Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Letícia Passuch. Para acessar, clique aqui.
Resistência | Integrantes destacam os desafios de preservar a história do clube negro mais antigo do Brasil, fundado dezesseis anos antes da abolição da escravatura
*Imagem: Gustavo Assarian
Em 31 de dezembro de 1872, a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora foi fundada por negros alforriados, que encontraram a necessidade de obter recursos para, principalmente, oferecer um destino decente aos escravizados mortos. À época, essas pessoas eram enterradas em sepulturas rasas que, passados os dias, ficavam descobertas pelo vento ou molhadas pela chuva; logo os corpos apareciam e eram devorados por animais. O objetivo era, também, dar assistência a filhos e viúvas desamparados desses escravizados. Assim como os demais clubes sociais negros espalhados pelo Brasil, a associação é hoje conhecida na história do movimento negro por espaços de mútua assistência, acolhimento, sociabilidade e luta.
A primeira sede da agremiação se localizava entre as ruas Aurora – atual Cristóvão Colombo – e Barros Cassal, ainda antes da Lei Áurea, que, em 1888, encerrou oficialmente a escravidão. No momento da fundação, havia ainda certa proporção de pessoas negras escravizadas; o clube tinha na sua origem, portanto, a perspectiva de velar pela luta abolicionista e se posicionar em relação à liberdade negra, atesta José Rivair Macedo, professor do Departamento de História da UFRGS e um dos mediadores do evento realizado em setembro na UFRGS que celebrou os 150 anos do clube.
No período pós-abolição, o Floresta Aurora tornou-se um canal e referência para que as pessoas “de cor”, como eram nomeadas à época, pudessem realizar suas reuniões, feitas às escondidas. Apesar de, na virada do século XIX para o XX, já haver menções ao clube no jornal porto-alegrense O Exemplo – bem conhecido como imprensa negra da época e que contava com florestinos entre seus quadros –, o primeiro registro oficial do clube data de 1917, em que se apresenta o Floresta Aurora como uma sociedade beneficente e de recreação.
Desde a sua fundação, o clube teve, ao todo, seis sedes situadas em pontos da capital gaúcha. A segunda sede foi na rua José do Patrocínio. Após, na rua Lima e Silva, que foi muito frequentada e lá ficou por anos. A sede com período mais curto foi no bairro Hípica. Por razões políticas, houve a necessidade de mudança para a rua Curupaiti, no bairro Cristal – segundo relatos, no ápice dos grupos jovens e das famosas festas. Atualmente, a associação se encontra na estrada Afonso Lourenço Mariante, no bairro Belém Velho. Com 200 metros de mata nativa, o clube conta com piscina, cancha de esportes, salão e área administrativa.
Os primeiros endereços eram em bairros hoje nobres da cidade e, com o tempo, o clube foi se deslocando para locais mais afastados. Além das reclamações da vizinhança em função de barulho e do movimento, o fator especulação imobiliária também desempenhou um papel importante nessas mudanças. Para José Rivair, no entanto, outras explicações estão no racismo sistêmico, na gentrificação e na segregação. “Há um processo, assim como acontece com outros espaços negros de Porto Alegre, de exclusão, mas que jamais conseguiu esvaziar o clube e impedir que se mantivesse na posição de destaque e orgulho que ele tem”, complementa.
Trajetórias de afetos
Para os florestinos, os vínculos criados no clube tecem fortes e permanentes afetos. É o que conta Maria Eunice da Silva, advogada que ingressou no Floresta Aurora em 1977 a convite do seu amigo e ex-presidente do clube Antônio Carlos Côrtes. Por muitos anos, foi conselheira na agremiação e também passou pela diretoria. Em 2010, tornou-se a primeira e, até então, única presidenta mulher do clube.
Ela assumiu a liderança em um período difícil para a sociedade em que questões judiciais ameaçavam a perda da sede. “Me senti responsável. ‘E se eu perder essa sede?’, eu pensava. Mas foi justamente nessa gestão que adquiri essa sede lindíssima, foi a glória”, diz, referindo-se ao atual endereço no bairro Belém Velho.
Agora conselheira deliberativa do clube, ela sempre traz à memória o que ouvia de um dos presidentes do clube: que os negros que fundaram a sociedade em 1872 não podiam se reunir e, mesmo assim, fizeram a sociedade; e que, agora, apesar de todas as dificuldades impostas, existe a liberdade que lá não havia. “Ele dizia: ‘nós temos uma obrigação com os ancestrais’. Nós temos compromisso com eles de seguir adiante, é uma herança que eles deixaram.”
