Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Rafaely Camilo e Daniel Reis. Para acessar, clique aqui.
Matéria publicada pelo site Gospel Mais reverberou nas mídias sociais digitais religiosas nos últimos dias. Intitulado “Liberdade religiosa: Juíza manda excluir pregação na Assembleia de Deus”, o texto relata que uma “pregação incisiva”, “de alerta ao pecado”, feita pelo pastor David Eldridge, durante um evento promovido pela União das Mocidades das Assembleias de Deus de Brasília (UMADEB), sobre a condenação bíblica à homossexualidade, se tornou alvo de censura por parte da Justiça do Distrito Federal. A matéria ressalta que uma juíza teria determinado a remoção do vídeo com o sermão no YouTube, “desconsiderado os direitos fundamentais da liberdade de expressão e de manifestação religiosa, previstos na Constituição Federal”.
O assunto foi publicado em outros sites de notícias gospel e em mídias sociais de grupos religiosos, os quais classificaram a decisão como censura e perseguição a cristãos.
Bereia apurou as informações e confirmou as afirmações do pastor em pregação durante o encontro, ocorrido em fevereiro de 2023. Entre outras palavras, David Eldridge afirmou que a Bíblia Sagrada prevê a condenação ao inferno para quem pratica a homossexualidade:
“Todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lésbica tem uma reserva no inferno, todo transgênero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno, todo drag queen e prostituta tem reserva no inferno”.
O vídeo com a pregação do pastor Eldridge foi publicado posteriormente na ADEB TV, o canal oficial da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Brasília, e replicado em diversas mídias digitais. Após tomarem conhecimento do vídeo, a Aliança Nacional LGBTI e a Associação Brasileira de Familias Homotransafetivas (ABRAFH) recorreram ao poder judiciário do Distrito Federal, por meio de uma Ação Pública, para a remoção do vídeo que conteria discurso de ódio.
Quem é o pastor?
O pastor estadunidense David B. Eldridge participou de outros eventos promovidos pela UMADEB. Esteve nas edições de 2019, 2020 e 2021 sempre com destaque e com pregações polêmicas. Todavia, nos EUA, Eldridge, pelo que foi possível ao Bereia apurar, é uma figura sem relevância no segmento religioso, suas mídias sociais não têm muitos seguidores e dão ênfase aos eventos ocorridos no Brasil.
Bereia buscou levantar dados sobre o pastor, sobre a vinculação a uma igreja e cidade de referência, mas foi possível apenas identificar a autodeclaração de residência em Kentucky e um breve perfil no qual se apresenta como pastor pentecostal. Não há registros nos espaços de mídia do pastor ou em outros espaços sobre igrejas nos EUA, sobre a vinculação institucional dele, apenas uma breve menção própria sobre ser aluno de Direito no Oakbrook College.
A decisão judicial
Em 2 de junho de 2023, a juíza Lívia Lourenço Gonçalves, da 4ª Vara Cível de Taguatinga (DF), determinou a retirada do vídeo. Conforme a decisão:
“a ação civil pública foi promovida com o objetivo de buscar a condenação da requerida por supostos danos morais coletivos praticados em face da universalidade de pessoas integrantes da comunidade LGBT+, além da retirada de vídeos com o conteúdo supostamente ofensivo da honra e atributos da personalidade dessa população, a ensejar a prática de atos que veiculariam discurso de ódio e incentivariam a prática de crimes contra as pessoas da comunidade LGBT+”.
A juíza Lívia Lourenço Gonçalves sentenciou o seguinte:
“Ante o exposto, DEFIRO o pedido de tutela provisória de urgência, para determinar a intimação da requerida para que retire, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas contados da intimação pessoal, o vídeo com o discurso proferido pelo pastor David Eldridge no Congresso Evangélico União das Mocidades das Assembleias de Deus em Brasília, o qual ocorreu em 19 de fevereiro de 2023, no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, em Brasília, especialmente a parte em que ele fala: “Todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lésbica tem uma reserva no inferno, todo transgênero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno.” O vídeo deverá ser retirado de todas as redes sociais da requerida e também do evento, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por dia, até o limite do valor da causa”.
