Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Por Paulo Niederle
Quando esteve no estado do Rio Grande do Sul por conta das enchentes, no domingo, 5 de maio, o presidente Lula foi enfático em afirmar que “o Brasil deve muito ao Rio Grande do Sul […], sobretudo se a gente levar em conta a questão da agricultura. Se não fossem os gaúchos desbravadores que venderam seus pequenos lotes aqui e foram comprar terreno com malária no Mato Grosso, Rondônia, Mato Grosso do Sul e em outras regiões do País, possivelmente a gente não teria a pujança da nossa produção agrícola…”.
Essas palavras elevam os ânimos de um povo orgulhoso das suas façanhas e, neste momento tão dramático, são combustível para uma mobilização social nunca vista em nossa história, equiparável somente à magnitude da própria catástrofe. No entanto, elas também exaltam uma das principais causas da crise climática, o modelo insustentável de agropecuária que nós, os gaúchos, contribuímos para disseminar.
A destruição da biodiversidade para expandir a produção de soja está cobrando um preço muito alto. Em 2023, a área desmatada no Cerrado aumentou 43%. Nem mesmo o Pampa, tão marcante na identidade do gaúcho, resiste à expansão dos monocultivos.
Neste momento, todos estão preocupados com o que a perda da produção significará nos preços. De fato, milhares de agricultores familiares perderam tudo e levarão anos para se recuperar, impactando a produção inclusive no longo prazo.
Os efeitos na distribuição de arroz têm particular atenção. Na região metropolitana de Porto Alegre, os assentamentos que produzem arroz orgânico foram fortemente atingidos. Medidas urgentes são necessárias para amenizar a situação dramática de quase 500 famílias de assentados.
Mas a urgência da crise não implica em retirar da pauta o futuro um pouco mais longínquo e discutir desde agora o que a catástrofe nos ensina sobre a organização dos sistemas alimentares. Poderíamos começar com algo simples: nenhum centímetro a menos de florestas e campos nativos!
No entanto, na Câmara dos Deputados, foi um gaúcho o relator de projeto que autoriza o desmatamento de 48 milhões de hectares de campos nativos, agora em tramitação no Senado. Outra ideia básica: estoques estatais são fundamentais para a estabilidade de preços e abastecimento! Porém, o governo anterior desestruturou as políticas de abastecimento e acabou com os estoques, inclusive de arroz.
Não faltam estudos sobre a possibilidade de ampliar a produtividade agrícola nas áreas já existentes. Mas será preciso ir além e recuperar áreas degradadas, notadamente nas encostas dos rios. Além disso, ampliar os sistemas agroflorestais e agroecológicos é uma medida fundamental para adaptação às mudanças climáticas, bem como a agricultura urbana para a resiliência das cidades. A questão é que isso implica em ampliar os recursos destinados à transição para práticas agropecuárias mais sustentáveis.
Como gaúcho, descendente de uma dessas muitas famílias de desbravadores, espero que tenhamos a capacidade de reconhecer os equívocos do passado e, daqui para frente, retribuir a solidariedade de todos os brasileiros com a construção de sistemas alimentares sustentáveis, cujos benefícios possam ser usufruídos por toda a sociedade.
Sobre o autor
Paulo Niederle é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)