Professoras apresentam a pluralidade do continente africano na escola

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Anna Ortega. Para acessar, clique aqui.

Educação | Para além de apenas cumprir a Lei 10.639/03, que obriga a apresentação de conteúdos africanos em sala de aula, docentes buscam desconstruir estereótipos sobre o continente, apresentando sua diversidade e combatendo o racismo

Foto de capa: Leonardo Savaris/Arquivo Pessoal 19 nov. 2016

Quando Kátia Flores decidiu que se tornaria professora, há 23 anos, sabia de uma coisa: gostaria de possibilitar aos seus alunos uma experiência diferente daquela que tinha tido em sala aula quando era estudante. Kátia, durante toda sua vida escolar, não se enxergava como parte dos conteúdos e dos processos educativos apresentados. “Eu, desde cedo, comecei a me questionar: onde está minha história dentro da escola, dentro da educação?”, conta. “Quando comecei a cursar o magistério, decidi que queria que os meus alunos se vissem representados nas minhas aulas.” 

Desde o início de sua trajetória, Kátia já trabalhava com uma educação afrocentrada e, mais do que isso, com uma educação antirracista, inserindo a cultura africana e afro-brasileira desde as séries iniciais. A aprovação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório no país o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas em sua totalidade – fruto da luta histórica do movimento negro –, apenas confirmou aquilo que a professora já pensava quando ainda era estudante: existem outras histórias, e elas precisam ser contadas. 

Na visão da pesquisadora da UFRJ Monica Lima e Souza, a lei saiu do papel. Isso ocorreu com o reforço de outras políticas públicas desenvolvidas na época, voltadas à temática racial na educação, como a Lei das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, de 2004, e o Projeto Cor da Cultura, que realizou uma série de produtos audiovisuais e ações culturais voltadas à valorização das histórias africanas e afro-brasileiras. “Se avançou muito. Hoje em dia você não tem um livro didático que não tenha história da África. Tem que ter. A discussão que vem ocorrendo é: que história da África tem que estar no livro didático?; como isso vai ser trabalhado em sala de aula?”, explica a pesquisadora.

Mônica ressalta a importância de as Áfricas (no plural) aparecerem durante a toda vida escolar, desde a educação infantil até o ensino médio – atentando para como cada faixa etária pode se relacionar com as temáticas. “Quando eu penso na história da África na escola, eu penso nela mesmo antes da alfabetização.”

As crianças podem e devem entrar em contato com histórias africanas, com canções, com uma série de outras informações que já desde a tenra idade vão as preparando para dialogar com esses mundos.” 

Mônica Lima e Souza

A professora, também coordenadora do  LEÁFRICA (Laboratório de Estudos Africanos), lembra que as sociedades africanas podem estar presentes em diferentes disciplinas e temáticas, e não precisam ficar restritas às aulas de História. A ideia de que a África é um só lugar – e que esse é um lugar onde se vê tristezas, misérias e ruínas – começa muitas vezes no ambiente educacional. É falsa a imagem de uma África “essencializada”, generalizada. Na contramão disso vem a possibilidade de trabalhar o continente africano de forma interdisciplinar, como sugerido pela Coleção História Geral da África

Conhecer a África e conhecer a si 

Katia, nas aulas do quarto ano da Escola Municipal Professor Larry, localizada na Restinga, em Porto Alegre, começa o trabalho da África a partir da história do aluno. A professora orienta os estudantes a fazerem uma pesquisa sobre o que costumam fazer em casa, sobre como é a alimentação, sobre como é a religião. Ela pede também para entrevistarem a pessoa mais velha da família. Nesse processo, muitos começam a despertar para as origens do próprio território – um conteúdo geralmente trabalhado no quarto ano de todas as escolas. A maioria dos alunos de Kátia são moradores da Restinga e vão escutar como as famílias chegaram até ali. Escutam sobre o processo que começou a partir de bairros na região central de Porto Alegre, como a Ilhota, e que fazem parte dos territórios negros da cidade. 

