Publicado originalmente por Jornal da UFRGS por Rafaela Bobsin. Para acessar, clique aqui.
Sono | Dormir bem é fundamental para que o corpo funcione de maneira adequada, mas diversos distúrbios e fatores podem dificultar um descanso adequado
*Foto: Marcelo Pires/JU
Aos 20 anos, Ivan Guevara Júnior trabalhava durante o dia e fazia faculdade à noite. Foi quando começou a ter problemas para dormir. Após ir em alguns médicos e fazer pesquisas, sem obter uma resposta conclusiva, Ivan consultou com um neurologista especialista em sono. O médico solicitou uma polissonografia, exame em que são colocados diversos sensores alocados desde a cabeça até as pernas do paciente enquanto ele dorme.
O resultado mostrou que Ivan sofre de síndrome das pernas inquietas: elas se mexem de forma involuntária quando ele está sonolento ou prestes a dormir, impedindo um repouso adequado. “Eram noites terríveis, quando eu tentava dormir meu próprio corpo me acordava”, relata Ivan.
A síndrome das pernas inquietas é um dos distúrbios que podem afetar o sono, explica o coordenador do Laboratório do Sono do Hospital Santa Casa, Leandro Stelzer. A Classificação Internacional de Distúrbios do Sono lista mais de 80 condições, como insônia, problemas respiratórios (como apneia obstrutiva do sono), parassonias (sonambulismo, por exemplo), transtornos de movimento (como a síndrome das pernas inquietas) e transtornos de ritmo circadiano.
Nem todos os distúrbios irão trazer algum prejuízo ao sono ou saúde da pessoa, como é o caso de quem fala dormindo, porém sempre que há sintomas que afetem a qualidade de vida é necessário buscar diagnóstico e tratamento.
Hoje com 40 anos, Ivan já tentou diferentes medicações para reduzir os sintomas da síndrome, que não tem cura. Há três anos faz acompanhamento com Leandro, que tem incentivado Ivan a entender o que desencadeia os sintomas, além de recomendar exercícios aeróbicos à noite – Ivan utiliza um pedal ergométrico para se exercitar. “Eu tenho conseguido dormir muito melhor depois que eu fiz essa adequação do medicamento numa dosagem bem baixa, mais a atividade aeróbica antes de dormir”.
“Antes eu me sentia muito mais como uma vítima daquilo ali”
Ivan Guevara Júnior
Mais de 70% da população brasileira sofre com algum problema na hora de dormir. O mais comum é a insônia, que é caracterizada pela dificuldade de pegar no sono, pelo sono fragmentado ou pelo acordar antes do desejado ao menos três noites na semana por pelo menos três meses.
É importante analisar se há condições para um repouso adequado. Leandro relata que muitos pacientes chegam para fazer a polissonografia afirmando que não conseguem dormir cedo – entretanto, ao estarem em um local calmo e escuro, adormecem com rapidez.
A coordenadora do Laboratório de Cronobiologia e Sono do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professora da UFRGS Maria Paz Hidalgo afirma que “a gente desvaloriza muito o sono” e esclarece que há alguns mitos relacionados ao tema. Um deles é afirmar que, ao dormir menos, a pessoa irá produzir mais. A verdade é que a produtividade diminui, já que o corpo não está descansado o suficiente.
Também há quem diga que ao consumir bebidas alcoólicas consegue “apagar”, entretanto isso não significa um sono adequado. Maria explica que, enquanto dormimos, o cérebro continua em atividade para que determinadas funções do corpo sigam em funcionamento. Com o consumo de álcool, ocorre uma espécie de sedação, diminuindo a atividade cerebral e prejudicando os diferentes estágios do sono.
Outro ponto é que as pessoas têm necessidades diferentes: há pessoas matutinas, que dormem e acordam cedo, e pessoas vespertinas, que só conseguem dormir mais tarde e precisam acordar mais tarde. Ela reforça que cada pessoa precisa conhecer as características do seu sono para ter um descanso adequado. Além disso, em diferentes fases da vida a necessidade de tempo de sono modifica.
