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Instituto ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária usa dados que não estão na base da Funai para sustentar defesa de PL do marco temporal
No último dia 27/9, senadores da bancada ruralista e simpatizantes repetiram, durante a votação do PL 2.903 (marco temporal), que as novas terras indígenas reivindicadas acabariam com cidades inteiras e prejudicariam a produção agropecuária no país. Uma das origens dessa mentira é um documento do IPA (Instituto Pensar Agropecuária), ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária, que apresenta uma série de extrapolações erradas, correlações espúrias e números falsos sobre terras indígenas.
Produzido pelo Observatório Jurídico do Agro, um braço do IPA, e usado para subsidiar os deputados e senadores da bancada, o documento intitulado “Questão Indígena” chega a correlacionar pobreza de países com percentual de terras indígenas, dando a entender que, quanto menos terras indígenas tem uma nação, mais rica ela é. Esse mesmo argumento já foi esgrimido pelo agrônomo Evaristo de Miranda, “guru” ambiental de Jair Bolsonaro, para afirmar que áreas protegidas impedem o desenvolvimento dos países.
Foi com base nessa análise que o presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão declarou à imprensa recentemente que a rejeição do STF ao marco temporal tiraria “bilhões de dólares da balança comercial brasileira”.
Fakebook.eco destrinchou os slides do IPA e encontrou uma série de atos de contabilidade criativa que prejudicam as conclusões da “análise”. Leia a seguir.
MANIPULAÇÃO –
O slide mostra que há 116 processos de interesse do agronegócio no STF e, destes, a maioria (42) seriam ligados à questão indígena. Há, porém, um truque contábil na divisão que faz o número ser muito maior que os outros: o gráfico separa arbitrariamente os temas “meio ambiente”, “Código Florestal” e “APP”. Só que esta última categoria, as áreas de preservação permanente, são parte do Código Florestal e deveriam ser computadas na mesma barra. Isso elevaria de saída para 37 os processos sobre o código. Como o IPA não esclarece o que entende sobre “meio ambiente”, não é possível saber se desses 23 processos algum está relacionado a desmatamento, regulado pelo Código Florestal – o que poderia elevar ainda mais o número de ações na terceira barra do gráfico.
CORRELAÇÃO ESPÚRIA –
O slide parece sugerir que países mais ricos têm menor proporção de seu território demarcada como terra indígena – portanto, que terras indígenas empobrecem uma nação (supostamente por retirar área da produção agropecuária). Além de francamente racista, a alegação tem um problema fundamental de confundir correlação com causa. Como é possível ver no gráfico abaixo, do site Spurious Correlations (correlações espúrias), o número de mortes por sufocamento nos lençóis nos Estados Unidos tem uma correlação de mais de 90% com o consumo per capita de queijo no país – e nem mesmo o mais empedernido estatístico da bancada ruralista ousaria dizer que um fato causa o outro.
Além disso, o próprio gráfico se desmente: ele traz apenas um exemplo de país com muita participação no PIB global e poucas terras indígenas, os Estados Unidos. Para piorar, o PIB americano tem muito pouco a ver com o agronegócio: apenas 0,7% da riqueza americana vem da agropecuária (contra 7% no Brasil); contando a agroindústria e os impactos indiretos, a cifra sobe para 5,4% (contra 23% no Brasil).
FALSO –
O slide traz uma série de equívocos e distorções que inflam artificialmente a área de terras indígenas no Brasil e faz uma afirmação chutada sobre a área futura. As principais bases de dados sobre terras indígenas do Brasil são a da Funai e a do ISA (Instituto Socioambiental). De acordo com a Funai, o país tem 713 terras indígenas, somando 111 milhões de hectares. O ISA estima que haja 740 terras, somando 118 milhões de hectares. Ambos incluem terras em vários estágios de demarcação, inclusive as já homologadas e as que estão em estudo. A tabela abaixo detalha os dados da Funai:
O slide dos ruralistas parece usar os dados do ISA. Ele é enganoso primeiramente porque retira do cômputo das terras indígenas as 120 que estão em estudo (ligeiramente mais do que a Funai considera), mas mantém na conta sua área total – quando o certo seria abatê-las da contabilidade.
Depois, ele apresenta em azul, à direita, um número mágico de 487 terras indígenas “reivindicadas”. Essa cifra, porém, não consta nem na base de dados da Funai, nem na do ISA. Trata-se de provavelmente reivindicações indígenas de posse, quase todas em áreas urbanas, que não são consideradas pelo órgão indigenista para fins de cumprimento do Artigo 231 da Constituição (ou seja, demarcação de terras). “Se fossem terras para demarcar, a Funai seria obrigada a incluí-las na base de dados”, diz Márcio Santilli, ex-presidente da Funai.
O terceiro, e fatal, erro do slide é assumir que as terras em estudo (que são contabilizadas duas vezes, como vimos) mais as “reivindicadas” ocupariam área equivalente à das já demarcadas – cuja área é inflada por estarem em sua maioria na Amazônia, onde há territórios extensos (só a TI Yanomami ocupa 10% da área total de terras indígenas do Brasil). Por incrível que pareça, o IPA fez uma regra de três e decretou que as terras ainda a demarcar ocuparão extensão equivalente às das já demarcadas.
FALSO –
A partir da conta errada do slide anterior, o IPA assume que as terras indígenas demarcadas e ainda a demarcar ocuparão 27,8% do território nacional, avançando sobre as áreas de agropecuária. Além do número falso, não há base alguma na análise para afirmar que as novas áreas só teriam sobreposição com terras agrícolas privadas – e não com unidades de conservação, terras devolutas, assentamentos ou outras.
