Projetos buscam caminhos para melhorar a formação para a docência na pós-graduação

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Stéfani Fontanive. Para acessar, clique aqui.

Universidade | Mestrados e doutorados historicamente privilegiam a pesquisa, como mostram os dados coletados entre os PPGs da UFRGS, mas a formação de professores é considerada relevante por seu impacto social e pela qualificação dos egressos para seguirem carreira no ensino superior

*Foto: Ana Terra Firmino/JU – Cursando o Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV),
Leonardo Caobelli ministrou, ao longo deste semestre, aulas na disciplina de Laboratório Fotográfico II,
no curso de Licenciatura em Artes, como parte de suas atividades em Estágio Docência

Em 2022, 2.196 estudantes tornaram-se mestres e doutores pela UFRGS. Nesse mesmo ano, mais 2.850 entraram em um dos 89 programas de pós-graduação da Universidade. O caminho escolhido por muitos desses alunos ao sair dos cursos de pós-graduação é a docência, mas os dois, quatro ou seis anos passados na academia não preparam os futuros professores para a profissão. 

Durante os anos dedicados à pesquisa, em geral apenas os bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) têm o estágio docente como obrigação. O relato dos pós-graduandos, no entanto, muitas vezes, não é positivo. Traumas de sala de aula, desistência da pesquisa e reclamações sobre a ligação entre docência e pesquisa são pontos presentes nas conversas com alunos dos programas de pós-graduação. A Universidade, nesse cenário, é ambiente propício para o debate, e iniciativas já apontam possíveis caminhos.

Modelo tripé

A união entre pesquisa e docência foi formalizada na Reforma Universitária de 1968. A Lei n.º 5.540, de 28 de novembro desse ano, é responsável por fixar “normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências”, conforme consta do documento.

“Nessa reforma foi instituída a universidade com o modelo tripé: pesquisa, ensino e extensão”, explica Flávia Maria Teixeira dos Santos, professora da Faculdade de Educação, com foco na formação de professores. A pesquisadora afirma que durante a reforma e a reorganização das instituições, a pesquisa foi privilegiada em detrimento das outras duas áreas.

Essa lei foi revogada pela Lei n.º 9.192, de 1996, promulgada por Fernando Henrique Cardoso, mas a universidade tripé – e seu foco na pesquisa – seguiu. Ainda no governo FHC, o estágio docente passou a ser obrigatório a todos os bolsistas federais por meio do ofício circular n.° 28/99/PR/CAPES. Em 2010, uma nova reforma. A partir desse ano, se o programa possui mestrado e doutorado, apenas os doutorandos bolsistas são obrigados a realizar o estágio docente.

Para a Capes, a prática é “parte integrante da formação do pós-graduando, objetivando a preparação para a docência e a qualificação do ensino de graduação”. Na prática, o estágio docente consiste no compromisso de o aluno acompanhar durante um semestre uma disciplina da graduação, preferencialmente de seu orientador. Caso o professor não dê aula para a graduação ou a cadeira não se relacione à pesquisa do orientando, este pode fazer o estágio com outro docente da instituição.

“Não há uma orientação institucional voltada ao estágio docente”, aponta Flávia. O estágio, que deveria ser um momento de preparação do aluno para a docência, acaba perdendo o sentido. “Sabemos que, muitas vezes, os professores usam os estagiários docentes para ‘cobrirem’ aulas que eles não podem dar”, afirma Julio Barcellos, pró-reitor de pesquisa da UFRGS. Flávia concorda e aponta que é uma prática comum. São poucos os programas que propiciam aos alunos entrarem em contato com metodologias de ensino.

O estágio docência na UFRGS

Na Universidade, cada PPG organiza o funcionamento de seu estágio docente e sua obrigatoriedade. Para mapear a situação disso, a reportagem fez contato com os 89 programas existentes na instituição. Desses, 36 responderam a três perguntas: como é o estágio docente no PPG?; como funciona a matrícula para o estágio?; e há alguma aula teórica no programa acerca de metodologias de ensino referente ao estágio docente?

No programa de Botânica, por exemplo, todos os alunos são obrigados a realizar a prática, enquanto em Artes Visuais apenas os doutorandos com bolsa Capes – conforme orientação federal. Em Psicologia Social, os bolsistas mestrandos e todos os doutorandos são obrigados. Já o PPG em Alimentos de Origem Animal, por oferecer mestrado na modalidade profissional, não exige que os alunos façam estágio docente.

Clique e confira a obrigatoriedade do estágio docente de acordo com cada PPG, segundo as respostas recebidas:

MestradoDoutoradoMestrado e Doutorado

  • Psicanálise (apenas bolsistas Capes)

A matrícula dos alunos segue um padrão. É feita por meio do portal do aluno ou da secretaria de cada PPG, com autorização do professor da disciplina e do orientador do pós-graduando. Dessa forma, diferentes programas podem oferecer o estágio docente em um mesmo curso de graduação, enquanto o mesmo programa é elegível para realizar a prática do estágio docente em mais de um curso. Os programas de Matemática e Ensino em Matemática, por exemplo, realizam a prática no mesmo curso, enquanto o programa de Artes Visuais pode estar nos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais e bacharelado em História da Arte.

