Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Magali Cunha. Para acessar, clique aqui.
Um vídeo que mostra traficantes interrompendo um culto em uma igreja evangélica no Rio de Janeiro para pedirem uma oração antes de saírem para um confronto armado, viralizou em mídias sociais na terça, 5 de julho, e se transformou em notícia até mesmo de grande mídia local.
Alguns perfis e a matéria do jornal O Dia basearam-se em informação da página carioca de mídias sociais “Alerta Informes Rio”. Em publicação, a página dizia que “a filmagem, segundo fontes da polícia, ocorreu na quinta-feira, dia 30 [de junho], na comunidade INPS, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio. O Portal Procurados também confirmou a informação”.
Após o alto alcance do vídeo e dos inúmeros comentários sobre a relação entre igrejas e o tráfico de drogas, vários deles de cunho preconceituoso e depreciativo de igrejas evangélicas em geral, lideranças de uma pequena igreja evangélica no Morro do Borel (bairro da Tijuca, no Rio) tornaram público o teor da publicação: era uma encenação.
Uma peça de teatro religiosa
Como é muito comum em igrejas evangélicas, peças são encenadas em cultos para oferecer uma mensagem, um ensino, relacionados à dinâmica da vida, da própria igreja. É muito comum temas como processos de conversão, a volta de Jesus e o Juízo Final, histórias da “igreja perseguida pelo mundo”, por exemplo. Da mesma forma, para comemorar o Dia do Pastor, em 12 de junho, integrantes do Ministério Tempo de Avivar apresentaram uma peça teatral em que dois traficantes (personagem presente no cotidiano de uma comunidade periférica) pediam oração para atuarem em um confronto violento, mas ao final se convertiam ao Evangelho.
A história foi esclarecida pela pastora presidente do Ministério, Isa Cruz, em depoimento ao repórter Igor Melo, do UOL Notícias. Ela disse que o pastor que aparece nas imagens é seu marido, Alan Mendes, também presidente da igreja. A pastora contou ao repórter que não faz muito uso de mídias sociais, mas acabou tomando conhecimento da repercussão do caso. “A todo momento me mandam o vídeo.” Ela explicou que a congregação não se preocupou com a divulgação das imagens: “Ficamos tranquilos, porque realmente foi uma peça e acho que não foi [divulgado] o vídeo todo”.
O pastor Alan Mendes explicou ao UOL Notícias que a arma exibida no vídeo era de paintball. A pastora admitiu que em sua igreja já houve casos de traficantes que se converteram e largaram o crime e a peça estaria refletindo esta realidade. “A nossa igreja é aberta. Nós não impedimos ninguém de entrar na igreja para receber a palavra de Deus. Temos alguns convertidos que antes foram ex-prostitutas, ex-traficantes. Quando [a pessoa] entra na igreja, na presença de Deus, sua vida é mudada”, disse Isa Cruz à reportagem.
Já o jornal O Globo, publicou o esclarecimento dado pela pessoa que publicou o vídeo. Trata-se do mestre de obras, que é influenciador digital, Rondinele dos Santos, conhecido como Nelinho do Borel. Ele relatou a mesma história contada ao UOL pela pastora Isa Cruz e seu marido pastor Alan Mendes. Com mais de 50 mil seguidores, Nelinho do Borel afirma que postou o vídeo no TikTok com a intenção de mostrar como a igreja atua dentro das comunidades.
Apesar da boa intenção, o influenciador digital teve problemas com a publicação. “A igreja está lá para orar por todo mundo, independente do que a pessoa faz. Eu não achei que iriam apagar meu vídeo. Na primeira vez que publiquei, ele teve 12 milhões de visualizações. Deletaram meu vídeo e eu postei de novo, achando que tinha dado algum erro. Na terceira vez, bloquearam minha conta”, contou Nelinho do Borel à repórter Kathlen Barbosa, de O Globo. Segundo ele, na legenda do vídeo constava a informação de que se tratava de uma peça de teatro, porém desconfia que a plataforma tenha apagado o conteúdo por conta de denúncias de outros usuários.
Nelinho do Borel confirmou o que disse o pastor Alan Mendes, que a encenação usou armas de paintball, e que os personagens que aparecem no vídeo são todos membros da igreja.
A vida como ela é
O conteúdo que fez o vídeo viralizar é enganoso, pois não é um fato ocorrido, mas sim uma encenação. Entretanto, elementos contidos na narrativa que deu forma à representação dos membros da igreja, no Dia do Pastor, são uma realidade presente no cotidiano de muitas igrejas em favelas de grandes cidades do Brasil.
