Publicado originalmente em O Estado do Piauí por Juliana Andrade e Vitória Pilar com edição de Luana Sena. Para acessar, clique aqui.
Pedro Henrique de Alencar, saiu de casa e disse para a mãe que voltaria logo. Oito dias depois, o vídeo de dois homens carregando o corpo de um adolescente em um carrinho-de-mão, na cidade de Alto Longá – a 80 quilômetros de Teresina – davam indício do destino que tomou a vida do jovem, de apenas 16 anos.
Com a Polícia Civil acionada, um rastro de violência causado pelas facções foi sendo revelado no estado. No dia em que desapareceu, Pedro foi levado para um casebre improvisado, construído em uma parte distante e isolada na cidade. No local, os acusados pelo crime contaram que fotos do jovem, em suas redes sociais, fazendo elogios à facção Primeiro Comando da Capital (PCC) condenaram suas próximas horas. De acordo com a Polícia, os acusados são membros da facção rival conhecida como “Bonde dos 40”.
Em um dos últimos momentos de vida, Pedro Henrique aparece em um vídeo filmado por seus próprios algozes que anunciam: “Ele está com a gente aqui. O 15 não tem vez”, em referência à facção PCC. A dupla de torturadores exibe um revólver.
“Essa quebrada aqui de Alto Longá, o que é?”. A vítima responde: “Tudo 40”. O homem indaga: “E por que você fica botando coisa de 15?”, diz enquanto filma. Pedro Henrique teria sido assassinado logo depois da gravação do vídeo. De acordo com a Polícia, o jovem ainda travou uma luta com os rapazes, mas foi dominado e morto. Após o assassinato, os suspeitos fugiram para Teresina. Poucos dias depois, dois dos envolvidos foram presos. O crime aconteceu em outubro de 2020 e, até agora, um terceiro envolvido ainda não foi localizado.
O episódio aconteceu em um período, marcado por ondas de violência latente em todo o estado. O último trimestre de 2020 alcançou, índices inéditos em municípios antes considerados pacatos. A cidade de Parnaíba testemunhou um grande aumento nos casos de homicídios. Em 2019 foram registrados 21 assassinatos; em 2020 o número subiu para 31 e, em 2021, o número quase triplicou: foram 81 homicídios ocorridos na cidade – um aumento de 125% em relação a 2020.
As pichações surgindo nos muros das cidades, principalmente em zonas periféricas, denunciam o avanço das facções nas entranhas do estado. Antes, comuns na capital, frases como “É proibido roubar na quebrada”, “É tudo 15”, “Assinado O Crime” e “Facção Central”, dão o tom da violência nos municípios por todo o estado.
O Atlas da Violência, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelou em 2018 que o estado do Piauí segue uma tendência nacional: os índices de violência no país estão crescendo – especialmente em cidades médias e pequenas.
No levantamento, as cidades de Sebastião Barros, Caldeirão Grande do Piauí e Vila Nova do Piauí aparecem com as maiores taxas de violência do estado. São municípios cuja população não alcança mais de 6 mil habitantes, segundo o último levantamento do IBGE. Para se ter uma ideia, Vila Nova do Piauí contém 2.935 habitantes.
Ainda de acordo com o Atlas, quando se trata de mortes violentas no estado, duas mesorregiões aparecem em destaque: o sudeste e centro-norte piauiense. A taxa é calculada com base nos dados de mortes violentas registradas em cada município – incluindo homicídios, suicídios, acidentes e mortes com causa indeterminada – nas quais o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde (MS) falhou em estabelecer a causa correta. Para fazer o cálculo, o Atlas leva em conta o número de mortes a cada 100 mil habitantes. Aqueles municípios com população menor, tiveram um cálculo populacional estimado.
Mar de sangue
O Piauí tornou-se rota do tráfico internacional de drogas e o epicentro das disputas violentas entre organizações criminosas. O estado “fecha” fronteiras do Nordeste onde estão localizados alguns dos principais destinos turísticos do país e os portos marítimos, por onde segue para o mercado europeu – despontando um lucrativo mercado de substâncias proibidas. A região litorânea de Parnaíba é um ponto estratégico, se comparada a outras cidades piauienses – apontou o Observatório de Segurança Pública do Piauí.