“Quando eles trazem essa história, a gente começa a puxar: de onde vieram essas pessoas que moram aqui hoje? Vieram do bairro Ilhota. Quem eram aqueles moradores do bairro ilhota?”, segue a professora. “Daí a gente começa a contar que a maioria da população dali era negra e começa a contar de onde eles vieram. Começa a contar a história da escravidão, de onde vieram essas pessoas que foram escravizadas e chegamos no continente africano.”

“Quando a gente chega na África, eles começam a identificar partes da cultura deles. E daí a gente volta para o processo do ‘eu’. Do eu sou importante, eu tenho uma cultura que vai além do Brasil. Começa um processo de identificação e respeito à cultura africana e afro-brasileira, porque é uma cultura que faz parte deles também”

Katia Flores

Os ecos dessas atividades ultrapassam o “cumprimento da legislação”. Têm impacto em como os próprios estudantes percebem suas vivências. Kátia, nesses 20 anos de sala de aula, coleciona histórias. Agora com aulas remotas, ela tenta realizar o mesmo processo das aulas presenciais. Em uma atividade virtual sobre o respeito às religiões, um aluno contou que era de religião de matriz africana e disse: “Profe, eu acho que minha religião não é respeitada”.

O menino explicou à professora e à turma que um dia foi para a escola com uma medalhinha de São Jorge no pescoço e um colega insistia em querer tirar a medalha dele, dizendo que “era coisa do demônio”. Durante a atividade que Kátia estava propondo, o aluno reconheceu que naquela situação lá atrás o colega havia praticado intolerância religiosa.

Antes da pandemia, a professora do quarto ano também levava à sala de aula o jogo As Viagens do Tambor, em que aparecem os territórios negros da cidade. Nele os alunos podiam visualizar os espaços na cidade afetivos para eles, como a Restinga, a escola de samba. Quando podiam, faziam passeios, visitavam quilombos, iam ao Museu de Porto Alegre. “Em uma dessas visitas com os alunos, a monitora do museu perguntou para eles sobre o hino do Rio Grande do Sul. E eles rapidamente disseram: Não, professora, quem escraviza é que não tem virtude”, relata Kátia. 

(Foto: Leonardo Savaris/Arquivo Pessoal 03 dez. 2015)
Combater o racismo já na escola

Consideramos a sala de aula um dos espaços mais importantes e potentes para trabalhar as pautas antirracistas e antidiscriminatórias”, pontua Rita Camisolão, coordenadora adjunta das ações de extensão do programa de educação antirracista no cotidiano escolar e acadêmico e da Semana da África na UFRGS.

“Normalmente é esse o primeiro lugar em que a criança negra fica face a face com o racismo e aprende a história dos povos negros de uma forma colonizadora”

Rita Camisolão

O Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), espaço em que Rita atua dentro na Universidade, realiza atividades relacionadas à luta antirracista no eixo chamado Educação na Diversidade. A proposta é atuar, principalmente, na formação dos educadores – uma frente considerada central para que, depois, as mudanças possam chegar às salas de aula. Nas formações, a ênfase está na história e na cultura afro-brasileiras, africanas e indígenas e na educação das relações étnico-raciais.

Além de atividades de formação continuada de educadores, o programa Educação Antirracista também disponibiliza material de apoio teórico e metodológico aos professores. Assim, foram construídas a várias mãos publicações que sistematizam a extensão realizada em forma de livros, revistas ou material pedagógico, disponibilizados gratuitamente. 

A questão do material é central porque se apresenta como um ponto de partida para os docentes, já que a maioria não teve em suas graduações uma abordagem aprofundada sobre como levar essas temáticas para dentro do ensino. Professora de Geografia no Colégio de Aplicação da UFRGS, Maíra Suertegaray percebeu que teria que mobilizar outros conhecimentos que não estavam nos livros didáticos para abordar a África de forma menos engessada. 

