Salas de cinema oferecem uma experiência coletiva importante, destacam profissionais e pesquisadores da área

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Cultura | Para além do envolvimento com uma narrativa fílmica, o que pode ocorrer em qualquer situação, os espaços de projeção oportunizam uma vivência singular, além de constituírem, em alguns casos, ferramentas de preservação da memória cultural e promoção de políticas públicas

*Foto: Katiuscia Canoro e Rafael Infante em gravação de cena do filme “Os Fora da Lei”, dirigido por Jorge Furtado e gravado em Porto Alegre (Tuane Eggers/ Divulgação ViaComm CBS Brasil, 23 out. 2021)

Minha primeira experiência, já tardia, na Cinemateca Capitólio foi no meu aniversário de 20 anos, em 16 de setembro deste ano. Estupefatos com o fato de que eu jamais havia assistido a trilogia clássica da franquia Star Wars, meus amigos aproveitaram a reabertura das salas de cinema naquele momento e me levaram para assistir a O Império Contra-ataca na telona. Claro, no dia anterior, minha missão foi encontrar o primeiro filme e assistir sozinha, em casa, para ficar a par da história. O contraste entre as experiências foi inegável. O espaço físico do “cinema” propõe uma vivência completamente diferente àquela de assistir a um filme através da tela de um computador na própria casa, mesmo quando todos os espectadores estão usando máscaras. 

“Eu tô morrendo de inveja. Tu vais assistir a esse filme pela primeira vez aqui”, suspirou, em tom de piada, um dos meus companheiros no dia em questão. Esse comentário, aparentemente inocente, me incitou a revisitar a relação da sétima arte com a pandemia (e, inevitavelmente, com o isolamento social). Após tanto tempo longe das salas de cinema, o streaming conseguiria tomar seu lugar e matar (literalmente) a saudade da grande tela?

A experiência de comunhão coletiva

O prédio rosa-queimado que estampa diversos cartões postais da capital gaúcha é um acalento aos olhos. Localizado ao lado de uma pequena praça que é iluminada às noites por sua presença, o antigo Cine-Theatro Capitólio, construído em 1928, funcionou ininterruptamente até 1994 e faz parte da memória coletiva dos cidadãos mais velhos da cidade. No ano seguinte, foi adquirido pela prefeitura de Porto Alegre durante um período de revitalização da cidade e ampliação da cultura local. O espaço unicamente dedicado ao audiovisual, denominado Cinemateca Capitólio a partir de 2001, é um monumento da arte porto-alegrense e, para o programador da sala, Leonardo Bomfim, ainda há muito o que fazer. 

A Cinemateca não se resume à sala de cinema: há o acervo de filmes focado na produção regional, uma biblioteca à disposição de pesquisadores, uma sala multimídia e um setor educativo. “É um espaço que tem diferentes relações e responsabilidades com o cinema”, comenta Leonardo. De acordo com ele, a preparação para a reabertura foi longa. Em março, havia uma previsão: a ideia inicial era reabrir um ano depois, no exato dia em que fechou, com o mesmo filme. Mas a piora na pandemia adiou os planos. A reabertura finalmente ocorreu em julho, começando com uma sessão por dia. Os protocolos são seguidos rigorosamente, sessões mais extensas e apresentações comentadas ainda não ocorrem.  

“Logo bateu essa saudade da experiência do cinema mesmo, para além do filme”

Leonardo Bomfim

A tão exaltada “experiência do cinema”, para Leonardo, é acima de tudo uma experiência comunitária. O entusiasta diz que, para ele e para o público, o retorno às salas de cinema está sendo como um reencontro com a experiência única ofertada por esses espaços. “Tem, num primeiro momento, uma energia muito forte de reencontro. É muito bonito.” 

