Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Aragon Dasso Jr, Diogo Demarco e Pedro Costa, da Administração Pública e Social, apontam a relação entre a transferência da gestão dos serviços públicos para entes privados e as falhas de prevenção e resposta à catástrofe
*Foto: Flávio Dutra/JU
A tragédia climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul nos meses de abril e maio de 2024, por sua amplitude e profundidade em termos das crises humanitária, social, econômica e ambiental, suscita muitas discussões acerca das suas causas, dos seus responsáveis e, principalmente, de como poderão ser enfrentadas no futuro.
Dentre as questões que permeiam o debate está o papel do Estado e a participação da sociedade civil no enfrentamento emergencial da tragédia. E aqui se percebe um misto de oportunismo político e falta de compromisso com a verdade e a ciência de setores, sobretudo da extrema direita, que procuram utilizar a situação para legitimar suas crenças e posições de que o Estado e a Administração Pública só atrapalham, que impedem a sociedade e os voluntários de atuarem em prol dos atingidos.
Este artigo defende o contrário ao destacar e afirmar o papel central do Estado nas ações de socorro e reconstrução. É inegável que o sucateamento de décadas de hegemonia do pensamento neoliberal fragiliza as condições de enfrentamento da crise, e essa estrutura precisa ser recomposta e qualificada não só para o apoio imediato mas, sobretudo, para o processo de reconstrução.
A falta de capacidade e preparação do Estado, manifestado nas ações (ou falta delas) de governos em todas esferas federativas, está diretamente ligada ao desmonte generalizado das estruturas e funções estatais, perpetrado a partir das propostas neoliberais que emergiram no Brasil a partir do final do século XX.
Do ponto de vista da Administração Pública e dos interesses da sociedade civil, esse conjunto de ações do que se pode chamar de desmonte do Estado impacta duplamente no tipo de tragédia climática e de eventos extremos que passaram a ser frequentes e cada vez mais catastróficos. O predomínio desse ideário de Estado mínimo traz consequências na capacidade de ação do setor público – seja de legislar, tributar, regular ou de agir diretamente com políticas públicas – em situações críticas.
A ideia de Estado mínimo está associada às causas de mudanças climáticas, em vez de procurar enfrentá-las e revertê-las. Assim, os esforços de muitos agentes públicos de socorro e ação de emergência a partir dos eventos mostram-se limitados, dado o sucateamento do ponto de vista material e humano da Administração Pública, revelando outras camadas já conhecidas de falta de planejamento e de investimento público.
O rumo de ações privatistas precisa ser interrompido urgentemente para viabilizar a ação do Estado. O enfrentamento da tragédia precisa partir da capacidade de ação do Estado e do Fundo Público por ele administrado. Administradores públicos precisam estar à altura desse desafio, particularmente aqueles que precisam sair da condição confortável de demonizadores do próprio Estado e de vendedores de patrimônio público para cumprirem a função republicana para que foram eleitos.
O Estado não pode e não deve perder sua capacidade de implementar diretamente políticas públicas. Não basta formulá-las e repassá-las para a execução do setor privado, sob o argumento de que fará o papel de regulador. A transferência da gestão dos serviços públicos para empresas privadas (privatizações, concessões, terceirizações, etc.) faz com que o mercado passe a ser o dono da agenda pública.
Esse fato pode gerar um grave problema: a captura do regulador (ente regulador de um determinado serviço público) pelo regulado (empresa privada responsável pela prestação de um determinado serviço público). O ente regulador é capturado quando passa a confundir o interesse público com os interesses do ente privado que é por ele regulado.
Nos últimos dias, ex-diretores do extinto Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) de Porto Alegre; do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), também de Porto Alegre; e da recém privatizada CORSAN, do estado do Rio Grande do Sul, firmaram um Manifesto, conjuntamente com outros especialistas na área, sugerindo uma série de medidas a serem adotadas para reforçar o Sistema de Proteção Contra Inundações de Porto Alegre e facilitar o processo de vazão da atual inundação que atinge a cidade. O mais estarrecedor no Manifesto é que os signatários afirmam que o atual sistema é “robusto, eficiente e fácil de manter”, mas que não está operando por falta de manutenção.
A recuperação e o fortalecimento da atuação do Estado como executor de políticas públicas não significa, contudo, que se desvalorize a participação e o controle social que pode e deve exercer a sociedade civil. A diversidade de vozes, propostas e leituras sobre as mudanças climáticas, suas causas, impactos e formas de enfrentamento precisa pautar as decisões e ações do Estado para dar conta de uma questão tão interdisciplinar quanto o enfrentamento da crise.
Por fim, é importante sublinhar a necessidade de valorização e reconhecimento da ciência como vetor central que deve orientar a ação pública, tanto para prevenção e socorro quanto para planejamento futuro de uma vida sustentável, em todas suas dimensões. O conhecimento científico brasileiro, produzido majoritariamente nas universidades, e particularmente nas públicas, já deu provas, durante a pandemia, de que é valioso e decisivo para lidar com grandes crises e contribuir no combate às questões de escala macro, em estreita colaboração com o Estado.
Ainda que as universidades públicas convivam com ataques permanentes a sua autonomia, é essa sua condição que pode garantir uma pauta de pesquisa orientada pelas grandes questões do nosso tempo, sem subordinação a interesses privados. E nós estamos de prontidão e trabalhando para cumprir essa missão de colaborar na restauração das condições de vida justas e sustentáveis no Planeta.
Aragon Érico Dasso Jr. é docente no curso de Administração Pública e Social, Departamento de Ciências Administrativas da Escola de Administração da UFRGS.
Diogo Joel Demarco é docente no curso de Administração Pública e Social, Departamento de Ciências Administrativas da Escola de Administração da UFRGS.
Pedro de Almeida Costa é docente no curso de Administração Pública e Social, Departamento de Ciências Administrativas da Escola de Administração da UFRGS.
“As manifestações expressas neste veículo não representam obrigatoriamente o posicionamento da UFRGS como um todo.”