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Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Se tudo falhar, ainda temos o aborto. A sentença vale para os extremistas de direita, oportunistas políticos, fanáticos religiosos e carentes de cliques. São eles os verdadeiros adeptos e defensores do aborto, uma espécie de tema fantasma que pode ser revivido a qualquer tempo para assombrar e articular forças. Esses fiscais da moralidade alheia precisam que o aborto exista, que exista de modo clandestino, criminalizado e cruel. Como todo tema sensível que permanece latente na sociedade, o aborto pode ser reabilitado ao debate público, basta um acontecimento ou uma estratégia não confessa. Embora os dados demonstrem de modo cabal que a proibição não diminui o número de abortos, mas pelo contrário, aumenta, a busca da criminalização associa forças reacionárias e mantém poder de grupos extremistas. Uma política pública bem ajustada diminui mortalidade materna e inclusive é capaz de reduzir índices de gestações indesejadas. Mas não parece um bom negócio para os mercadores do medo e da falsa defesa da vida. Países como Uruguai, Espanha e Portugal onde a despenalização ocorreu há mais de uma década, exibem melhores resultados que outros onde a criminalização é a norma. No Uruguai, o aumento inicial do número de abortos após a legalização deu lugar à estabilização. O índice de crescimento em número de abortos caiu de 27% entre 2013 e 2014 para 2% entre 2016 e 2017, segundo o Ministério de Saúde Pública (MSP) do país vizinho. Em agosto de 2017, o MSP divulgou dados sobre o avanço da política pública de saúde sexual e reprodutiva que dão conta que em três anos, entre 2013 e 2016, o Uruguai registrou três mortes por aborto, nenhum deles realizado no sistema público de saúde. Para efeito de comparação, no Brasil entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública. O aborto é uma das principais causas de morte materna no Brasil. Já na Espanha, houve queda inicial após a legalização em 2010 e depois estabilização. Desde 2014, se mantém no patamar. A legalização veio acompanhada também de redução de aborto em todas as faixas etárias, mas especialmente entre adolescentes com até 19 anos. Enquanto em 2010 eram 13 abortos por cada mil adolescentes, em 2016 não chegou a nove em cada mil.
Em Portugal, assim como na Espanha e Uruguai, houve aumento dos abortos legais nos primeiros anos da lei, mas depois estabilizou e iniciou uma tendência de queda. Quando atendida, a mulher tem apoio e aconselhamento, que não a culpabilizam, explicam as autoridades ouvidas na reportagem do coletivo Gênero e Número (repórter Aline Boueri, em 2018).
Mas o tensionamento em torno do tema, a cada período se renova. Especialmente quando a extrema direita precisa reunir forças.
No Brasil, nesse infinito dilema cabem números estranhamente simbólicos: 8 minutos é o tempo necessário para uma menina ser estuprada no Brasil, 83 são os pastores presos por estupro apenas neste semestre, 80 por cento é o percentual de meninas e jovens entre as vítimas de abuso, normalmente dentro de casa.
O aborto é um tema de dupla moral. Em todo o mundo e especialmente na América católica: ele é praticado e ao mesmo tempo condenado pelos mesmos que direta ou indiretamente o praticam. Cada circunstância em que essa medida extrema é exercida (com toda a dor e desespero que suscita) é única, mas ao mesmo tempo universal, é privada de cada corpo e espírito e ao mesmo tempo é pública, porque um problema de saúde e por ser uma métrica de desigualdade: pobres e negras padecem mais, morrem mais, são mais criminalizadas. Assim, controverso, doloroso, paradoxal se presta a ser acionado, sobretudo porque se reveste de uma dimensão de crença. Tudo muito complexo e espelho das relações de dominação, poder e crueldade que circundam corpos femininos.
O PL 1904 é um misto de teste político, chantagem e etapa doutrinária para mais um avanço no plano de implantação de um Estado teocrático no Brasil. No entanto, parece que o ladino Lira errou a mão. A proposta é tão perversa, tão pouco razoável, com argumentos tão toscos e hipocrisia tão gritante que acabou acendendo um sinal de alerta, não apenas para o tema aborto e sua carga de perversidade contra as próprias vítimas, mas também para o perigo da mistura de religião e estado. Como bem denunciou o pastor Ed René Kivitz da igreja batista Asa Branca, o congresso não tem bancada evangélica, tem cambada, porque trata com displicência e leviandade uma das mais desumanas realidades do nosso país, a violência contra as mulheres. Ele deixou claro, no púlpito, que não se tratava de um sermão sobre aborto, mas sim um sermão sobre a perversão da religião e sobre o evangelho da graça de Deus contra a religião fundamentalista.
A fala do pastor repercutiu nos principais jornais do país. Apresentadores e artistas expressivos, especialmente dos canais abertos de televisão, também se manifestaram contrários ao Projeto que na prática não apenas retrocede em direitos, mas avança em penalização. As ruas foram tomadas por homens e mulheres estarrecidos com o nível medieval da proposta. Essa reação pública e midiática é extremamente importante. Primeiro porque retira a interdição sobre um debate público difícil, mas necessário, não raro permeado por interesses políticos e cálculos eleitorais; e segundo porque enquadra um tema coletivo de saúde pública e de foro íntimo dentro de uma perspectiva mais ampla, múltipla e condizente com as várias dimensões que o assunto exige apreender.
Em 2013, defendi tese de doutorado que apontava para o silenciamento e reverberação estratégica sobre o tema aborto entre mídia, candidatos e grupos de pressão, referente as eleições presidenciais de 2010. Naquele esforço de pesquisa para mapear a teia de conteúdos interessados sobre o assunto, ficou nítido o quanto os grupos religiosos, católicos e evangélicos, utilizariam desse tema e como qualquer equação eleitoral precisaria incluir essa variante, de organizações com apetite político e presença midiática de alta capilaridade. Naquele momento, meus levantamentos informaram que a cobertura jornalística reproduziu o viés pretendido pelos promotores do agendamento do tema, com propósito de enfraquecer a primeira candidatura competitiva de uma mulher, então eleita presidenta Dilma Rousseff. No segundo turno daquelas eleições, em vinte e poucos dias, os três jornais de referência que observei produziram quase 500 reportagens sobre o tema aborto (algo inusitado, tendo em vista que a presença anterior dessa pauta se resumia às páginas policiais, normalmente sobre clínicas clandestinas). Dessas reportagens todas, apenas uma, uma apenas, tratava do tema sob a ótica da saúde pública e ouvia mulheres vítimas da criminalização. Passados 10 anos, a cobertura jornalística parece ter amadurecido, ao que pesem os virulentos ataques da extrema direita ao jornalismo profissional. A reportagem do Fantástico no último domingo, dando inclusive voz para o autor do Projeto, foi exemplar na condução de uma reflexão sobre a crueldade que uma menina violentada diversas vezes, (pelo agressor, pelo sistema de saúde, pelas igrejas, pela burocracia, pelo sistema de justiça) foi submetida. Essa dor, esse drama têm valor notável para os extremistas inescrupulosos. Por isso digo o quanto eles são favoráveis que a chaga do aborto exista.
Não fiz nenhum levantamento com método e rigor desta vez, para sistematizar a cobertura, mas basta olhar jornais e telas. Lá está o grito de todas: nem presas, nem mortas.
Sandra Bitencourt
Jornalista, doutora, pesquisadora do NUCOP, membro do Conselho Consultivo do OBCOMP e presidenta do Conselho Mídia e Democracia
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