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Se uma série de fatores pode influenciar na qualidade do sono, a higiene do sono é uma das alternativas para ajudar a promover um descanso adequado. Maria destaca que são recomendações e não verdades absolutas. Entre as medidas que podem ser tomadas estão:
- Evitar consumir bebidas alcóolicas e com cafeína antes de dormir;
- Ir para a cama apenas quando estiver com sono;
- Ter horários fixos para dormir e acordar;
- Diminuir luzes e estímulos de tela;
- Dormir no escuro.
A higiene do sono é parte da pesquisa de pós-doutorado em Epidemiologia na UFRGS desenvolvida por Fabiana Carvalho. No estudo, Fabiana elaborou materiais de divulgação sobre o tema, com medidas que podem ajudar a dormir melhor.
A noite, o escuro e a melatonina
Em outubro de 2021, a Anvisa autorizou o uso de melatonina como suplemento alimentar com dose diária máxima de 0,21mg. A melatonina é um hormônio produzido naturalmente em diferentes partes do corpo, e o suplemento ficou popular como uma forma de ajudar a dormir, sendo visto como algo “natural” e que “não vicia”.
A pesquisadora da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) Fernanda Amaral estuda melatonina e glândula pineal desde a sua graduação. Ela explica que diversos órgãos produzem o hormônio para uso próprio com função de antioxidante (neutralizador de radicais livres). É o caso da pele, que precisa neutralizar os radicais que são produzidos devido à exposição ao sol.
A principal fonte de melatonina do corpo é a glândula pineal, com a função de marcar para todo o organismo o dia e a noite. Quando escurece, a glândula pineal produz melatonina, que é levada através da corrente sanguínea para o corpo e para parte do cérebro, indicando que o horário de repouso está chegando e que os órgãos podem diminuir suas funções. Ou seja, a melatonina indica ao corpo que ele deve se preparar para dormir.
O hormônio só é produzido na glândula pineal quando está escuro. Conforme a noite chega, a quantidade de melatonina no organismo aumenta; quando o dia chega, ela reduz. Por isso, luzes artificiais como as de lâmpadas e aparelhos eletrônicos atrasam o início dessa produção e impactam na qualidade do sono.
Com a falta de repouso adequado, o organismo começa a ficar desgastado. A longo prazo, aumentam as chances de problemas de saúde, tais como incidência de tumores, distúrbios psiquiátricos e do metabolismo energético (acidentes vasculares cardíacos e cerebrais).
Fernanda salienta que a solução não é suplementar melatonina, pois a quantidade e o horário inadequados desregulam o organismo. “A melhor fonte que você tem de melatonina é a sua glândula”, ressalta. Para estimular a produção do hormônio, a recomendação é reduzir as luzes conforme a noite chega, utilizar luzes amarelas em ambientes de repouso e ativar filtros de luz azul em aparelhos eletrônicos, já que é ela que inibe a produção da melatonina.
Há distúrbios de sono em que a melatonina pode ajudar o paciente, porém são casos específicos. É preciso investigar a causa, afinal os distúrbios de sono podem ser de origem psicológica, neurológica, respiratória ou mesmo odontológica.
Transtornos respiratórios: apneia obstrutiva do sono
Quase todo mundo tem na família alguém que ronca enquanto está dormindo. O ronco é causado pela passagem de ar por um espaço estreitado e pode atrapalhar o sono, resultando em fadiga e cansaço. Ele também é sintoma da apneia obstrutiva do sono (AOS), entretanto nem toda pessoa que ronca tem apneia do sono.
Na AOS o fluxo de ar para parcial ou completamente, devido ao colapso das vias aéreas superiores. Como resultado, ocorre o ronco, seguido de ocasionais paradas na respiração, o que faz a pessoa acordar diversas vezes durante a noite. Outros sintomas são engasgo, sensação de sufocamento, agitação, palpitação, pesadelos, entre outros.
