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João Victor Gobbi Cassol
Mestrando no PPGJOR/UFSC, pesquisador do objETHOS e do Grupo Biosofia (Pesquisas e Estudos em Filosofia) URI-FW
Sinal dos tempos, a reforma trabalhista promulgada em julho de 2017 anunciava a chegada de um novo período para a classe de trabalhadores e trabalhadoras do Brasil. Anos depois, ela seria acompanhada de uma pandemia que consolidou a flexibilização do trabalho como política de Estado. Prova disso foram as incontáveis publicações – algumas em tom otimista – mostrando o quanto a pandemia fez evoluir a forma como as empresas organizam a jornada laboral de seus funcionários, antecipando em 20 anos a chegada de um modelo remoto de trabalho.
Vendido como um sistema futurista que concede mais autonomia e conforto para o empregado, e mais economia para o empregador, o home office – ou teletrabalho, ou trabalho remoto – se tornou regra para muitos durante os períodos de fechamento na pandemia. Agora, passadas as quarentenas, o modelo resiste e dá sinais de que permanecerá na rotina das empresas e dos trabalhadores.
Sem dúvidas o principal indicador de que o trabalho remoto permanecerá é sua regulamentação no serviço público, quase sempre apontado como uma repartição antiquada em relação aos modernos empreendimentos privados. Em maio deste ano, o Governo Federal publicou decreto que regulamenta o teletrabalho para os servidores públicos. O Programa de Gestão e Desempenho é parte de uma política voltada para resultados e que desobriga o servidor a estar presente na repartição pública. Em troca da flexibilização, este deve cumprir metas e entregar demandas. A filosofia da produtividade e da eficiência que pautam o modelo de teletrabalho no Governo Federal são os eixos de qualquer programa semelhante adotado nas empresas privadas.
O ônus para o trabalhador
O entusiasmo com que os empregadores bradam este modelo, com as promessas de autonomia, liberdade, estar perto da família, não ter de seguir horários e trabalhar de onde quiser, deve servir de alerta para quem vende sua força de trabalho a eles. E há razões para isso. De fato, trata-se de uma flexibilização que rompe as fronteiras físicas e temporais entre vida pessoal e ambiente de trabalho, um cenário que Tarso Genro (2022, local 63) classifica como autonomia simulada. Isto é, “um processo que também invade o tempo livre do empregado – previsto em todas as legislações civilizadas -, transformando-o em tempo permanente e coordenado e subordinado às finalidades estratégicas da empresa”.
É evidente que este conceito de trabalho tem suas vantagens para o empregado, mas deve antes se compreendido a partir de sua natureza, uma proposta que nasce do empregador. E, sendo assim, está vinculado às necessidades do capital. Enquanto fenômeno que está em expansão a partir das promessas de flexibilidade, ele também cresce sem a necessária regulamentação a partir do ponto de vista do trabalhador pois, apesar da propaganda, ainda se trata de uma relação empregador-empregado. Genro (2022) chama a atenção para o descompasso entre realidade e legislação trabalhista.
Em tempo de flexibilização das relações de trabalho, decorrente da mutação programada nas formas de produção e dos serviços, trepida o edifício tradicional da doutrina trabalhista. Categorias jurídicas e estatutos conceituais como “hierarquia”, “confiança” e “subordinação” mudam no tempo e no espaço. Subsumam-se uma na outra, anulam-se, reforçam-se passam a ser revestidas de novas formas jurídicas frágeis, flexibilizadas e mais inseguras, como o próprio mundo laboral concreto que as cerca. (GENRO, 2022, parte 83)
A flexibilização em um trabalho flexível
Já se tornou uma fábula a jornada de cinco horas diárias para o trabalho de jornalista, prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em um cenário no qual 79,3% dos profissionais têm expedientes acima desse limite, como apontam os resultados do Perfil do Jornalista Brasileiro de 2021 (LIMA et al., 2021). Segundo a mesma pesquisa, quase um terço dos jornalistas trabalham de 9 a 10 horas por dia, o que é apenas um dos indicadores do quanto esta profissão demanda flexibilidade de seus partícipes.
Ainda a ver as consequências laborais e mentais que os regimes de home office irão gerar/estão gerando em todo o mundo do trabalho e quais serão/são as categorias mais atingidas, é necessário olhar para nós mesmo, os jornalistas, e mensurar os impactos que podemos sofrer na ausência de uma regulação.
Sem entrar no debate sobre a interferência que o teletrabalho pode gerar na produção da informação jornalística, podemos começar a reflexão a partir da realidade que vivemos durante a pandemia, a foz do home office. O Perfil do Jornalista Brasileiro de 2021 questionou os entrevistados sobre o regime de trabalho em que estavam atuando: 61% deles trabalharam em casa nos seis meses anteriores[1], sendo que 47% tiveram de custear sua própria infraestrutura de trabalho em casa. Ainda referente a esse intervalo de tempo, Lima et al. (2022, p. 87) constataram que “o número de horas trabalhadas sofreu acréscimo no período da pandemia, sem o consequente aumento de remuneração realidade vinculada, também, ao trabalho home office”.
Por fim, ainda cabe salientar a consideração que os pesquisadores fazem sobre o exercício do home office, a partir das respostas enviadas pelos jornalistas. “O regime de home office é colocado como positivo desde que haja controle para que o trabalho não invada o espaço da vida o que nem sempre é uma realidade, como se constatou em muitos casos ao longo da experiência da pandemia” (LIMA et al., p. 198).
Sem dúvidas, é preciso encarar essas observações a partir de seu contexto pandêmico. Preocupações com a saúde individual e familiar, com as finanças e com o futuro se somavam a essa realidade de trabalho remoto no período da pesquisa, em um cenário repleto de novidades e incertezas para todos. No entanto, ainda assim são indicadores capazes de provocar uma reflexão sobre a adoção do teletrabalho no mundo do jornalismo.
Como os próprios pesquisadores apontaram, há um certo otimismo com as coisas boas que o trabalho remoto pode oferecer para os jornalistas – e disso não há dúvidas – mas a ressalva feita pela categoria soa mais alto: o controle sobre os limites entre trabalho e vida pessoal é uma preocupação séria e deve ser vista como central na discussão sobre o home office.
Sob o prisma flexibilização, certamente assume visões diferentes para empregadores e empregados, a depender de suas intenções. Daí a necessidade de se reforçar os pilares do que Genro (2022) denomina “edifício tradicional da doutrina trabalhista”.
Referências
GENRO, Tarso. Mutações tecnológicas e crise do trabalho. In: GENRO, Tarso et al. Estado social do Trabalho e do Empreendimento – ensaios e propostas. 1. ed. Porto Alegre: Libretos, 2022. E-book. Local 19 a 104.
LIMA, Samuel Pantoja (Coord. Geral) et al. Perfil do Jornalista Brasileiro 2021: características sociodemográficas, políticas, de saúde e do trabalho. 1. ed. Florianópolis: Quorom Comunicações, 2022. Disponível em:< l1nq.com/G2LJ7>. Acesso em 24 de julho de 2022.
[1] Em relação ao período em que o entrevistado respondeu ao questionário. O questionário foi aplicado entre 16 de agosto e 1º de outubro de 2021.