Além da obrigatoriedade do estágio docente, outro detalhe que diferencia a organização dos programas é a existência de disciplinas voltadas a metodologias de ensino. Dos 34 que responderam à reportagem, apenas seis oferecem alguma cadeira voltada ao ensino de metodologia.

O PPG em Psicanálise, por exemplo, oferece a disciplina no mesmo semestre em que ocorre o estágio docente. “Essa disciplina tem o objetivo de discutir a docência e o ensino da Psicanálise na Universidade. É uma disciplina de acompanhamento, um espaço para discussão de questões que os estagiários levam a partir da sua experiência em sala de aula”, informa o programa.

Já os programas de Botânica, Ciências Pneumológicas, Fisiologia, Genética e Biologia Molecular e Neurociência oferecem uma disciplina voltada ao ensino das metodologias, normalmente denominada Práticas de Ensino. “Essa cadeira é pré-requisito para as cadeiras de Estágio (Estágio 1, mestrado; Estágio 2, doutorado). Na Prática de Ensino eles terão a orientação pedagógica e a avaliação criteriosa dos professores do PPG e dos próprios colegas pós-graduandos, numa espécie de ‘laboratório de aula de fisiologia’”, explica a secretaria do PPG em Fisiologia.

Nos outros programas, uma resposta recorrente: não há disciplinas. O ensino referente às metodologias fica a cargo do professor responsável pela disciplina, que acompanha o estagiário docente. Durante o contato com os programas de pós-graduação, alguns admitiram que a pauta do estágio docente é de extrema importância. “Vejo isso como um ponto importante no qual o PPGCV poderia avançar, criando uma disciplina com metodologias de ensino que agreguem preparo teórico-didático aos alunos em estágio docente e que os ajude no futuro a exercer a docência, se escolherem esse caminho”, comenta o professor Álan Gomes Pöppl, do programa de Ciências Veterinárias.

A visão dos alunos

Em uma reunião da Associação de Pós-graduandos (APG) da UFRGS, a pauta do estágio docente entrou na roda, levada pela reportagem. Como associação, os alunos afirmaram que nunca haviam pensado sobre o tema. “Somos uma instituição política, com diversos tópicos e problemas. Os tópicos entram em pauta conforme pedido e requisição dos alunos”, explica Lucas Beraldo, representante da entidade.

Bruna da Rocha, mestranda no PPG em Desenvolvimento Rural, está, atualmente, em seu estágio docente. A estudante relatou que, nesse processo, ela pode escolher duas aulas para dar, seguindo o modelo e as instruções disponíveis pelo professor responsável pela disciplina. Em seu relato, afirma não ter aula de metodologia e não sentir a liberdade para poder construir uma aula em formato diferente. “Não há o apoio metodológico necessário. A pós-graduação é a formação dos professores, mas não temos esse apoio.”

Cauã Roca Antunes explica que no PPG de Computação o estágio – e sua qualidade – variam segundo o professor responsável pela disciplina. “Não tinha muita noção do que fazer”, comenta o estudante ao relatar sua experiência no estágio e conclui que não houve preparação para didática antes de entrar na sala de aula.

Para Lucas Beraldo, do PPG em Ciências do Movimento Humano, a experiência do estágio também varia conforme o professor. Antes de entrar no doutorado, ele já havia sido professor e traz outros debates sobre o estágio docente, como a exploração do estagiário. “O aluno é explorado pelo professor, e sem receber.”

Fernando Lopes já fez dois estágios docentes, uma vez de forma obrigatória e outra como voluntário. Ele explica que, no PPG em Psicanálise, a cadeira de ensino da docência ocorre de maneira simultânea à prática. Para ele, o período do estágio trouxe angústia e ansiedade. “Faltam algumas coisas no estágio docente”, afirma. Entre elas, a preparação para lidar com os alunos.

E lidar com os alunos de graduação é um dos pontos que diversos mestrandos e doutorandos trazem. Ao mesmo tempo que a semelhança entre as idades pode permitir uma maior aproximação entre aluno e estagiário docente, também pode trazer uma descredibilização de suas capacidades. Flávia comenta que saber teoricamente as metodologias e como se preparar uma aula ajuda, mas a relação com os alunos se domina apenas na prática. “A parte mais difícil é que os objetos estão ali, interagindo contigo”, explica. Fernando concorda ao apontar que essa é a parte mais difícil do estágio: “Estar preparado para as impossibilidades”.

Dos 89 programas, apenas seis afirmam ter cadeiras sobre metodologia de ensino. A resposta mais frequente à pergunta “Há alguma aula teórica no programa acerca de metodologias de ensino referente ao estágio docente?” é que não há uma disciplina e as atividades são elaboradas em conjunto com o docente responsável pela cadeira em que atuará o estagiário.