A AOS pode acontecer em diferentes “intensidades”. Além de afetar a qualidade do sono, aumenta o risco de doenças cardiovasculares, metabólicas e neurocognitivas, como hipertensão arterial sistêmica, AVC, arritmia cardíaca e diabetes mellitus do tipo 2.
De acordo com a médica pneumologista e especialista em medicina do sono Ângela John, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o tratamento deve ser individualizado de acordo com as necessidades do paciente. Disponível em alguns programas de saúde municipais ou estaduais e na rede privada, a conduta pode abranger medidas comportamentais, medicamentos, fonoterapia ou aparelhos específicos para maior abertura da mandíbula ou para manter as vias aéreas afastadas (equipamentos de pressão positiva).
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Você aperta seus dentes?
Outra condição que afeta o descanso é o bruxismo do sono, caracterizado pelo aumento da atividade muscular mastigatória. A pessoa com bruxismo aperta, range, esfrega e bate os dentes ou estala a mandíbula, o que causa dores frequentemente confundidas com as de cabeça ou de ouvido.
A professora da Faculdade de Odontologia na UFRGS Karen Chaves esclarece que o bruxismo pode ocorrer durante o dia e que os dentes só devem encostar quando ocorre mastigação. Nesse caso, é preciso se policiar para evitar o tensionamento. Nem todos os episódios de bruxismo são audíveis, por isso é importante cuidar quando há uma dor com “hora certa”: por exemplo, sempre que a pessoa acorda, ou se realizou uma atividade estressante, fica com dor de cabeça ou na região da mandíbula.
O bruxismo não tem cura e é relacionado ao estresse. Atendimentos com fonoaudiólogo e fisioterapeuta e uso de placa de proteção para dormir podem diminuir os sintomas. Alguns psicofármacos podem causar o bruxismo: nesse caso, a recomendação é tentar ajustar a medicação ou utilizar concomitantemente uma forma de tratamento para o bruxismo.
O projeto de extensão ATM sem restrições, promovido pela Faculdade de Odontologia, realiza atendimento interno e externo sobre a temática. Atualmente, são realizadas as seguintes atividades:
- S.O.S. DTM: atende os acadêmicos da UFRGS com bruxismo e disfunções do sistema mastigatório. As inscrições para atendimento são através do link do formulário.
- Conexão voz: atende pacientes trans com disfunção mastigatória e bruxismo.
- Conexão escola: orienta alunos de escolas públicas sobre bruxismo e hábitos prejudiciais ao sistema mastigatório.
- Saberes em DTM: oferece orientações multidisciplinar sobre disfunções do sistema mastigatório para a comunidade.
Mais informações podem ser encontradas no Instagram do projeto: @atm_sem_restricoes.
As consequências da pandemia
Os profissionais de saúde ouvidos pela reportagem reforçam que a ansiedade e o estresse estão entre os principais agravantes de vários distúrbios do sono. Esses níveis aumentaram durante a pandemia e ainda não reduziram.
Percebe-se que a falta de sono deixa as pessoas irritadas e, em busca de uma resposta rápida, elas recorrem a medicações. No entanto, os remédios costumam impactar nos estágios do sono, interferindo na qualidade do descanso. É preciso investigar e tratar corretamente o que está atrapalhando o repouso do indivíduo – remédios podem ser um caminho, porém nem sempre são a solução com melhor resultado. Cada caso deve ser avaliado individualmente junto a um profissional de saúde.
Ivan faz tratamento há quase vinte anos e afirma que o processo “é uma decisão de vida adulta” para maior qualidade de vida. Ao relatar a ansiedade que sofria por causa da síndrome, explica: “nunca é só não conseguir dormir, tem uma avalanche de consequências nisso”.