FALSO –
O IPA repete aqui o mito ruralista de que “há muita terra pra pouco índio”, quando os números mostram que a estrutura fundiária do Brasil é extremamente concentrada e que, na verdade, há muita terra para poucos latifundiários. Enquanto as terras indígenas ocupam 13,8% do território nacional, as propriedades rurais ocupam 41%. Apenas 1% das propriedades, concentradas nas mãos dos grandes latifundiários, tomam 20% do território do país, mostra o ISA.
Para sustentar esse mito, o cálculo da “área média prevista por família indígena” utiliza, novamente, a extrapolação errada quanto à extensão das terras a serem demarcadas. Além disso, a categoria “família indígena” é estranha às adotadas nas principais bases de dados sobre a população indígena no Brasil, e por isso não é possível sequer verificar a conta feita em relação às terras indígenas já demarcadas.
Segundo os dados do Censo IBGE de 2022, adotados pela Funai, a população indígena no Brasil é de 1.693.535 pessoas. Dessas, 622.066 residem em terras indígenas. O ISA calcula, além disso, que há 266 povos indígenas no país. Nenhuma das bases utiliza a categoria de “família indígena”.
FALSO –
Novamente, o IPA parte do cálculo errado demonstrado anteriormente sobre as terras indígenas a serem demarcadas, partindo de uma premissa falsa. Assumindo equivocadamente que as terras indígenas a demarcar terão a mesma extensão das já demarcadas e que avançarão sobre propriedades privadas de produção agropecuária, extrapola arbitrariamente os dados sobre geração de empregos, produção agrícola e receitas de exportação.
Além disso, não indica as fontes ou base de cálculos utilizadas para estimar essas cifras por área, em hectares. Não há indicação sobre o preço estimado dos produtos no mercado interno e externo, sobre quais produtos “deixariam de ser produzidos” em que áreas específicas a serem demarcadas ou qualquer fonte que permita verificar as informações apresentadas.
Já no caso da afirmação genérica “aumento significativo do preço dos alimentos”, sequer há o esforço de apresentar uma “estimativa”. A ilação baseia-se simplesmente na ideia de que a alegada redução de áreas agricultáveis reduziria a produção de alimentos e, consequentemente, aumentaria seu preço, sem considerar a complexa gama de fatores que determina essa precificação. Entre eles, estão a própria concentração de terras, a produção de commodities para exportação tomando lugar da produção de alimentos e a falta de mecanismos regulatórios, como a redução de estoques de alimentos.
NÃO SE SUSTENTA –
O último slide apresenta uma contabilidade criativa para alegar que cifras que vão de R$ 790 bilhões a R$ 2,43 trilhões em produção seriam perdidas com a demarcação de terras indígenas em estudo e “revindicadas”. Não há referência à área, em hectares, que está se supondo “perder”, ou indicação das fontes utilizadas para o cálculo de quanto se produziria nas áreas demarcadas.
Supondo que o slide esteja considerando o mesmo dado apresentado anteriormente (117,2 milhões de hectares de área prevista com as novas demarcações), incorre-se mais uma vez nas falsas premissas: contabiliza-se as áreas “reivindicadas”, adotando a categoria que não consta nas bases de dados da Funai ou do ISA, e supõe-se que a soma dessas com as áreas em estudo ocupariam a mesma extensão das já demarcadas, extrapolando arbitrariamente o quanto se produziria nessas terras.
Outro lado
A assessoria do Observatório Jurídico do Agro/Instituto Pensar Agro respondeu ao Fakebook.eco comentando os seguintes pontos da checagem:
Processos de interesse do agronegócio no STF e STJ: “A divisão é feita com base nos temas atribuídos aos processos pelo STF e STJ. Ademais, a justificativa para o selo não parece adequada, visto que questão indígena e Código Florestal não estão interligados. Afirmar que a separação de termos ambientais eleva o número de ações indígenas não faz sentido, inclusive pelo documento, pois uma temática não está contida na outra”. Perguntamos, ainda, qual critério foi utilizado para definir o que engloba o tema “meio ambiente” na avaliação dos processos. Não obtivemos resposta.
Percentual de Terras Indígenas por países/PIB: “ A correlação é objetiva. A forma de explorar economicamente uma terra indígena, inclusive considerando a própria recente decisão do STF, é extremamente difícil. Portanto, a correlação se dá com números objetivos”.
Demarcação de novas terras indígenas: “O estudo apresentado é de 2021, de modo que alterações podem ter ocorrido. Contudo, recente reportagem do O Globo fala em 598 terras reivindicadas, conforme levantado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A área a ser ocupada se deu por uma análise de proporcionalidade, com base nos dados disponíveis. Ademais, poderia até mesmo ser considerado conservador, visto que o Min. Dias Toffoli afirmou em seu voto no STF no RE 1017365/SC que 2/3 do território poderiam ser devolvidos aos indígenas para se retomar o direito originário dos índios”.
Demarcação de novas terras indígenas e avanço sobre áreas de produção agropecuária: “Estimativa feita com base nos procedimentos em curso e que são de áreas no Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Áreas no Norte do País, em especial Amazônia, possuem poucos questionamentos judiciais”.
Área média das terras indígenas, por família: “Já respondida no item anterior. Família indígena é uma correlação com família de assentados”.
Impacto econômico da demarcação de novas terras indígenas: “Elaborado com base nas médias de produção agropecuária e de emprego do IBGE, pautando-se na lógica da estimativa de ampliação acima tratada”.
O que se pode produzir: “Parte-se da estimativa feita e das áreas de produção agropecuária hoje existentes nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste”.