Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Carolina Zanette Dill. Para acessar, clique aqui.
Carnaval | Independentes ou ligadas a escolas de samba, iniciativas perpetuam a cultura carnavalesca e oferecem oportunidades a crianças e adolescentes
*Foto: Ana Terra Firmino/JU – Antónia Astigarraga, porta-estandarte do Areal do Futuro
Os primeiros passos de Júlia Barbosa na infância se confundem com os primeiros passos de samba no pé. É possível dizer que a menina, atualmente com 12 anos, carrega consigo a ancestralidade do Carnaval no sangue. Ela lembra que, ainda criança, quando tinha aproximadamente 4 anos, convivia com a tradição carnavalesca perpetuada na família e na comunidade em que até hoje mora, o Areal da Baronesa. A região é um antigo reduto negro de Porto Alegre, classificada como um quilombo urbano e conhecida tradicionalmente como berço do Carnaval da capital gaúcha.
Por lá, de 1994 a 2003, a chamada Academia do Samba Integração do Areal da Baronesa competiu no Carnaval de Porto Alegre. Entretanto, com a passagem dos festejos para o Complexo Cultural do Porto Seco, na Zona Norte da cidade, a então escola de samba decidiu permanecer em seu território e não acompanhar os desfiles. A partir disso, buscando se reinventar, o grupo tornou-se um bloco e tentou uma abordagem diferenciada: criar uma bateria e demais elementos de uma escola formada apenas por crianças e adolescentes.
“Continuamos só com as crianças com a intenção de não deixar morrer essa história do Carnaval aqui na comunidade”, explica Paulo Cézar Silveira, o Paulinho, que, com os amigos Cleusa Astigarraga, a Tia Cleusa, e Daniel Rolveu, criaram o bloco Areal do Futuro. Desde então, o projeto passou a oferecer aulas gratuitas de percussão, sopro, mestre-sala, porta-bandeira, porta-estandarte e samba no pé para os jovens da região e a realizar saídas e apresentações por Porto Alegre. “Nós vemos a evolução da criança que está chegando e depois como ela se desenvolveu. Para eles, se apresentar, sair fardado, ir em vários lugares, não tem preço. São uns artistas”, comenta Paulinho.
Paulinho e Daniel são os responsáveis pelas aulas de instrumentos, enquanto a Tia Cleusa se encarrega das danças e da confecção das fantasias. No entanto, suas atividades procuram ir além do ensino instrumental ou de coreografias: elas são voltadas para a produção de outros conhecimentos por meio da cultura carnavalesca. “Quando vamos colocar um desfile na rua, precisamos pensar que tema vamos levar, qual será o desenvolvimento, qual será o samba enredo. Temos que fazer pesquisa, ter conhecimento de causa”, reflete Cleusa sobre os aspectos históricos e culturais que podem ser narrados e construídos a partir da organização. Na última saída do bloco, em 2020, os jovens desenvolveram o desfile a partir da figura de Mãe Ieda de Ogum, símbolo da religiosidade afro-brasileira do bairro Cidade Baixa.
O Carnaval de Porto Alegre nasce nas periferias, diretamente ligado às religiões de matriz africana e aos territórios negros da capital. Para Maurício Dorneles, historiador e mestre em Educação pela UFRGS, as escolas e os blocos carnavalescos acabam configurando-se como locais de reinvenção para aqueles vistos como marginalizados pela estrutura da sociedade. “Se a gente pensar na escola de samba, ela é o terreiro ou uma extensão de um quilombo, como diz a historiadora Beatriz do Nascimento. Então, esse espaço é um lugar de reinvenção. Se é um espaço de reinvenção, ele produz saberes distintos dos saberes hegemônicos”, pontua o pesquisador. Assim, ao olhar para as comunidades, o Carnaval torna-se um elemento de autoafirmação e de manutenção de valores internos da própria região.
“Uma agremiação vai lá, se transforma e transforma aquele espaço numa pista de desfile, num terreiro, onde se cria uma outra dimensão, e ali todo mundo se afirma enquanto pertencente daquela família, daquela comunidade e ganha uma notoriedade”
Maurício Dorneles
As atividades no Areal do Futuro são realizadas com participação de 60 crianças de 4 a 15 anos. Entre elas está Júlia Barbosa, que começou como porta-estandarte e conquistou a posição de porta-bandeira do Areal. Assim como outras crianças da região, ela cresceu dentro do projeto.
“Lá, eu aprendi a ter caráter. Para mim, o Carnaval significa dignidade”
Júlia Barbosa
Com relação aos seus aprendizados técnicos e práticos, complementa: “Eu não sabia nem girar direito, apresentar uma bandeira. Tive que começar a levar as coisas mais a sério”.