Leonardo conta, ainda, que, de forma quase paradoxal, o público mais numeroso e mais ansioso é o de jovens entre 17 e 20 anos. “É uma coisa muito explosiva. Saindo de casa e querendo viver tudo de uma forma mais intensa.” A experiência de ir ao cinema, que engloba o contato com a cidade e com toda a sua movimentação, ainda tem uma “sedução diferente” para o programador. Ele lembra a primeira vez que viu um filme no cinema, o choque da tela grande, do som envolvente, a energia de uma comunhão em grupo. Ele brinca, inclusive, que para ele a pandemia deixou claro que ele não gosta de ver filmes: gosta é de ir ao cinema. 

A pandemia e a adaptação do “cinema”

Antes da pandemia, a Sala Redenção, espaço de cinema localizado no Câmpus Centro da UFRGS, oferecia sessões diárias às 16h e às 19h durante a semana, com entrada gratuita. Desde o início do isolamento social, passou a funcionar remotamente. Vitor Cunha, estudante de Ciências Atuariais e bolsista da sala, diz que a necessidade de inventar soluções neste período foi “divertida”. Durante o primeiro ano, o espaço promovia discussões online com convidados, a partir de mostras disponíveis gratuitamente na internet. Desde este ano, passaram a também transmitir os filmes. O objetivo é “emular a realidade da Sala Redenção dentro do que a gente podia fazer”. Ainda assim, o sentimento quase consensual é de que a experiência, simplesmente, não é a mesma.

“Muitas pessoas perceberam o quanto faz diferença o espaço físico do cinema. Antes da pandemia, a gente não se dava conta do quão potente era o espaço do cinema como um espaço social, mesmo que em silêncio, mas um espaço de convivência e de coexistência”

Vitor Cunha

O estudante ressalta que antes não se dava conta da diferença que faz assistir a um filme em casa, mesmo com outras pessoas. “Eu acho que as pessoas passaram a sentir mais falta e ter a necessidade de ir a um cinema mesmo. Sem precisar se preocupar com nada, só sentar lá e assistir ao filme.”

A Sala Redenção, de qualquer forma, não se limita à exibição cinematográfica. De acordo com Vitor, o espaço mantém um acervo próprio, com documentos e fotos que contam a história do local desde seus primórdios, em 1987.

Preservação da memória

De acordo com Miriam Rossini, professora de Comunicação Audiovisual na UFRGS, descrever o que é cinema é uma tarefa um pouco mais complicada do que parece.

“Cinema é toda uma instituição. Envolve o processo de produzir, distribuir, exibir, ter público, ter pessoas falando a respeito… Cinema é um sistema que por muito tempo esteve ligado à noção das salas de cinema, e hoje está descolado disso. O filme é o que transita em todos esses processos”

Miriam Rossini

O ponto decisivo, para a pesquisadora, é saber qual experiência estética o espectador deseja. Se o único intuito é conhecer a história e envolver-se com a narrativa, qualquer forma de assistir ao conteúdo é válida. Porém, adiciona: “Tem experiências que tu só tens a partir da sala de cinema. Em todos os filmes, tu percebes a narrativa diferentemente em uma tela grande. É uma experiência coletiva”. 

A importância de espaços como salas de cinema e cinematecas vai além do óbvio: têm também seu papel fundamental na preservação da memória cultural local e na promoção de políticas públicas. Miriam ressalta: “No Rio Grande do Sul, a grande questão que se coloca há várias décadas é: ‘Pra onde vão os nossos filmes? Quem cuida dos nossos filmes?’. Muitos vão para a Cinemateca Brasileira, mas nem sempre recebem a atenção que teriam se pudessem ficar aqui”. 

Para ela, as experiências nesses locais são atemporais: proporcionam a chance de “aprender a ver”, qualificar o olhar, e nos incita a sairmos da posição de apenas espectadores. 

As gravações de “Os Fora da Lei” aconteceram em Porto Alegre entre outubro e novembro de 2021. O filme, uma produção da Casa de Cinema, de Porto Alegre e da VIS/ViacomCBS, tem Katiuscia Canoro, Rafael Infante e Cauê Campos (Fotos: Tuane Eggers/ Divulgação ViaComm CBS Brasil, 05 nov. 2021)

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