Maíra já deu aula no ensino regular e hoje leciona para estudantes de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Nas duas experiências, procura levar o conteúdo dialogando com questões atuais e com a realidade dos alunos, discutindo a partir do recorte de raça, gênero e classe social.

“Trabalhamos a participação dos africanos em diáspora na construção da história e do território brasileiro, mostrando como isso tem reflexos até hoje no nosso cotidiano, sobretudo no de muitos dos nossos estudantes. A gente também considera muito importante trabalhar os movimentos de resistência que sempre existiram, os personagens históricos importantes que estão invisibilizados e que dificilmente vão aparecer nos nossos livros didáticos”, explica a docente. 

“A gente trabalha muito na questão de desconstruir os estereótipos que existem em relação ao continente africano. Lembrar que a África é muito mais do que isso que se conhece, que a África tem uma historia riquíssima. Que tem uma diversidade de paisagens, de povos, de modos de vida”

Maíra Suertegaray

Maíra fala “a gente” porque, desde que começou a atentar para a educação afrocentrada, passou a trabalhar de forma mais integrada com professores de outras disciplinas – não só das ciências humanas. Ela relata uma experiência em que, em parceria com a professora de educação física, trabalharam as brincadeiras tradicionais das crianças aqui e das crianças de alguns países africanos. “Com essa atividade, a gente pode conhecer as realidades de alguns países africanos. De como eles vivem, de como as crianças brincam.” 

A importância de um ensino interdisciplinar 

A África pode aparecer na escola de maneiras não óbvias. Os livros didáticos podem – e devem – ser ampliados em seus conteúdos, mas há também outras narrativas possíveis. Como parte de sua dissertação no Mestrado Profissional em Ensino de História, Anelice Bernardes levou a literatura do escritor malinês Amadou Hampâté Bâ para a escola estadual onde trabalha em Gravataí. A partir do livro Amkoullel, o menino fula, uma obra em que o autor apresenta sua vida – de quase um século – e a dos familiares que o antecederam, a professora apresenta discussões sobre o continente africano e os valores civilizatórios africanos e afro-brasileiros.

Tudo começou com a pergunta de um aluno durante uma aula. Ela, enquanto ensinava sobre o imperialismo, com uma abordagem de denúncia, ouviu: “Professora, como eles deixaram que fizessem isso com eles?”. “Eu não tinha resposta. Fiquei remoendo aquilo”, revela.

Quando iniciou a dissertação, era essa pergunta que queria buscar responder. Encontrou na obra de Hampaté não a resolução, mas um caminho para levar outras perspectivas sobre a colonização para o ensino. “O Hampaté traz em seu livro uma riqueza de histórias, porque é ele contando. Ele não é um colonizador contado os horrores da colonização, do neocolonialismo na África. É alguém que passou por isso e vai mostrar de diversas formas como aconteceu.” 

A professora propôs aos alunos não apenas a leitura do livro. Criou o que chama de “caixas pedagógicas”, com partes dos textos, mapas e imagens relacionados à narrativa. Os estudantes eram divididos em grupos e, juntos, liam as histórias contadas em O menino fula. Era uma oficina em que os próprios estudantes tornavam-se também pesquisadores-historiadores. 

Primeiro, precisavam buscar e elaborar o que estava dentro das caixas. Depois, a missão era recontar aos outros grupos o que tinham aprendido. Naqueles momentos, tornavam-se, de alguma forma, griots – indivíduos que na África Ocidental têm, por vocação, a transmissão de histórias, conhecimentos, canções e mitos de seus povos.  

“A literatura tem essa característica de falar de pessoas. Quando tu fala de pessoas, tu consegue te identificar com elas. Eles conseguiram pensar, refletir, ver uma África que é rica, que tem diversidade de povos, de línguas, de riquezas. Tudo a partir do olhar de uma pessoa negra e africana” 

Anelice Bernardes

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