Relatório Reuters reitera crise de confiança. Além de bom jornalismo, é preciso educação midiática

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Marco Britto
Mestrando no PPGJor/UFSC e pesquisador do objETHOS

A publicação do Digital News Report 2024, maior compilação de dados de consumo de notícias do mundo, organizada pelo Instituto Reuters, mostra mais uma vez o terreno acidentado pelo qual caminha o jornalismo neste primeiro quarto do século 21. Além de uma crise de confiança, os dados revelam também uma realidade de crise informacional que extrapola o alcance da imprensa e compõem o cenário de “transtorno de informação”, o que pede soluções mais amplas do que apenas uma mudança de formato nas notícias. Entre elas, a educação midiática.

No Brasil, entre as tendências destacadas pelos pesquisadores do instituto, vê-se o aumento de leitores que evitam notícias, com um salto de 41% no ano passado para 47% da população leitora em 2024, praticamente metade dos entrevistados. O número junta os que evitam notícias “às vezes” e “frequentemente”.

Um componente importante dessa desconexão dos leitores com o jornalismo brasileiro é o nível de confiança. Apesar de manter o índice mais alto entre seis países pesquisados na América Latina, os 43% que afirmam confiar na imprensa deixam um enorme contingente de quase 60% de cidadãos desconfiados com o que publicam hoje portais, jornais e noticiários televisivos no país. Grupo Globo, Folha de S.Paulo e Veja são os mais rejeitados, ainda que mantenham ao mesmo tempo índices altos de apreciação.

paisagem é similar em escala mundial. Examinando dados globais sobre confiança, o relatório esmiúça o perfil dos leitores, em busca de explicações para a falta de prestígio que acomete o setor. No mundo, 40% dos entrevistados nos 47 mercados sondados pelo Instituto Reuters afirmam confiar na maioria das notícias.

Não importa se o leitor é de esquerda ou direita

“Quando a confiança nas notícias é baixa, o problema geralmente não é que as pessoas não saibam o que procurar. É que muitos não sentem que estão encontrando. Se estiverem certos, a imprensa tem um problema de produto. Se estiverem errados, a imprensa tem um problema de comunicação”, destaca a análise do relatório, assinada pelo professor Rasmus Kleis Nielsen e Richard Fletcher, respectivamente diretor geral e diretor de pesquisa do instituto.

Em linhas gerais, leitores e leitoras acima de 35 anos, com maiores poder aquisitivo e nível de educação confiam mais na imprensa. Ainda assim, em nenhum dos três casos o índice ultrapassa 50%.

Uma novidade no relatório, os fatores considerados decisivos para a formação de confiança foram enumerados pelos entrevistados, sendo eles, do mais popular para o menor popular: transparência (72%), alto padrão jornalístico (69%), “representa pessoas como eu de maneira justa” (65%), viés (61%), “valores como os meus” (56%), sensacionalismo (55%), publicação com tradição/marca (52%), visão excessivamente negativa (46%).

Ainda dentro dos novos dados deste ano, uma leitura chama a atenção. A de que, em ambos os lados do espectro político, as impressões sobre a imprensa são parecidas, o que fortalece a ideia de “câmara de eco”, onde leitores consomem apenas informação de acordo com sua preferência, o que tende a enfraquecer a visão crítica sobre os acontecimentos. Os índices de confiança na mídia não variam entre eleitores de direita (45%), centro (42%) e esquerda (42%). A margem de erro da pesquisa é de 2 pontos percentuais.

Onde a imprensa é vilã, a desinformação prospera

É pouquíssima a diferença na opinião de direitistas e esquerdistas em relação à importância dos fatores relacionados à construção de confiança. A análise aprofundada do relatório revela, portanto, que independentemente da orientação política, o leitor não parece estar feliz com o que encontra (quando procura), deixando o terreno fértil para teorias da conspiração e reclamações de perseguição da mídia. 

Um quadro assim pode gerar câmaras de eco em que o eleitor da esquerda tem certeza de que vive em um mundo manipulado por uma imprensa de direita, enquanto o leitor conservador vê claramente uma “ditadura” da esquerda na mídia. E ainda, as publicações em questão são as mesmas (!), seja a Folha de S.Paulo ou a TV Globo, dado os números parecidos de confiança e desconfiança nestas marcas revelados pelo Instituto Reuters. Este estado de alarme fabrica cidadãos mais propensos a consumir e disseminar desinformação.

Levando em conta o raciocínio dos diretores do instituto (problema de produto x problema de comunicação), diria que ambos os problemas coexistem, e nem tudo é culpa da imprensa. Há certamente questões de produto, em que o jornalismo pode e deve sempre se adaptar. Porém, a realidade do consumo de informação passa por uma transformação que extrapola os “poderes” do jornalista em consertar.

O absoluto controle sobre o fluxo de conteúdo hoje exercido por plataformas como Facebook, Instagram e YouTube remodelou a maneira como as pessoas consomem notícias e toda a informação restante que passa pelos feeds da internet diariamente. O empoderamento prometido pela rede tem diversos casos de sucesso, mas uma grande massa de leitores está habituada a ver apenas o que quer, o que gosta, do jeito que gosta, “mimada” por algoritmos especialistas nisso. Afinal, as big techs nunca tiveram obrigações com isenção. Mudanças na distribuição de notícias na internet estão no horizonte com a ascensão da inteligência artificial, e a previsão é de um “banho de sangue”.

Educação midiática não faz mágica, mas educa

Enquanto o jornalismo estuda sua sobrevivência, a conservação da democracia precisa de reforços. O amadurecimento da educação midiática nas últimas décadas mostra que o uso deste mundo digital de consumo de informação precisa ser ensinado. Não bastam tablets para os alunos sem providenciar um conhecimento aprofundado sobre tudo discutido neste artigo: o papel das big techs, a polarização em relação à mídia, a diferença editorial entre publicações e o papel do cidadão digital. Como comentou outro dia a pesquisadora Mariana Ochs em oficina do Educamídia, é como dar a chave do carro e esperar que a pessoa aprenda enquanto dirige.

Se os jovens estão preferindo ver memes em vez de notícias, é possível pensar em atividades na aula de história que usam memes e notícias do Brasil Império. Se as redes sociais fabricam consumidores viciados, é possível usar o Instagram para discutir influência política na aula de sociologia. A “camada de educação midiática” se insere e abre as portas para velhos (e importantes) conceitos entrarem na vida digital do cidadão, que percebe que há vida além do algoritmo. Temas como empatia, visão crítica e práticas que espantam a preguiça de pesquisar um pouco antes de sucumbir ao impulso de sair compartilhando.

Não se trata de bala de prata, mas uma educação desejável, assim como a educação ambiental, a financeira, a alimentar. A escola pode e deve dar ferramentas que fortaleçam o cidadão ante o automatismo que coordena a sociedade em modelo industrial.

Um leitor melhor educado para as mídias do século 21 estará menos suscetível a paixões, entendendo que a imprensa não é perfeita e tem seus interesses econômicos, mas também um compromisso com seu negócio. Jornal não é Bíblia, não exige fé, apenas discernimento. A educação midiática, quando presente na formação dos cidadãos, permite perceber essas realidades e acalmar ânimos, desenvolver o “ceticismo saudável” e conviver com o mar de informação e desinformação com mais sabedoria. Quem sabe assim, com menos medo e mais consciência, o jornalismo volte a ter mais leitores.

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