Este texto é uma adaptação de anotações para um debate sobre erros no jornalismo durante o 17º Congresso Internacional de Jornalismo da Abraji, em São Paulo, em agosto de 2022.
Paula Cesarino Costa
Jornalista, integra o Conselho Editorial da Agência Pública e foi ombudsman da Folha de S. Paulo entre 2016 e 2019. É a ombudsman convidada pela Agência Lupa para o acompanhamento da cobertura das eleições de 2022.
O erro é da natureza do jornalismo. A rotina da profissão jornalística obriga a uma convivência incômoda com a chance de errar. É uma atividade na qual prazos apertados e grande volume de informação são irmãos siameses.
Não que, por isso, o erro deva ser tolerado, mas ele ocorre com uma frequência muito maior do que os profissionais admitem e gostariam.
A resistência ao reconhecimento do erro está impregnada na cultura do jornalista e das empresas de jornalismo. É algo contra o qual devemos lutar com força equivalente àquela empregada na busca do furo, da informação exclusiva.
Há três aspectos básicos que merecem ser discutidos:
- qual a origem dos erros?
- como evitar o erro?
- como corrigir um erro?
São cada vez mais raros nas redações filtros como revisão e checagens antecipadas, múltiplas leituras com mais de um editor e de um redator cuidando de um mesmo texto e outros controles mais refinados. As avaliações posteriores das edições, em que se apontam erros e imprecisões cometidas, são raridades excêntricas em meio a uma crise de modelo e financiamento das empresas noticiosas.
Entretanto, a correção rápida, justa e adequada dos erros jornalísticos segue como componente fundamental para a manutenção da credibilidade da imprensa em tempos da pandemia de desinformação que grassa mundo afora.
Deve-se corrigir de imediato, com visibilidade e, se necessário, com a explicação do motivo do erro. Transparência é um dos pilares na construção da confiabilidade com a audiência. É um compromisso com a honestidade profissional de cada um e com a boa-fé do consumidor de notícias.
Quanto mais rapidamente o erro é corrigido, quanto mais é possível explicar o que o motivou, melhor para o público e melhor para o veículo de comunicação.
Quando alguém comete um erro e assume que o cometeu, explica que errou, por que errou, aquele erro tem, em tese, menos chance de ser repetido. Torna-se um contraexemplo didático. Como no famoso poema de João Cabral de Melo Neto, a educação pela pedra impinge duras lições.
A seção de correção da Folha – o famoso “Erramos” – foi criada em 1983. Essa transparência, por vezes ridicularizada, tornou-se marca relevante do projeto editorial do jornal. Infelizmente, acabou bem menos disseminada na imprensa brasileira do que outras características do projeto.
Além da óbvia preocupação com a qualidade da informação, do respeito ao leitor e da transparência das práticas jornalísticas, o “erramos” ajudou a diminuir o número de erros da Folha. É educativo para a redação e para os leitores, cada vez mais atentos e exigentes em relação às falhas do jornal e à sua rápida correção.
Muitos dos críticos da imprensa tomam os erros frequentes como exemplos para macular todo o trabalho e o papel que exerce na sociedade. Por isso, é preciso entender de que tipo de erros estamos falando.
Há diferentes tipos de erro:
- erros de informação;
- erros de procedimento;
- erros de edição;
- erros de avaliação.
E a causa de cada um deles também é de origem por demais variada.
Pressa, despreparo e arrogância
O erro mais evidente tem origem na apuração malfeita, apressada, incompleta. Há, no entanto, questões mais profundas. A origem do erro pode estar, por exemplo, na má formação profissional e educacional dos jornalistas. Pode estar na cultura empresarial deformada da empresa, que põe negócios à frente da deontologia. Ou pode estar na interpretação equivocada dos fatos, dos seus personagens e do conhecimento científico, para citar alguns poucos exemplos.
É certo que só em casos muitos restritos o erro pode ser associado diretamente à má-fé de um jornalista. É o que me diz a experiência acumulada em mais de três décadas em redações.
É interessante lembrar que, do mesmo modo que o furo não é apenas a informação exclusiva, mas também pode ser o enfoque original sobre um determinado assunto, o erro, às vezes, está na opção equivocada feita pelo jornalista ou pelo veículo de comunicação. Simples assim. Quis chamar a atenção pelo inusitado e perdeu a mão da importância e da contextualização da notícia. Acontece.
Há casos em que uma cobertura toda pode ter sido equivocada por decisões editoriais e avaliações políticas desfocadas dos interesses dos leitores e da sociedade.
