Publicado originalmente em Brasil de Fato por Leonardo Sakamoto. Para acessar, clique aqui.
Corajoso, o ministro Gonçalves deu às coisas o seu nome; a dúvida agora é se Bolsonaro será condenado por 5 a 2 ou 6 a 1
O ministro Benedito Gonçalves proferiu um voto histórico, na noite desta terça (27), no Tribunal Superior Eleitoral. Não por mostrar quais leis Jair Bolsonaro atropelou ao abusar de poder político na busca pela reeleição, mas por expor de forma detalhada como um presidente pode usar a democracia para atropelar a própria democracia.
O caso em julgamento é o de uma reunião no Palácio do Alvorada, em julho do ano passado, em que Jair bombardeou embaixadores estrangeiros com mentiras sobre o sistema brasileira de votação. Esse ato de campanha foi transmitido por uma emissora estatal de TV, ou seja, usou recursos públicos, fomentando nos bolsonaristas a falsa ideia de que as eleições seriam roubadas com a ajuda do TSE.
Benedito Gonçalves afirmou que a micareta com os embaixadores não pode ser considerada “uma fotografia na parede”, pelo contrário: foi mais “um fato inserido em um contexto”. Ou seja, uma longa linha de ações de Bolsonaro com o mesmo intuito, que veio a desaguar nos atos golpistas de 8 de janeiro. “Não há como dissociar os fatos e o contexto. Toda comunicação destina-se a influenciar ideias e comportamentos”, afirmou o ministro.
Na leitura do resumo do seu voto, que durou três horas, o relator do caso mostrou como as ações de Jair foram conectadas e pensadas para lançar um questionamento ao sistema eleitoral que parecesse crível. E, ao mesmo tempo, se mostrar como o único capaz de evitar algo pior acontecesse. Ou seja, o voto descreveu como Bolsonaro inventou uma fraude no sistema de votação para se vender como o único capaz de salvar a democracia brasileira dessa fraude inexistente.
“Conspiracionismo, vitimização foram fortemente explorados no discurso de 18 do julho de 2022 para incutir a ideia de que eleições de 2022 corriam um grande risco de serem fraudadas e que o então presidente em simbiose com as Forças Armadas estaria levando adiante cruzada em nome da transparência e da democracia”, afirmou o ministro.
A reunião com os embaixadores foi, metonimicamente, uma representação dos últimos anos do governo Bolsonaro, com o presidente buscando se vitimizar frente ao público, mentindo que estava sendo perseguido pelo TSE de forma paranoica e tentando desacreditar o tribunal dentro e fora do país. Para Gonçalves, o então presidente “retomou a epopeia dos ataques ao sistema eletrônico de votação sem provas” com a reunião.
Esse descrédito abriria caminho para ignorar as decisões da corte ou até decretar uma intervenção sobre ela caso o resultado não agradasse Jair.
Para tanto, Benedito Gonçalves citou a minuta de golpe de Estado encontrada pela Polícia Federal na casa do ex-ministro da Justiça e homem forte de Bolsonaro, Anderson Torres. Ela previa que as Forças Armadas pudessem intervir no TSE e melar a eleição. O ministro relator defendeu o uso do documento como prova de como o discurso adotado pelo então presidente leva à banalização de algo grave como a minuta.
A lei permite ao juiz conhecer fatos ocorridos ou revelados depois de a ação ser proposta. O Tribunal Superior Eleitoral havia decidido que não se pode usar essa norma para criar uma ação nova dentro de uma que já existe, mas apenas para trazer fatos relacionados com a “causa de pedir” – o conjunto de fatos expostos na demanda e instrumentalizados na petição inicial.
Gonçalves refutou a comparação da inserção da minuta com o julgamento da chapa Dilma-Temer. Naquele momento, havia uma ação sobre abuso de poder econômico em que se alegou que partidos teriam lavado dinheiro de propina através de doações declaradas em 2012 e 2013. E com base nisso, tentou-se enxertar uma alegação de caixa 2 no julgamento da eleição de ambos em 2014. O que não ocorreu porque os fatos não têm nenhuma relação entre si.
Isso é diferente do que ocorreu em 2022. Na presente ação, a denúncia apresentou que a reunião com embaixadores disseminou desordem informacional sobre as urnas como estratégia para inflamar o eleitorado e incitar descrédito no resultado. Isso teria ocorrido como parte de um plano maior, de caráter golpista, por parte de Bolsonaro. Ou seja, há uma correlação estrita.
De forma corajosa, o ministro Benedito Gonçalves não se furtou de dar às coisas o seu nome, afirmando que Bolsonaro se via como um “militar em exercício à frente das tropas”, enquanto discursava contra as urnas eletrônicas para os embaixadores.
“O discurso em diversos momentos insinua uma perturbadora interpretação das ideias de autoridade suprema do presidente da República, da defesa da pátria, da defesa da lei e da ordem”, afirmou.
Ele conclui com uma leve crítica a uma das expressões mais usadas por Bolsonaro. “Por uma última vez, então, neste voto: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político. Se estas forem as multicitadas ‘quatro linhas da Constituição’, que possamos cultivá-las, com afeto, com responsabilidade e sem medo”, diz.
O relator do caso votou por declarar o ex-presidente inelegível por oito anos. O julgamento foi interrompido e será retomado na quinta. A perspectiva é que Bolsonaro seja condenado, a dúvida é se por 5 votos a 2 ou por 6 votos a 1.