Para fundamentar a decisão, a magistrada ressalta que “com efeito, malgrado a Constituição Federal garanta a liberdade de expressão e de manifestação religiosa, é inequívoco que o exercício do direito deve ser ponderado com outros direitos de semelhante relevância, tais como os relacionados à igualdade e à atributos da personalidade dos indivíduos, seu bem estar psíquico, sua honra objetiva e subjetiva (atrelados à dignidade da pessoa humana), entre outros. Além disso, a Constituição também deva a discriminação baseada em opção sexual.”
Além disso, a divulgação de vídeos do evento “contendo o suposto discurso de ódio contra comunidade específica, baseadas em supostas interpretações religiosas que em grande parte também não refletem o espírito cristão, podem em tese fomentar atitudes discriminatórias e de violência por parte dos fiéis contra pessoas integrantes da comunidade LGBT+, o que não se admite.”
Que tipo de crime foi cometido?
Em 2019, o STF decidiu que a homofobia é um crime imprescritível e inafiançável. Na decisão, o STF entendeu que tal delito se aplicava à aos casos de homofobia e transfobia a Lei do Racismo (Lei n 7.716/1989). O artigo 20 da lei em questão prevê pena de um a três anos de reclusão e multa para quem incorrer nessa conduta.
Na ocasião, os ministros fizeram ressalvas sobre manifestações em templos religiosos. Segundo os votos apresentados: não será criminalizada pessoa que disser em templo religioso que é contra relações homossexuais, porém, e será criminalizada aquela que o incitar ou induzir, em templo religioso, à discriminação ou o preconceito em relação à população LGBTI+.
“a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.
Bereia ouviu um especialista, que optou por não ser identificado, que atua em temas como Direitos Fundamentais, Minorias e Ativismo. Ele explica que a ação promovida pelas entidades contra a Igreja Assembleia de Deus de Brasília se dá no âmbito cível e que a determinação da juíza é uma decisão liminar, ou seja, é provisória pelo fato de ela ter entendido que havia certa urgência no encaminhamento. Desse modo, a juíza deferiu que o vídeo fosse suspenso em caráter provisório e o processo seguirá o curso até o provimento definitivo. Como a decisão não é penal, mas cível, nestse caso, não se aplica a decisão do STF, pois ainda não há acusação de homofobia, mas, sim, de danos morais.
Para o especialista, a decisão da juíza demonstra que, na situação em questão, existe um risco de dano, de perigo, com a permanência do vídeo na internet, pela possibilidade de haver prejuízo à dignidade das pessoas em decorrência da circulação do conteúdo.
O vídeo foi retirado, portanto, nestas condições, como primeira medida, e a ação terá prosseguimento, quando outras decisões deverão ser encaminhadas. Caso a condenação seja consumada, além da retirada do vídeo poderá haver a definição de uma indenização por danos morais.
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Bereia avalia a matéria do Gospel Prime e a reprodução do tema em outros espaços com a classificação de censura como enganosa. É fato que a decisão de remoção do vídeo do Youtube foi tomada. No entanto, os sites e espaços religiosos não explicam que, segundo a decisão da juíza, o teor da pregação foi considerado nocivo, com linguagem que “degrada, inferioriza, subjuga, ofende, leva à intolerância ou discriminação” e pode “ser configurada como crime”. Portanto, o discurso proferido não se concretiza como mera “pregação incisiva”, “de alerta ao pecado”, como quer fazer crer o texto da matéria.
Bereia alerta seus leitores e leitoras sobre a desinformação frequente que atribui a inibição do cometimento de crimes e do abuso da liberdade de expressão como perseguição a cristãos, conforme já tratado em matérias publicadas anteriormente.