Seu par como mestre-sala é o estudante Matheus Astigarraga, de 15 anos. Apesar de ser neto de Cleusa, a vontade de aprender e participar das oficinas começou como uma brincadeira aos 8 anos, enquanto dançava observando uma dupla de jovens mais velhos. Para o adolescente, o evento é um aprendizado e muito amor. “O Carnaval traz muito conhecimento sobre qualquer coisa. Ele ajuda na minha postura como pessoa, na minha evolução pessoal”, diz o menino. “Eu e a Júlia começamos a ganhar uma maestria no bailado de um ano pra cá, porque a gente começou a fazer aulas e a conversar com os casais que têm mais experiência”, relata.
A dupla também participa do projeto Mini Divas, idealizado por Raquel Nunes, ex-madrinha de bateria da Imperadores do Samba. Em 2018, inspirada em um projeto da carioca Beija Flor de Nilópolis, Raquel decidiu propor aulas de samba no pé voltadas ao público infantil na escola em que fazia parte. A iniciativa começou com 6 crianças; hoje, são 65. Raquel, no entanto, se desvinculou do seu pavilhão de origem. Dessa forma, fez parcerias, e as crianças do projeto passaram a integrar as escolas Bambas da Orgia, Imperatriz Dona Leopoldina, União da Vila do IAPI e Acadêmicos da Orgia. Assim, o Mini Divas tornou-se uma porta de entrada para as crianças participarem dos ensaios e dos desfiles das escolas tradicionais de Porto Alegre.
A ex-madrinha de bateria acredita que trazer as crianças para dentro das escolas de samba pode ser uma forma de oferecer novos olhares sobre a realidade e propor diferentes oportunidades. “Muitas das nossas crianças moram em comunidades, então o Carnaval é uma válvula de escape. Ele acaba sendo um espaço de diversão, de alegria, de conhecer novas famílias, novas crianças”, explica.
Com isso, ela defende a necessidade de um olhar mais atento ao público infantil, diante da intenção de plantar a semente da manutenção e perpetuação da cultura popular. “É desde pequeno que a gente consegue construir essa essência do Carnaval, dar sequência a esse sentimento de respeito à festa, ao pavilhão, de respeito ao samba no pé. Temos que dar continuidade à nossa história”, acrescenta.
O projeto recebe meninas e meninos de 4 a 15 anos e tem como proposta apresentar o Carnaval como ferramenta de integração e socialização. Raquel acredita no potencial de desenvolver desde a infância aspectos como disciplina, empoderamento, empatia, humanidade e respeito por meio da interação entre as crianças e das dinâmicas de uma escola de samba.
“O Carnaval é uma forma de a gente expressar a nossa felicidade. É uma maneira de fazer novas amizades, cultivar a cultura popular, aprender e ter conhecimento”
Raquel Nunes
Nesse sentido, o pesquisador Maurício Dorneles observa nas escolas de samba, nos blocos e nos respectivos projetos uma dimensão educativa, de sociabilidade bastante dinâmica e complexa. “Em qualquer espaço que seja possível reunir um grupo de pessoas que está em prol daquele pavilhão, nós vamos ter inúmeras construções de saberes ou produções de entidades. Ali, existem hierarquias, existe a convivência de toda a comunidade. Tem os adultos, os jovens, as crianças, todos convivem no mesmo espaço, todos com sua importância.” Assim, cada membro, sejam dirigentes, passistas, rainha de bateria, porta-estandarte, membros da bateria, apresentam seu papel e sua responsabilidade.
Além disso, no ponto de vista de Dorneles, as escolas de samba e os blocos permitem o aprendizado de todas as linguagens artísticas, seja por meio do canto, da composição, da condução do instrumento, da dança, do corte e da costura, por exemplo. “É a experiência humana com vida e com arte. A produção da vida é isso. Não é só aquela coisa cartesiana. É o momento de colocar o corpo para experienciar coisas”, reflete.
Como o Areal do Futuro e o Mini Divas, outros amantes da festa também observam os elementos do Carnaval como ferramenta educadora e socializadora. David Wagner Goulart é educador e idealizador do “Vem com a gente!”, um projeto social focado no ensino dos instrumentos de percussão de uma bateria. Ele e a esposa Rudielen da Silva deram início às atividades em 2018, sem a intenção de ser relacionado ao Carnaval. No entanto, a abordagem acabou sendo vinculada de forma natural, após receberem uma série de convites para que participassem de festejos descentralizados de Porto Alegre.
Participam do projeto 25 jovens de 11 a 21 anos, oriundos do bairro Passos das Pedras. A premissa é desenvolver um entendimento cultural a partir dos instrumentos. “A ideia é formar cidadãos, formar pessoas com valores humanos. O conhecimento sobre os instrumentos vem como consequência”, aponta David. Para ele, atividades voltadas para crianças e adolescentes são capazes de desenvolver neles diferentes habilidades artísticas, promover a criação de novos gestores, incentivar jovens educandos a se tornar educadores, e ainda renovar aqueles que participam da cultura popular do Carnaval. “Sou defensor das crianças dentro das escolas de samba. O Carnaval pode oportunizar crianças protagonistas”, finaliza Goulart.