Povos tradicionais: Salto é a primeira comunidade ribeirinha titulada no Piauí

Publicado originalmente em Ocorre Diário. Para acessar, clique aqui.

O processo de reconhecimento e regularização fundiária foi concluído com o Título de Domínio Coletivo entregue à comunidade nesta sexta-feira (27)

“Quando tinha uns me criticando, um rapaz me disse: você nunca baixe sua cabeça e nunca se deixe levar pelos outros. Você siga sempre em frente, que vai dar certo. E, hoje, graças a Deus, temos nossa terra! Disseram que eu queria o documento pra luxar, pra comprar roupas, isso e aquilo. Mas na verdade, gente, era isso aqui. Este título é o resultado, o fruto da nossa luta! E ele não é só meu não, é nosso, de nós todos da comunidade de Salto”, desabafou Reginalda Fontes, líder comunitária (Associação de Pequenos Produtores Rurais das Comunidades de Salto I e II), após erguer o documento de posse da terra em suas mãos.

Reginalda, mais conhecida como Regina, estava emocionada e considerou seu próprio discurso, sob lágrimas, como um “desabafo”, mas, foi, com certeza, uma demonstração de alívio, alegria e gratidão pela concretização do sonho da terra própria e do fim da luta secular de sua comunidade.

A comunidade ribeirinha-brejeira Salto foi titulada, nesta sexta-feira, 27/08, recebendo o título definitivo de doação dos 2.920,8799 hectares, que representam o território tradicional da comunidade, localizada no município de Bom Jesus, na região sul do Estado. A exemplo de outros imóveis públicos, a expedição e outorga do Título de Domínio Coletivo é a consagração de todo o processo de regularização fundiária de Salto, realizado pelo Instituto de Terras do Piauí – Interpi, que é responsável pela política de regularização e pela gestão das terras públicas estaduais.

A titulação de Salto entra para a história dos feitos administrativos como a primeira comunidade tradicional ribeirinha totalmente regularizada no Estado. Em abril, o Interpi/Governo do Estado fez a entrega do o primeiro título coletivo de uma comunidade indígena no Piauí – os Kariri, de Queimada Noiva, e, em setembro, deverá entregar mais cinco títulos coletivos de comunidades quilombolas.

POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: QUEM SÃO ELES

Os povos e comunidades tradicionais, de acordo com o Decreto presidencial nº 6.040/2007 (que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais), abrangem os povos indígenas, as comunidades quilombolas (remanescentes das comunidades de quilombos) e as comunidades tradicionais (ribeirinhas, quebradeiras de coco, ciganas, pescadoras artesanais etc).

Contudo, para fins de regularização fundiária, apenas os povos indígenas e as comunidades quilombolas possuem disposição na Constituição Federal de 1988, que indica que os seus territórios devem ser regularizados. As demais comunidades tradicionais não têm, no âmbito nacional, previsão legal para regularizar os seus territórios tradicionais.

Para o Estado do Piauí, a solução foi a Lei Estadual Nº 7.294, de 10 de dezembro de 2019, que reconhece a existência de “comunidades tradicionais” e prevê sua regularização fundiária, sob responsabilidade do Interpi. A titulação coletiva, com o registro da matrícula do imóvel em nome da comunidade, coletivamente, é a conclusão desse processo.

Prever a regularização para os povos e as comunidades tradicionais do nosso Estado é um dos aspectos mais inovadores da Lei de Regularização Fundiária Nº 7.294, de acordo com o diretor-geral do Interpi, ao relembrar que “a Lei Estadual foi também inovadora no seu próprio processo de elaboração, dentro de um contexto de ampla articulação social e de poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), sob coordenação do Núcleo de Regularização Fundiária, do Tribunal de Justiça, para que a segurança jurídica chegue aos pequenos, aos médios e aos grandes produtores”, declara Chico Lucas. “Isso tudo é fruto do trabalho do governador Wellington Dias, que visa proteger a todos aqueles que trabalham pelo desenvolvimento do nosso Estado, de modo sério, sem especulação e sem nenhum tipo de má-fé. Visa proteger também as comunidades que vivem tradicionalmente e que são responsáveis pela proteção do meio ambiente”.

HISTÓRIA E CONTEXTO SOCIAL DE SALTO

O território tradicional de Salto, no município piauiense de Bom Jesus, é formado pelos núcleos populacionais de 32 famílias interligadas por parentesco do Salto I e Salto II (Salto de baixo e Salto de cima), na Serra do Quilombo, ambiente de Terras de Chapadas ou Baixões, às margens do rio Uruçuí Preto.

