acesso, e o próprio Stedile – convocado para depor na condição de testemunha – teve dificuldade para entrar.
No entanto, enquanto se via uma homenagem carregada de simbolismo e apoio ao depoente, a mídia enxergava uma confusão. De acordo com o jornal O Globo, “chegada de Stedile tem bate-boca e troca de empurrões”. O veículo preferiu ignorar o cortejo que conduziu o líder nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e optou por reproduzir um vídeo do momento de sua entrada na comissão, onde era possível ver a dificuldade de acessar a sala.
As pessoas tendem a enxergar aquilo que querem ver. E o que é visto ou invisibilizado pela mídia já diz muito sobre sua narrativa e interesses. Portanto, não surpreende que o que mais tenha chamado a atenção do jornal O Globo tenha sido o empurra-empurra no acesso à Comissão. Associar atos violentos ao MST é uma prática comum, não apenas por este veículo, mas pelos principais grupos de mídia comercial. É o que vem apontando esta série “Vozes Silenciadas – quem quer calar a luta dos sem-terra?”, que acompanha a cobertura midiática em relação ao MST no período relacionado aos trabalhos da atual Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instalada na Câmara em 17 de maio de 2023. Estão sendo analisadas seis mídias privadas (O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal Nacional, Portal R7 e Agromais) e uma pública (Agência Brasil).
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Durante a CPI do MST, a maioria das matérias publicadas pelas mídias pesquisadas associavam o Movimento a atos violentos. O jornal O Estado de S.Paulo, por exemplo, teve 72 publicações analisadas desde a instalação da CPI, no dia 17 de maio. Até 31 de julho deste ano, 61% das matérias citaram atos violentos, sendo que em 84% delas o MST era acusado de ter cometido violência. Já o portal R7 trouxe, em 54% de sua cobertura, acusações de violência supostamente cometida pelo Movimento.
Apesar de políticos e empresários ligados ao agronegócio (e reverberados pela mídia comercial) construírem historicamente uma narrativa de que o MST comete crime ao “invadir” propriedades, o resultado da CPI indica que nem mesmo os parlamentares oposicionistas acreditam nisso. Um exemplo é que nenhuma ocupação foi denunciada como ilegal pela Comissão, e a principal acusação feita pelo relator Ricardo Salles (PL-SP) ao interpelar Stedile foi sobre possíveis irregularidades em assentamentos, cometidas por líderes locais. Um espectador desavisado poderia até imaginar que o relator apoiava as ocupações e estava preocupado com os trabalhadores e as trabalhadoras sem terra dos assentamentos – aliás, o próprio Stedile “agradeceu” a preocupação, destacou a importância da fiscalização e disse que o próprio Movimento era o maior interessado em identificar e corrigir irregularidades.
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O representante do MST, com formação em Economia, aproveitou a audiência para dar uma aula sobre a exploração da terra no Brasil. A explanação, ainda que prolongada, capturou a atenção dos parlamentares, incluindo Ricardo Salles e o presidente da CPI, o coronel Zucco (Republicanos-RS), que o escutaram atentamente. Em sua explicação, Stedile ponderou a existência de duas correntes do agronegócio: uma que percebeu a necessidade de adotar um modelo com mais respeito ambiental e outra ala que ignora os prejuízos futuros decorrentes do atual modelo predatório de exploração. Em ambos os casos, Stedile ressaltou que a financeirização faz com que bancos e investidores fiquem com a maior parte dos lucros atualmente comemorados pelos empresários.
Nada da “aula”, que prendeu a atenção até dos oposicionistas, repercutiu na mídia. Os veículos comerciais optaram por reproduzir a fala de Stedile afirmando que “o agronegócio burro está com os dias contados”, como destacou a Folha de S.Paulo em sua manchete do dia 15 de agosto. O leitor que não acompanhou a CPI pode até interpretar como uma ameaça feita pelo líder do MST, quando na verdade Stedile explicou que esse fim previsto seria consequência dos próprios atos do setor do agronegócio que, segundo ele, visam ao “lucro fácil” e imediato.
Como já havia afirmado, Stedile não temia a ida à CPI. Aliás, o próprio Movimento fez questão de divulgar seu depoimento, ansioso pelo seu desempenho e oportunidade de fala. Posturado e calmo, observando tudo com uma maçã na mão, Stedile fez piada, brincou com adversários e respondeu a todas as perguntas. Diferentemente de outros depoentes da CPI, que traziam respostas prontas ou mesmo recorreram ao direito de ficar calados, Stedile estava descontraído, contrastando com a tensa manchete do Estadão, divulgada um dia antes: “Governo prevê prisão de Stédile e aposta corrida com oposição para barrar relatório de Salles”.
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A espontaneidade de Stedile, em determinado momento, trouxe algo que deve ter deixado muitos jornalistas contentes: a autocrítica. Indagado pelos deputados, ele discordou das manifestações do MST na sede da Embrapa, em Pernambuco. Segundo ele, a ocupação realizada no final de julho foi “um erro”, ponderando a autonomia do Movimento local e os motivos que levaram à realização do ato. Pronto! A manchete já estava preparada e pouco importava o conteúdo das quase sete horas de depoimento.
“Stedile admite na CPI que MST errou ao invadir área da Embrapa e prega autonomia à gestão de Lula”; “CPI do MST: Stedile diz que invasão de área da Embrapa foi erro e que apoio ao governo não é incondicional”; “Agro burro está com dias contados, e invasão da Embrapa foi erro, diz Stédile na CPI do MST”. Essas foram as manchetes publicadas, respectivamente, pelo Estadão, O Globo e Folha de S.Paulo no dia 15 de agosto.
Os diversos veículos comerciais exploraram bastante essa fala de Stedile que, em partes, corrobora com o discurso contrário ao MST. Na cobertura da manifestação na sede da Embrapa, as mídias comerciais não pouparam ataques ao Movimento, repetindo exaustivamente o termo “invasão” em suas matérias e priorizando fontes contrárias ao MST, especialmente membros da Frente Parlamentar Agropecuária, ligada ao agronegócio.
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De um modo geral, o destaque à crítica sobre o ato na Embrapa, as “ameaças” a setores do agronegócio e a relação do MST com o governo Lula foram os principais pontos abordados pela mídia comercial na cobertura do depoimento de Stedile. Temas pouco “bombásticos” para quem apostou que sua ida à Comissão pudesse reanimar a CPI, que atualmente respira por aparelhos. Ao ignorar o debate travado entre Stedile e os parlamentares sobre o modo de exploração da terra no Brasil e focar nas supostas contradições do Movimento, a mídia privada só reafirmou o seu olhar sobre a cobertura da CPI: em vez de aproveitar a oportunidade para debater questões ligadas à reforma agrária, modelos de agronegócio e conflitos agrários, a imprensa optou por criminalizar o MST e associá-lo ao governo Lula.
Já que a CPI não identificou crimes cometidos nas ocupações e investigou apenas meia dúzia de denúncias de irregularidades em assentamentos, não há muito para a mídia comercial e os deputados de oposição explorarem. Isso explica a razão de o relator da CPI, Ricardo Salles, não pedir sua prorrogação. Pelo andar da carruagem, a Comissão pode inclusive acabar antes da data prevista.
*Alex Pegna Hercog é comunicador social e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
** A série Vozes Silenciadas – Quem quer calar a luta dos sem-terra? é produzida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Coordenação: Mônica Mourão. Pesquisa: Alex Pegna Hercog e Eduardo Amorim. Colaboração: Olívia Bandeira e Pedro Vilaça.
*** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas