Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Por Carolina Burle de Niemeyer
No Brasil, de todas as iniquidades em saúde, a fome é a mais perversa, pois além de evitável é injusta.
A pandemia por Covid-19 escancara as desigualdades brasileiras, e evidencia a dimensão histórica e sociopolítica da fome no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2017 e 2018, a insegurança alimentar grave esteve presente no lar de 10,3 milhões de pessoas. Dos 68,9 milhões de domicílios, 36,7% estavam com algum nível de insegurança alimentar, o que equivale a 84,9 milhões de pessoas.
Embora o retorno do Brasil ao mapa da fome da ONU não possa ser resumido à pandemia de Covid-19, o abandono da população mais vulnerável pelo poder público agravou muito o quadro, como revelam o primeiro e o segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN).
De 2020 a 2022, o percentual de domicílios com moradores passando fome passou de 9% para 15,5%. São 33,1 milhões de brasileiros sem ter o que comer no país onde o agronegócio responde por 65,8% do volume de exportações, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
A crise econômica e sanitária afetou as periferias do campo e da cidade. O fechamento das feiras livres e o cancelamento de compras públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criou dificuldades para os pequenos agricultores escoarem a produção. Famílias urbanas também foram afetadas pelo fechamento das escolas, pois a alimentação escolar é o que garante a refeição de muitas crianças periféricas.
Neste contexto, foram as redes de “solidariedade ativa”, mobilizadas por movimentos sociais, urbanos e rurais, que apoiaram a população mais vulnerável. “Solidariedade ativa” é um termo político usado pelos movimentos sociais para se diferenciar suas ações da “solidariedade filantrópica”, que visa apaziguar a consciência de classe.
A partir da doação de alimentos, os movimentos promovem uma aliança entre o campo e a cidade, fortalecem o trabalho de base e criam outras frentes de ação nas periferias urbanas e rurais, deixando um legado que supera o tempo das ações emergenciais.
Um exemplo emblemático é a “campanha nacional e popular Periferia Viva”, que surgiu focada na doação de alimentos produzidos por assentados da reforma agrária, para territórios vulneráveis e a população em situação de rua, que evoluiu para uma experiência de vigilância popular em saúde.
Realizado em diferentes estados do Brasil, o “Curso de Agentes Populares em Saúde” tem o apoio de instituições de ensino e pesquisa, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). De base territorial, o seu propósito é tanto capacitar moradores para cuidarem das suas comunidades, como potencializá-los para atuarem na reivindicação de políticas públicas com base na identificação dos seus principais desafios e potencialidades.
O que caracteriza essas ações é buscar ir além de uma ação imediatista, mediante a construção de processos de longo prazo, definidos a partir da necessidade das pessoas contempladas e em diálogo com elas, contribuindo para fortalecer as redes e os vínculos comunitários e para a construção de um projeto popular de país, de baixo para cima.
Pela perspectiva da saúde e agroecologia, cabe dizer que o fomento à produção agroecológica no campo e na cidade, somado à doação de alimentos frescos para comunidades vulneráveis, têm colaborado para promover o direito humano à alimentação adequada e saudável nesses territórios. Assim como a valorização das plantas medicinais e farmácias vivas contribuíram para manter essa população saudável, principalmente no auge da pandemia, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) estava praticamente dedicado ao combate da Covid-19.
Sobre a autora
Carolina Burle de Niemeyer é pesquisadora da Escola de Governo em Saúde da Fiocruz.