Para concluir a regularização fundiária no imóvel, o Interpi determinou que fosse realizado um trabalho de identificação e delimitação do território tradicional, em 2019, sob responsabilidade do antropólogo doutor Edmundo Fonseca Machado Júnior.

As pesquisas foram realizadas em campo, em conjunto com a comunidade e com a sua participação, conforme as regras do método antropológico e a recomendação Tratado Internacional da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) quanto à participação efetiva das comunidades em todas as ações públicas que venham a afetá-las, inclusive as ações que beneficiam a comunidade. O Relatório Antropológico foi concluído em setembro de 2020, com base nos levantamentos in loco do antropólogo.

De acordo com o Relatório, os ambientes utilizados no território e, a depender da atividade, há a sazonalidade, são: Morro, Lagamar, Chapada ou Baixão, Agreste área de extrativismo, Brejo e Vereda.

O diagnóstico antropológico registra ainda que as diversas tentativas de invasões, e, em um período mais recente, de “tomada de parcelas do território principalmente para a venda e na prática da chamada grilagem verde, em aplicação indevida de outra política pública que deve aliar a regularização ambiental e fundiária; cujos invasores têm nomes conhecidos nos registros das respectivas ocorrências policiais (oito ocorrências registradas entre 2015 e 2017) sobre invasões, cortes de cercas, medições indevidas e ameaças”.

MEMÓRIA

As datas de nascimento das gerações na comunidade são do começo do século XIX, mas a memória recua à formação da comunidade entre os que já estavam e os que chegaram de fora (os “catingueiros”) a décadas anteriores. São, portanto, mais de 120 anos de a comunidade se perceber como comunidade.

A memória coletiva traz histórias recontadas que divide o tempo em dois extensos blocos: um bloco que se refere à sesmaria, que dimensiona o território entre a “casa dos caboclos” e a “casa de pedra”; e outro bloco que reúne histórias de conflitos por terras relacionados território da comunidade. Tais blocos se sucedem no tempo, sendo que os tempos mais recentes são marcados por invasões do território tradicional. No conjunto, a comunidade de Salto (Salto I e Salto II) mantém sepulturas de parentes em cemitério local, como a de Juliana Maria da Conceição (1919-1989). Os parentes falecidos são rememorados em suas batalhas, quer na resistência na permanência no território, quer nos idos da primeira década do século XX, entre 1930 e 1950, nas situações de fome por que passaram.

AS ORIGENS DE SALTO

A origem provável de bisavós de seus agrupamentos de fatos que modelam as da comunidade e que ali viveram é de Remanso (BA) e da localidade Riachão dos Paulos, no Município de Baixa Grande do Ribeiro (PI). Os primeiros moradores a viverem em Salto buscaram terras livres e agriculturáveis, locais de caça, outros alimentos e disponibilidade de água (páginas 19-22 do “Diagnóstico”). A comunidade se reproduziu fisicamente por meio do casamento entre primos (quer paralelos, quer cruzados). Das estruturas físicas identificadas no território estão: residências, taperas (antigas moradias), cemitério, currais, roças e ranchos.

FESTEJO COMUNITÁRIO

A comunidade festeja Santo Antônio, em rituais (rezas) realizadas nas casas dos moradores, no dia 13 de julho de cada ano e, também, é devota de São Jorge, com comemoração no dia 23 de abril de cada ano; neste caso, como informado por Regina, líder da comunidade, a devoção a São Jorge perpassa todas as comunidades no vão do Uruçuí Preto.

A regularização fundiária, com a titulação coletiva e matrícula do território em nome da comunidade, garante bem-estar à comunidade, de acordo com o Relatório, peça integrante do processo de regularização de Salto, concluído pelo Interpi. Para uma comunidade titular do seu território, os projetos de desenvolvimento social e econômico voltados especificamente passam a ser viáveis, pois as instituições governamentais e outros setores, como o empresarial, poderão, com segurança, investir em estruturas físicas (edificações como currais, casas de farinhada, casa de mel, currais, dentre outros.), uma vez que, a partir de agora, as famílias ribeirinhas de Salto não vivem mais em terras de terceiro. Elas são as legítimas proprietárias de seu território tradicional. A regularização fundiária de um território tradicional coloca fim em conflitos por terras.

Fonte: Interpi – Instituto de Terras do Piauí

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