Para dar um exemplo banal. Quando ombudsman, critiquei a cobertura de uma greve geral de trabalhadores feita pela Folha e por vários jornais. Não houve nenhum erro factual, mas um erro de enfoque: a falta de percepção da importância dos acontecimentos, sendo que era algo que não ocorria com relevância havia anos no país. Foi feita a cobertura de praxe, burocrática, preocupada essencialmente com os efeitos da greve no cotidiano das pessoas e destacando em excesso os poucos conflitos ocorridos em algumas manifestações. Não se fez uma investigação sobre as causas da greve, os comportamentos de sindicalistas, das empresas, dos gestores públicos. Tratou-se um caso especial como corriqueiro. Não se investiu numa cobertura além do óbvio. Resultou em leitura dispensável para o leitor.
Algo similar pode ser dito da cobertura da greve dos caminhoneiros em 2018, que escancarou a incapacidade dos jornais de identificar, mensurar e explicar como o país chegou àquela crise.
Voltando à questão da origem dos erros.
A pressa não pode ser desculpa aceitável, mesmo que seja a causa de um erro. E hoje mais do que nunca, a pressa se dá muitas vezes pela obsessão em “publicar antes da concorrência”. Ou, pior, em publicar algo ainda sem a apuração completa porque “todo mundo está dando”.
Será que vale colocar uma notícia no ar imediatamente e mais rápido do que os outros, sem que tenha sido trabalhada com ponderação, reflexão e filtros de qualidade? O que é melhor para o leitor? É ter uma informação mais rápida, mas menos precisa? Ou uma informação de maior qualidade que teve apuração mais completa, mas foi publicada depois?
Gosto de repetir que, em alguns momentos, é preciso ter coragem para publicar. Em outros, a ousadia de não publicar.
Outra causa muito comum que já pregou peça em jornalistas experientes é a “suposição” de que eles acham que sabem sobre determinada coisa e acabam deixando de checar. Ou, a dedução de algo que parece óbvio, mas não necessariamente é correto ou preciso.
O padrinho dos erros é um bufão. Pode apostar.
Um aspecto relevante a abordar é o correto entendimento do que significa a linha editorial de um órgão de imprensa. Nos tempos em que vivemos, de polarização e de publicização de toda e qualquer opinião, há um aspecto que muitos acabam considerando erro, mas que na minha visão deve ser tratado de outra forma.
A discordância da posição editorial de um órgão de comunicação não pode levar à acusação de erro. Os jornais têm opinião. Elas são manifestadas a partir dos desejos, posições e análises dos donos, da direção editorial, dos seus acionistas e proprietários. Vale tanto para jornais brasileiros quanto para estrangeiros.
A seção de opinião no New York Times, por exemplo, é uma instituição nos Estados Unidos. Na tradição americana, os jornais declaram apoio a candidatos e políticas públicas em editoriais. O NYT se alinha constantemente aos democratas, mas, por vezes, já apoiou candidatos e políticas dos republicanos.
Os jornais brasileiros não têm o costume de assumir apoios em editoriais. O Estadão tem exemplos de apoios expressos, mas Folha e O Globo, para citar os maiores, não. Essa discussão de ser melhor ou pior, ser certo ou errado, um jornal expressar apoio a candidatos depende do que o jornal entende ser seu papel. É uma outra discussão, que não vem ao caso aqui.
O que interessa é deixar claro – e trabalhar para isso – que uma coisa é a opinião nos editoriais, outra a cobertura noticiosa. Nesta, o bom jornalismo deve, por meio de técnicas de apuração, de redação e de edição, buscar a isenção, a imparcialidade e a objetividade possíveis.
Abrir-se ao contraditório e, principalmente, a correntes que divergem de si e do senso comum. Isso significa tratar o negacionismo da ciência ou da crise climática como apenas um lado? Não. Fatos são fatos. Dá para negar o holocausto? Não. Que a terra é redonda? Não. Que vacina evita a pandemia? Não. O jornal não pode desinformar em nome da pluralidade.
Ninguém é ingênuo em acreditar que existe a isenção absoluta, a neutralidade sagrada.
Está na natureza do trabalho jornalístico fazer escolhas. Ao editar, ao colocar no alto de uma página um determinado assunto e outro embaixo, eu estou tomando uma posição. Você é neutro ou tem um viés político? Você está defendendo uma posição política, ideológica, econômica? Não necessariamente. Pode estar empenhando em fazer valer tecnicamente o projeto editorial que estabelece em parceria com a própria audiência.
Acredito que muitos órgãos de imprensa busquem, de fato, o maior equilíbrio possível. Nessa busca, a questão da pluralidade, do exercício real de ir atrás de múltiplos enfoques e opiniões, é essencial.
Mas há momentos evidentes em que a imprensa ou um órgão de notícias perde o equilíbrio. Repetem-se casos em que a cobertura pesou mais para um lado do que para outro. Por uma questão intencional ou por incompetência técnica? Às vezes por uma coisa, às vezes por outra.
Existem filtros técnicos editoriais objetivos que ajudam os jornalistas e os jornais a estabelecerem o padrão de cobertura diverso, equilibrado. O sucesso no seu uso está vinculado ao esforço direto de jornais e jornalistas. Talvez o caso recente mais gritante que merece ser citado aqui envolve a Operação Lava Jato.
A Lava-Jato
Não há dúvida que houve erros na cobertura da Lava-Jato, o que ficou mais evidente com a revelação das conversas entre procuradores e o juiz Moro, por meio de um hacker.
A imprensa errou em se tornar dependente e em muitos casos associada ao Ministério Público e ao juiz Sérgio Moro no projeto político-jurídico que capitaneavam. Como se viu depois, o uso político da imprensa fazia parte da estratégia de Moro e dos procuradores de Curitiba, do Rio de Janeiro e de Brasília. Eles manipularam a imprensa. Alguns jornalistas e veículos de imprensa foram inocentes úteis, outros estavam associados ao projeto político-jurídico deles.
A falta de linha própria de investigação foi uma das principais falhas. A imprensa ignorou, em geral, as ferramentas próprias de investigação. Renunciou ao contraditório; deixou-se levar pela narrativa construída, principalmente por Curitiba, como se ali estivesse o núcleo do bem.
Na delação do ex-ministro do governo Lula Antonio Palocci, que Moro tornou pública na véspera da eleição de 2018 para influenciar o resultado do pleito, a imprensa foi usada pelo então juiz. Não era difícil perceber. A delação era frágil já naquele momento. Tinha de ter sido desconstruída, e o papel do Moro ser criticado e questionado.
Muitas vezes, a impressão que dá é que os jornalistas esquecem que o Ministério Público é parte. É um lado da história. Existe a parte que acusa e a parte que defende. Os jornais ficam nas mãos do MP. Para piorar, muitas das informações não são dadas oficialmente, são passadas em “off the record” – aquela informação de origem não identificada pela imprensa. A informação em “off” é o adubo transgênico da manipulação jornalística. Acredita-se demais, sem questionar o MP, na qualidade de suas informações, ignorado suas contradições, fragilidades e erros. Ninguém é infalível.
Em 2016, a apresentação da força-tarefa da Operação Lava-Jato para divulgar a formalização da denúncia do Ministério Público contra o ex-presidente Lula, a mulher Marisa e mais cinco integrantes da empreiteira OAS evidenciou a licenciosidade da imprensa.
Vale lembrar o que escrevi em uma coluna publicada em 18 de setembro na Folha.
Há um embate discursivo, no qual os procuradores carregam nas tintas declaratórias, indo muito além do que permite a investigação que comandam. Se dizem que Lula é o chefe da organização criminosa, mas não o denunciam como tal, os procuradores parecem estar jogando para a plateia.
A ação de ribalta dos procuradores, à qual Lula respondeu em tom também emocional e teatral, reforçou a sensação de que o marketing está vencendo o jornalismo na cobertura da Lava Jato.
As reportagens da Folha que relataram um e outro lado nesta semana pecaram pela simples reprodução do que os procuradores e o ex-presidente disseram. Não houve análise crítica da denúncia do Ministério Público nem dos contra-argumentos do ex-presidente.
O erro jornalístico claro estava na manchete da página A4 da edição de quinta-feira: “Lava Jato denuncia Lula sob acusação de chefiar petrolão”. É incorreto. O petista foi denunciado sob acusação de corrupção ativa e passiva e de lavagem de dinheiro. A Folha aceitou passivamente o discurso dos procuradores.
Em especial nesta época de disputa de tempo e espaço, o texto noticioso precisa cada vez mais ser também analítico e crítico para não cair na inocência jornalística.
Claro que não foi um período fácil. Eram toneladas de informações, que traziam à tona um comportamento conhecido havia décadas, mas jamais divulgado ou comprovado. Havia uma sede de desvendar os esquemas de corrupção de tanto apelo ao leitorado. E um medo empresarial de tomar furos e perder a preferência da audiência.
Em época de redações enxutas, a imprensa se acomodou com narrativas prontas que lhe eram oferecidas e, como disse, abdicou de uma política editorial que priorizasse a investigação própria. Estou generalizando, claro. Houve tentativas pontuais de investigação independente, mas que não podem ser comparadas às toneladas de versões despejadas por juízes e procuradores de Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro, no colo dos repórteres.
Gosto de citar sempre uma frase da ativista, poeta e educadora afro-americana Nikki Giovanni. “O erro faz parte da vida. Mas o que conta de verdade é a resposta que damos a ele”. Este é mote que sugiro. Errar todo mundo erra. Devemos todos trabalhar duro e honestamente na resposta que damos a eles.