Publicado originalmente em *Desinformante por Rodolfo Viana. Para acessar, clique aqui.
Com o debate sobre a regulação das plataformas ganhando força, voltaram a circular referências ao Marco Civil da Internet. Trazemos aqui as principais informações sobre esta lei e a razão de ela ser tão importante quando se discute o ambiente digital brasileiro.
O que é
Oficialmente denominada Lei n° 12.965, de 23 de abril de 2014, é a norma legal que disciplina o uso da Internet no Brasil por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem faz uso da rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado.
Antes de ser promulgada, não havia nenhuma legislação específica sobre o tema, e questões jurídicas principalmente relacionadas à privacidade eram tratadas à luz do art. 5 da Constituição Federal por analogia. O artigo diz que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
A Constituição, de 1988, não podia prever os problemas oriundos da disseminação da internet na sociedade brasileira. A lei 12.965/2014, tida como referência mundial, tem como pilar a afirmação de direitos humanos no ambiente digital e foi construída em bases principiológicas, para evitar sua caducidade precoce. O Marco Civil da Internet é fundamental à medida que a economia, os serviços públicos e privados, a participação política, o acesso à informação e o direito à liberdade de expressão estão cada vez mais mediados pela Internet.
Quais as principais contribuições da lei?
A lei tem por objetivo a promoção “do direito de acesso à Internet a todos”, conforme o artigo 4°. Em seguida, no capítulo II, artigo 7º, estabelece que o acesso à Internet é “essencial ao exercício da cidadania”. A decisão de transformar o acesso à Internet em direito foi um passo importante na orientação de políticas públicas.
Neutralidade de rede
A “neutralidade de rede” também foi uma conquista expressa no Marco Civil, fruto da demanda de setores da sociedade civil. Segundo a Coalizão Global pela Neutralidade de Rede, que reúne especialistas e ativistas de dezenas de países, é “o princípio segundo o qual o tráfego da internet deve ser tratado igualmente, sem discriminação, restrição ou interferência independentemente do emissor, recipiente, tipo ou conteúdo, de forma que a liberdade dos usuários de internet não seja restringida pelo favorecimento ou desfavorecimento de transmissões do tráfego da internet associado a conteúdos, serviços, aplicações ou dispositivos particulares”.
A neutralidade da rede diz que todos os dados que trafegam na rede devem ser tratados da mesma forma e com a mesma velocidade. Este conceito também é conhecido como não discriminação de pacotes, onde todos os pacotes devem passar pela rede sem sofrer atrasos ou bloqueios seletivos. Na prática, isso significa que os provedores de conexão não podem priorizar o acesso a uma aplicação em detrimento a outra.
Liberdade de expressão
O art. 19 do Marco Civil versa sobre a “liberdade de expressão” nas redes e foi elaborado a partir de intenso debate multissetorial, que contou com espaços de ampla participação da sociedade civil organizada, do governo e do setor privado.
Ele estabelece as circunstâncias em que um provedor de aplicações de internet (como é o caso das plataformas de redes sociais) pode ser responsabilizado civilmente por danos causados por conteúdo publicado por terceiros. De acordo com o dispositivo, os provedores só poderão ser responsabilizados nos casos em que, após ordem judicial específica, não removerem em tempo hábil conteúdo apontado como ilícito.
O art. 19 determinou que a palavra final sobre o que é ou não lícito nas plataformas é sempre do judiciário, pois essas empresas não podem ser responsabilizadas por conteúdo de terceiros se não descumprirem decisão judicial de remoção. Elas são livres para adotarem suas regras e suas operações de moderação de conteúdo, mas não serão obrigadas a indenizar por não atenderem a demanda extrajudicial de um usuário.
Com o avanço do debate sobre regulação das plataformas digitais, as diretrizes contidas no art. 19 do Marco Civil da Internet acabam por ganhar relevo, já que questões como liberdade de expressão nas redes e responsabilização jurídica das plataformas são o foco das preocupações no combate à desinformação e ao discurso de ódio.
Privacidade e proteção de dados
Merece destaque, por fim, a parte que garante a proteção de dados e a privacidade do usuário no meio digital. Enumerados no art. 3, dentre outros, o princípio da proteção da privacidade e dos dados pessoais, asseguram como direitos e garantias dos usuários de internet (no art. 7) a inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações e inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial.
O art. 10, parágrafo 1º, que trata de forma específica da proteção aos registros, dados pessoais e comunicações privadas, é bem claro quanto à possibilidade de fornecimento de dados privados, se forem requisitados por ordem de um juiz, e diz que o responsável pela guarda dos dados será obrigado a disponibilizá-los se houver requisição judicial.
Como ele foi formulado?
O texto da lei nasceu de um processo de consulta inovador e que buscou reconhecer os mais diferentes interesses em jogo na regulação do uso da rede no Brasil, partindo da perspectiva dos direitos civis, em contraposição a projetos apresentados anteriormente na Câmara dos Deputados e que pretendiam regular os usos da rede da perspectiva meramente criminalizante, com foco nos atos ilícitos e infrações, conforme histórico resgatado no documento “Marco Civil da Internet, violações ao direito de acesso universal previsto em lei”, produzido pelo Coletivo Intervozes.
A partir de uma iniciativa do Ministério da Justiça, em 2009, a ideia de um Marco Civil para a Internet no Brasil passou a tomar corpo. Os proponentes, considerando a intensa reação de usuários e usuárias nas redes sociais contra a proposta de lei criminalizante (apelidada de AI-5 digital), entenderam que seria frutífero usar justamente a ferramenta a ser regulada, a Internet, para construção da alternativa.
Em outubro de 2009, foi realizada a primeira consulta pública de elaboração do MCI, a partir da apresentação de um texto contendo princípios gerais para a regulação da rede. Os participantes puderam detalhar esses princípios e propor novos temas a serem abarcados em uma futura legislação.
Durante essa primeira fase de consulta, foram recebidos e sistematizados mais de 800 comentários, que se traduziram num anteprojeto de lei, posto em consulta pública em plataforma online. Na última fase, houve aproximadamente 1.200 comentários ao texto, tanto de indivíduos e organizações da sociedade civil, como também de empresas e associações ligadas à indústria de conteúdo nacional e estrangeiras.
O processo foi encerrado em maio de 2010. A partir de 2011, quando a primeira versão do texto chegou à Câmara dos Deputados, o projeto de lei passou por uma nova rodada de consultas. A proposta do Marco Civil foi debatida em uma série de audiências públicas, que ouviram mais de 60 representantes dos mais diversos setores, em quatro das cinco regiões do país. O texto ainda passou por uma nova consulta online, desta vez na Câmara dos Deputados.
Pela primeira vez na história, um projeto de lei recebeu contribuições pelo Twitter da Casa legislativa. Ou seja, o Marco Civil não inovou apenas na sua temática, mas mostrou novas possibilidades para o processo legislativo brasileiro, garantindo participação ampla e popular, a partir do uso da internet como plataforma de debate.