“O estágio docente deixa claro que estamos estudando, mas acaba não tendo o caráter formativo”, aponta Lucas, que afirma que essa questão não é apenas da APG, mas também da instituição, e uma pauta urgente a ser debatida. De forma unânime, os alunos afirmaram que o estágio não prepara o aluno para a docência.

O que diz a Instituição

A Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade está ciente dos problemas. “A pró-reitoria já está trabalhando, em conjunto com os coordenadores dos programas, para melhorar o estágio docente”, afirma Julio Barcellos. O pró-reitor reitera a importância do estágio docente para a formação dos alunos e a necessidade do aperfeiçoamento da capacitação pedagógica e do acompanhamento do professor.

“O estágio docente é um laboratório para que os alunos de pós-graduação interajam com a graduação para usar as práticas pedagógicas”, explica. No entanto, não há cadeiras sobre práticas pedagógicas em todos os programas. Ao ser questionado se essas disciplinas poderiam ser integradas ao currículo, Julio afirmou que seria muito difícil, considerando que não são todos os professores que possuem o domínio metodológico ou têm qualificação para ministrar uma disciplina desse teor. A solução, para ele, é uma melhor comunicação entre os programas.

“O aluno de pós-graduação precisa saber que, ao estar matriculado em um programa, ele pode fazer qualquer uma das mais de 300 disciplinas disponíveis”, explica. Ele reitera que há um programa dedicado à pedagogia e à metodologia e mais 40 cursos de licenciatura, e que os mestrandos e doutorandos podem se matricular em qualquer uma dessas disciplinas e, se demonstrarem interesse em seguir a carreira docente, devem ser incentivados a se matricularem.

Flávia, entretanto, relembra que no tripé pesquisa, ensino e extensão, a pesquisa é sempre priorizada. Para a pesquisadora, o modelo mais eficiente de estágio docente é o de tutoria. Com aulas voltadas à metodologia, o aluno precisa ter a experiência completa de preparar um plano de ensino e criar as avaliações, sempre acompanhado. “O professor experiente acompanha o professor que está sendo formado.”

Durante os anos na pós-graduação, impera a ideia de que se tem de terminar a dissertação ou a tese com qualidade. Se o estudante for bolsista, além do estágio docente, há uma série de outros requisitos que ele precisa preencher, inclusive em número de publicações. Com uma série de pré-requisitos a serem preenchidos e com a lógica do produtivismo acadêmico, questiona-se, também, se o aluno terá disponibilidade para se dedicar a mais uma cadeira, voltada à metodologia, ao invés de disciplinas que o auxiliem na conclusão de suas pesquisas.

Outros projetos

Na UFRGS existem diferentes projetos voltados à docência que demonstram que existe a possibilidade de se terem diferentes formas de exercitar a docência durante os anos da pós-graduação, entre eles, no programa de Desenvolvimento Rural (PGDR) e no de Engenharia de Produção.

O PGDR mantém parceria com diferentes instituições – federais e estaduais – para que os pós-graduandos possam exercer a docência. O projeto iniciou em 2016, quando o programa passou a participar do Núcleo de Extensão e Desenvolvimento Rural do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT), em que as universidades fazem assessoramento de territórios interioranos na serra e no litoral, explica Gabriela Coelho, a professora responsável pelo projeto.

Em cidades como São Francisco de Paula e Santo Antônio da Patrulha, já havia uma universidade, a estadual do Rio Grande do Sul. Ao fazer o assessoramento, UFRGS e UERGS passaram a ter, então, uma parceria. Professores e alunos do programa passaram a dar aulas na instituição. Com o tempo, o projeto evoluiu até os Institutos Federais, como o da Restinga. Bruna da Rocha, mestranda no PGDR, comenta que a extensão não conta como estágio docente. “Ele funciona como uma seleção, e só os doutorandos podem dar as aulas”, explica.

O processo tem duas etapas, explica Gabriela. Na primeira, teórica, os alunos aprendem como preparar um plano de ensino, metodologia de ensino e formas de avaliação. A segunda é, efetivamente, estar em sala de aula. Quem teve a oportunidade de fazer parte do projeto tem apenas elogios a ele. Jeidi Galeano, doutora pelo programa, participou do projeto e hoje é professora do IFRS câmpus Restinga. “A participação no projeto foi muito importante para a minha preparação para dar aulas”, afirma.

No PPG em Engenharia de Produção, os alunos participam do programa Modernization of Undergraduate Education Program (Programa de Modernização do Ensino de Graduação, em tradução literal) Capes/Fulbright. O PPGEP foi um dos oito cursos de engenharia do país contemplados. “Os alunos da pós-graduação e os professores do curso são treinados em novas técnicas de ensino”, explica o programa.

Os alunos também têm a oportunidade de participar de intercâmbios para a formação em universidades estadunidenses, que são referência na prática de ensino. Para participar, o ou a estudante precisa se candidatar – e pode participar do projeto por um ano. “Isso lhe permite ter uma formação integral em novas práticas de ensino, além de poder trabalhar de forma integrada entre pós-graduação e graduação.”

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