Rap, rodos e risos: a comunidade afetiva da EPA no enfrentamento à crise

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Docente da Faculdade de Educação, Taís Ferreira relata o processo de retomada da Escola Porto Alegre, espaço que atende jovens, adultos e idosos em extrema vulnerabilidade

*Por Taís Ferreira
*Ilustração: Lilian Maus
/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Quarta-feira, 22 de maio de 2024. Manhã fria, sol pálido entre nuvens. No pátio da escola uma grande caixa de som tocava um rap nacional. Em cada canto do pátio, da quadra, das salas de aula, havia lodo, lama, sujeira, umidade e pessoas. Pessoas absortas em suas ações ou entre conversações que pareciam quase banais, não fosse o olhar de espanto que volta e meia atravessava um turno de fala. Lavavam, limpavam, esfregavam, empurravam lama, recolhiam dejetos, manuseavam instrumentos como lava-jatos, rodos, vassouras, mangueiras e esponjas.

Além de eu mesma, entre essas pessoas eu reconheci estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA), professoras e servidores da escola, a equipe diretiva reunida em meio à área coberta tomando decisões, meus estudantes da UFRGS limpando minuciosamente cadeiras, uma a uma, cobertas pela lama. Os poucos servidores da Cootravipa designados pela prefeitura lavavam as salas de aula e o que restou dentro delas após mais de duas semanas submersas no caldo fétido e barrento que tomou de assalto as ruas, edifícios e a vida da cidade que outrora conhecemos, nos deixando outra cidade a reconstruir. 

Há pilhas de móveis descartados na rua. Há restos orgânicos e inorgânicos carregados pelas águas, há animais mortos espalhados pela quadra de esportes, há um outro lugar sendo reconstruído pelas muitas mãos de pessoas que têm alguma ligação afetiva ou laboral com a escola, a qual atende de modo amplo pessoas em situação de rua e em extrema vulnerabilidade social, sendo, na maioria dos casos, um dos únicos espaços de institucionalização desses sujeitos. Existe uma sensação de pertencimento tácito e de necessidade que coloca todos que ali estão em um quase frenesi ativo de trabalho coletivo. 

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A escrita deste parágrafo é interrompida por uma rápida troca de mensagens em que nos organizamos para a retomada da limpeza, que havia parado por conta do retorno das águas, com nova subida do nível do Guaíba. Escrevo na terça-feira dia 28 de maio de 2024, na quarta-feira a limpeza será reiniciada. A escola fica praticamente em frente ao rio, na região mais central de Porto Alegre, próxima ao Gasômetro.

Na semana anterior, conseguimos uma quantidade considerável de material de limpeza e voluntários, sujeitos e ONGs atenderam prontamente ao nosso chamado e a Faculdade de Arquitetura nos cedeu rodos. A prefeitura e a SMED não forneceram subsídios nem próximos o suficiente para que se pudesse efetuar a limpeza e a retomada do espaço da escola, possibilitando recomeçar o atendimento à população de rua da região central, já tão castigada. Não esqueçamos do fatídico incêndio da Pousada Garoa e de suas 11 vítimas fatais.

Estes são os nossos estudantes da EPA: jovens, adultos e idosos em extrema vulnerabilidade. Hoje articulo com entidades roupas e calçados masculinos de frio: 85% dos estudantes são homens, entre os 18 e 80 anos, que continuaram nas ruas do Centro, migrando para as partes altas, durante toda a enchente decorrente do desastre climático e do processo necropolítico.

Chove e faz frio ininterruptamente. É inverno em Porto Alegre e há centenas de pessoas dormindo nas ruas, além das milhares desalojadas em abrigos e em casas de conhecidos, em situação igualmente precária, incerta, inumana.

Rapidamente consigo com dois pontos de coleta uma quantidade considerável de roupas e calçados. Um dos contatos vem de uma estudante da Pedagogia, outro deles é um grupo de teatro com um intenso trabalho de cunho social, com 30 anos de história, liderado pela brava egressa do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, Raquel Grabauska. Em seguida, uma colega docente do IFRS de Bento Gonçalves articula de imediato o envio de suprimentos através de um caminhão de ajuda humanitária que virá a Porto Alegre nos próximos dias. Nossa instituição federal irmã, o IFRS, tem sido articulador de diversas ações de resposta à crise no último mês, atendendo à Serra Gaúcha, ao Vale do Taquari e à Grande Porto Alegre, regiões mais atingidas do estado. Assim, em uma tarde, organizamos a coleta de roupas e calçados que poderão mitigar o sofrimento dos estudantes da EPA. 

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Contudo, voltemos à EPA na manhã do dia 22 de maio: o movimento coletivo que eu assistia era imbuído de um senso de coletividade afetiva (e efetiva!) que reflete a vocação de uma escola de portas abertas. O acolhimento aos estudantes é feito de forma global e inclui, além dos processos educacionais em si e da escolarização básica, a saúde, a manutenção de direitos, a higiene pessoal, de roupas e a alimentação. A EPA é tradicionalmente um campo de estágios de docência das licenciaturas na Educação de Jovens e Adultos (EJA), espaço de pesquisa e de extensão da UFRGS, particularmente ligada à Faculdade de Educação. 

A professora. Cristiane Werlang, do Instituto de Artes, e eu coordenamos há três anos as Oficinas de Teatro na EPA, projeto de extensão e de pesquisa, que em todas as manhãs de sexta-feira abre um espaço de construção de afetividades coletivas, risos e possibilidades de criação de narrativas de si, transformando a nós, aos nossos competentes e amorosos bolsistas de extensão e de pesquisa e ensejando, de algum modo, novos futuros possíveis.

Sabemos que às pessoas em situação de rua é negada a possibilidade do riso, da brincadeira, do lúdico e temos construído esse pequeno espaço de subversão afetiva desses discursos ao possibilitar que, juntos, através de jogos teatrais e dramáticos, retomemos as memórias que constituem as identidades desses sujeitos e reconstruamos outras tantas histórias (im)possíveis. Sempre possíveis no espaço-tempo do teatro.

E nesta manhã foi esse senso de pertencimento, de apropriação e de reconstrução desejada que estava ali entre rap, rodos, risos e espanto, quando professores, estudantes, servidores e voluntários, juntos, fazíamos aquilo com o qual o poder público (municipal e estadual) deveria ter se ocupado e responsabilizado: garantir a retomada das ações de cada escola atingida pelas enchentes de maio de 2024 no estado do RS. A escola é lugar de pertencimento, de criação de sentidos, de comunidade, de ressignificação e de afetos. E isso não pode ser negado a nenhum estudante gaúcho em um momento como o que estamos vivendo.


Taís Ferreira é docente do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS.

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