A Rede de Observatório da Segurança, atua em sete organizações, de sete estados, conectadas com o objetivo de monitorar e difundir informações sobre segurança pública, violência e direitos humanos. Uma iniciativa de instituições acadêmicas e da sociedade civil da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo dedicada a acompanhar políticas públicas de segurança, fenômenos de violência e criminalidade nesses estados.
A presença das facções, no litoral do Piauí ou na capital, se expressa por meio da disputa pelo monopólio do mercado do tráfico de drogas nos territórios. A violência é uma marca para manter autoridade e estabelecer território. “As organizações que aqui chegam fortalecem gangues e pessoas reincidentes no crime, aumentando seu poder bélico e avançando para as mais diversas periferias do estado”, destaca o pesquisador da Rede de Observatório de Segurança, Elton Guilherme Santos. “Isto é, grupos até então estabelecidos, são incorporados às fileiras das organizações criminosas – e agora com o poder armamentista delas”, complementa.
Atualmente, o “Primeiro Comando da Capital” (conhecido como PCC) e “Bonde dos 40” (B-40) apresentam prevalência nas disputas na capital e interior do estado, com atuação direta no tráfico de drogas e no aumento circunstancial de crimes letais. As consequências dessas disputas dos grupos são expressas sistematicamente nos altos índices de violência letal que acomete, principalmente, o segmento jovem.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSPI), em 2020, 51,14% das vítimas de crimes violentos letais intencionais tinham a faixa etária de 0 a 29 anos. Em 2021, o Piauí teve a 5° maior alta de assassinatos nos primeiros nove meses do ano, na comparação com o mesmo período de 2020.
Segundo apontado pelo Monitor da Violência, até setembro de 2021, 538 pessoas foram vítimas de crimes violentos intencionais no Piauí, sendo que 86 aconteceram em Parnaíba. A maior parte dos crimes é de homicídios dolosos (512), seguido por latrocínios (23), e, por último, lesões corporais seguidas de morte (3).
No final de 2021, Teresina e Parnaíba viveram o que especialistas passaram a chamar de “cotidiano bélico”. Nesta guerra do tráfico, Maria Luiza, de 22 anos, foi morta a tiros enquanto amamentava a filha recém nascida – que também foi ferida na mão – em novembro, na cidade de Parnaíba. “O grau de coisificação da existência do outro soa como um aviso de que essa guerra não terá pausa ou repouso”, destaca Elton. “E que ‘a rota’ do tráfico de drogas vem deixando uma pilha de corpos jovens mortos no caminho”.
Os números assustam e persistem: nas últimas semanas de novembro do ano passado, foram registradas 11 mortes violentas ligadas à mesma causa. Essa realidade marginal vem se aplicando e estabelecendo a morte de jovens como norma há pelo menos quatro anos, com pouca ou nenhuma intervenção do estado. “No contexto piauiense, a deliberação do ‘deixar morrer’, baseia-se, essencialmente, numa consciência que naturaliza certas mortes – e apenas estas”, pontua o pesquisador.
A falta de comprometimento com a redução nos índices de criminalidade violenta desencadeia genocídios e (des)arranjos políticos. Elton sustenta o conceito de “necropolítica” – do filósofo camaronês, Achille Mbembe – em referência às “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte”. Em essência, necropolítica é uma “política de morte”, que tem o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer.
O conceito também diz respeito a forma com que o estado se volta – ou não se volta – para certos grupos e populações vulnerabilizadas, o que pode ser um fator crucial para as vidas ou mortes das pessoas, como também, para acesso às instâncias de cidadania e dignidade. “A culpabilização de jovens aparece para o estado como um descaso com os segmentos juvenis e, principalmente, com os jovens negros e pobres”, frisa o estudioso.
Pensar políticas públicas específicas e legislar sobre a questão é algo que vai além da conjuntura da segurança pública. Isso porque, para o tráfico não há diferença entre a idade de quem ingressa dentro da articulação criminosa. “A questão do tráfico para além do debate moral é uma questão puramente mercadológica, sobre compra e venda”, ressalta Elton. No entanto, sem políticas efetivas que agreguem ainda na juventude, a violência deixa de ser uma escolha e se torna a única opção.