“Eu não me vejo em outra sociedade que não seja o Floresta Aurora. Se os negros alforriados lutaram e conquistaram, eu, livre e formada como tantos outros negros, devo estar ali. Sinto muita energia para levar à frente esse trabalho”
Maria Eunice da Silva
José Flávio Rocha Silveira, presidente de honra da agremiação e um dos membros mais antigos, afirma que sua relação com o clube é de paixão. Vindo da Associação Satélite Prontidão, foi convidado ao Floresta Aurora no início dos anos 60. Foi lá que conheceu sua esposa, Valmira Teixeira Silveira, em 1967. “Nós tínhamos amigas em comum, e uma delas era o cupido, a Sara, que se dava muito comigo e com ela e começou a fazer o intercâmbio”, lembra. Eles participavam dos encontros e bailes juntos e se casaram em 1975. Tiveram quatro filhos e hoje se aproximam dos 50 anos de casados.
Marco social e cultural
Referência para a comunidade negra, o clube recebeu muitas pessoas importantes ao longo dos anos, como o ex-governador Alceu Collares, e também homenageava personalidades, como João Cândido, líder da Revolta da Chibata. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando escrevia sua tese, em 1961, teve o clube como ponto de visita para a sua pesquisa.
Com o passar dos anos, tanto o Floresta Aurora quanto as demais entidades passaram a ter um papel para além de abrigar a comunidade negra, se reconstituindo para cumprir os interesses dos sócios. Entre 1963 e 1964, a juventude tinha o hábito de se reunir na Esquina Democrática, no centro da Capital. “Nos reunimos lá, mas o Floresta Aurora estava sempre aberto para continuarmos nossas conversas, para marcar festas, fazer alguma coisa em prol da nossa juventude”, lembra Jaime Alves Núncia, antigo associado do clube.
Uma das principais atividades dos membros da sociedade era o grupo Teatro Novo, com elenco composto apenas por pessoas negras e que mantinha parcerias com outras sociedades negras. As peças sempre se voltavam para as questões da negritude – uma das mais emblemáticas foi Orfeu da Conceição, de Vinícius de Morais, encenada no Theatro São Pedro. Havia apresentações na chamada “Semana do Negro”, em referência ao 13 de maio, além de exibições de escolas de samba e encenações de pequenas peças. De segunda a segunda, o anexo do Theatro era ocupado para os ensaios – até mesmo ultrapassando o tempo imposto. “A pessoa responsável por fechar o espaço sempre tinha de nos ‘correr’ para liberar o espaço”, recorda Jaime, que participou ativamente do grupo.
Jaime lembra de escutar um jornalista perguntar, na última sexta-feira de apresentação no Theatro, onde estavam todos esses negros que não se viam em Porto Alegre. “Não sabiam que havia esses negros com tanta capacidade teatral para apresentarem uma peça tão bonita. Diziam que queriam mais”, recorda. As apresentações dos grupos apareciam em reportagens do jornal Folha da Manhã e Folha da Tarde. O grupo de teatro durou até o ano de 1972, mas muitas relações permanecem até hoje. “Já são 60 anos de amizade”, rememora.
Alguns componentes do teatro também encabeçaram o Grupo Palmares, que protagonizou a construção da Semana da Consciência Negra. Desencadeada a revolta com a data de 13 de maio, o movimento integrado por pessoas com formação política foi lançado no Clube Náutico Marcílio Dias, outro clube social negro da capital, em um momento de grande mobilização política no país.
Nomes importantes do movimento negro gaúcho eram da comunidade florestina. Um exemplo é Oliveira Silveira, um dos destaques do movimento, e Antônio Carlos Côrtes, que chegou a ser presidente da associação. “Pode-se perceber como a história da Sociedade Floresta Aurora acompanha a história da organização do movimento negro no Brasil e ocupa uma posição de protagonismo nessa história de lutas”, analisa José Rivair.
Bailes e sambas
Os bailes recebiam grande investimento na sociedade. As reuniões dançantes embalavam as noites no ambiente pujante, frequentado assiduamente até mesmo durante a semana. O grupo Magia Negra era a principal atração das discotecas na sede da rua Curupaiti, nos anos 70, com predominância do gênero Black Music. Os dias de festa enchiam a casa, a copa funcionava a todo o vapor, a equipe de trabalho era reforçada e os convites, disputados.
Os bailes de debutantes também eram frequentes. Era motivo de integração às outras sociedades negras, cujos representantes eram convidados. Na sede, as meninas realizavam cursos de desfile e etiqueta para a ocasião. Até a imprensa aparecia para registrar a célebre atividade. “Minha filha mais velha, Flávia, debutou na sociedade”, lembra José Flávio, orgulhoso que a levou para o baile. O traje, no dia, era de gala. “Tenho até hoje meu smoking”, recorda.
A famosa “festa dos bixos” também era organizada pela juventude, que comemorava a chegada dos calouros na faculdade. Havia uma passeata na rua, que seguia à sociedade e, no fim, era promovida uma festa.
A Sociedade Floresta Aurora carrega, também, um capítulo importante na história do Carnaval de Porto Alegre. Em 1967, o clube participou da fundação do famoso bloco “Os Intocáveis”, do qual José Flávio foi um dos fundadores e cuja ala desfilava da avenida João Pessoa até a Loureiro da Silva. Muitas figuras ligadas ao Carnaval no Rio Grande do Sul eram vinculadas ao Floresta Aurora, como o compositor Wilson Ney.
Maria Eunice foi porta-estandarte nos carnavais entre 1980 e 1982, um dos últimos anos de intensa atividade do bloco. Ele ainda hoje perdura com uma participação efetiva no desfile do Carnaval organizado em Atlântida Sul, no município de Osório. “Houve um recesso por causa da pandemia, mas já estamos nos preparando para, no próximo ano, participar da festa, que é até hoje muito familiar”, diz José Flávio.
Passado, presente e futuro
Após tantos anos de história, o clube ainda enfrenta grandes desafios. Um deles é preservar o seu futuro, atraindo novos sócios, principalmente jovens. “Os nossos sócios hoje são de mais idade; há pouco movimento da juventude”, diz José Flávio. Outra dificuldade é a preservação do patrimônio: os integrantes chegaram a submeter um projeto de organização, catalogação e manutenção do acervo à Secretaria da Cultura do Estado, mas ficaram na suplência por falta de recursos. “Como sócia, me sinto no dever de colaborar com sua preservação”, afirma Nereidy Alves, advogada, produtora cultural e uma das organizadoras do projeto.
Durante a pandemia de covid-19, a Sociedade Floresta Aurora manteve suas portas fechadas. Além da perda de membros, o quadro de sócios reduziu. “Chegou um momento em que tínhamos só 150 sócios, mas pagavam religiosamente, mês a mês”, diz Gilmar Afrausino, atual presidente da sociedade.
Apesar de tudo isso, 2022 foi um ano movimentado para a instituição. Juntamente com a volta ao presencial, a agenda foi carregada de eventos para os festejos dos 150 anos de criação da entidade. Um dos mais importantes ocorreu na UFRGS: o seminário internacional “Clubes Sociais Negros: vivências, memórias, história e patrimônio”. Ocorrido entre os dias 27 e 29 de setembro no Salão de Atos, e no dia 30 na Sociedade, reuniu pesquisadores, militantes do movimento clubista e frequentadores da agremiação.
José Rivair fez parte da comissão cultural do sesquicentenário e coordenou o seminário desenvolvido pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS) da Pró-reitoria de Extensão com apoio da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). “É inevitável que um acontecimento tão grande e de tanta importância quanto o sesquicentenário do Floresta Aurora nos diga respeito”, diz o professor.
Também foi organizado um livro de memórias para o sesquicentenário. O registro de uma das paredes da sede do clube ilustra a capa do livro, nomeado “Floresta Aurora, 150 anos de história” e lançado oficialmente no último dia 11 de novembro, na Feira do Livro de Porto Alegre.
Jaime é contundente ao lembrar o que se celebra nesses 150 anos. “Se comemora a festa da liberdade”, diz. Com a voz embargada e os olhos marejados, Gilmar declara o respeito pela geração fundadora.
“Eu sou presidente, mas tenho que reconhecer que aquelas pessoas antes de mim fizeram muita coisa para o Floresta. Muitos eram escravos que se reuniam no final da tarde para tocar uma música, conversar. E fundaram com a proposta de ajudar seus irmãos que ficavam sem assistência. Temos que ter muito respeito, mesmo que hoje nem tudo seja maravilhas”, diz.
“O Floresta Aurora é um espelho para a sociedade negra no Rio Grande do Sul e fora dele. Somos uma referência e, também, resistência. A gente sabe que existe uma barreira a qualquer entidade negra que possa se sobressair no estado”
Gilmar Afrausino