É uma realidade que tem se tornado muito evidente pelo noticiário e acaba sendo julgada e, boa parte das vezes, condenada por pessoas que vivem em bairros das cidades do Brasil e que desconhecem o cotidiano destas comunidades. Por isso, o trabalho de pesquisadoras como a professora da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Estudos da Religião Christina Vital é muito relevante. Ela é autora do livro “Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015), resultado de pesquisa de campo, como antropóloga, nas favelas de Acari e Santa Marta, no Rio.
Há os casos de traficantes que participam das igrejas e se convertem, e mudam de vida, como relata a pastora Isa Cruz, e há os que não mudam, acomodam as duas identidades, a do tráfico e a religiosa. Por isso a professora Christina Vital afirma que “não se trata de pensarmos esta relação, esta aproximação entre criminosos e redes e códigos evangélicos a partir da ótica da conversão, de uma transformação da vida do indivíduo, mas de uma composição específica que envolve expectativas de transformação, apelos morais, conexão com narrativas locais e uso de uma religião como ícone de dominação. Assim, a religião seria mais uma forma de demonstrar poder”.
A professora ressalta que a intensificação da relação entre igrejas evangélicas e dirigentes do tráfico é mais um sintoma do crescimento evangélico que vem ocorrendo como um todo no Brasil, especialmente nas periferias. Esta presença evangélica se dá pela escuta, pela aproximação e pelas relações de confiança que se estabelecem no que pode ser lido como um vazio nas relações com outras instituições e organizações, como o próprio Estado. “Não acho correto dizermos que a Igreja cresce onde o Estado não está presente. O Estado está presente nessas localidades, mas de modo precário, reforçando sentimentos de desconfiança, elemento corrosivo da vida social”, afirma Christina Vital.
A pesquisadora reconhece a questão da intolerância religiosa que se agrava com esta nova realidade:
“Há um contexto sociopolítico muito desfavorável à presença de religiosos de matriz africana. Isso nas favelas se tornou mais intenso porque é um local com uma densidade demográfica muito grande, onde esses rituais têm um tipo de sonoridade em que é impossível realizar as celebrações em segredo. Esses vários terreiros que existiam nas favelas foram para a Zona Norte ou para a Baixada Fluminense. Uma mãe de santo falou que esse êxodo se dá em parte pela intolerância religiosa e em parte pelo aumento da violência nas favelas, o que pôde ser percebido no trabalho de campo em Acari desde a década de 1990. O crescimento do tráfico e o superarmamento do tráfico traziam uma condição muito instável para os moradores e para os filhos de santo que iam à favela.
Ainda na década de 1990 houve a “gratificação faroeste”, em que vimos a violência crescer no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Resumindo, há duas ocorrências. O movimento da intolerância religiosa praticada por moradores e a questão que diz respeito à violência estrutural, que se apresenta deste modo em razão do crescimento do tráfico e que dificulta a ida dos filhos de santo para a favela”.
O tráfico e as igrejas
Sobre o caso específico da gravação da encenação pelo Ministério Tempo de Avivar, Bereia ouviu a mestre em Ciências da Religião, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Viviane Costa, que é pastora pentecostal, da Igreja Assembleia de Deus. Ela explica que em favelas em que há a presença de traficantes que se identificam como evangélicos (e faz sentido o caso do Morro do Borel, pois está neste contexto), há igrejas que acabam participando da dinâmica em torno desta realidade, o que não quer dizer que tenham associação com o tráfico.
“Quando um traficante pede para o pastor fazer uma oração, porque ele vai para um enfrentamento, para um confronto, ou para se defender ou para lutar por um novo território, ou eles “convidam” o pastor para ir até a boca de fumo ou eles vão até a igreja e pedem oração, ou ainda um pastor passando pela rua é chamado e ora por eles. Isto é diferente daquela outra oração que o pastor faz como um apelo à conversão, por exemplo. A primeira seria uma oração voltada para uma dinâmica de guerra do tráfico, o que faz parte deste contexto representado na peça”, explica Viviane Costa.
A pastora e pesquisadora ressalta que
“De qualquer forma, esta participação do pastor em oração representada na peça não representaria uma necessária associação dele com o tráfico de drogas, até porque se ele está dentro de um território dominando pelo movimento, ele não tem muita liberdade para dizer ‘não quero orar por você. Há aqueles, sim, que se envolvem com o movimento, fazem parte dele, recebem dinheiro, verba desviada, tem festas patrocinadas pelo movimento, mas há pastores nestes locais que só tem aproximação com o pessoal do tráfico quando é para fazer oração, para cumprir algum compromisso mais ministerial. Nestes casos eles mantêm um distanciamento, uma blindagem. A professora Christina Vital chama isto de blindagem moral. Eles têm a prática do bom testemunho porque, ao não se envolverem, eles continuam a manter a postura e a autoridade de um pastor sério, homem de Deus, reconhecido pela comunidade e pelo tráfico de drogas também”.
Retificação nas mídias
No mesmo dia em que publicou ser verdadeiro o vídeo com a oração, a página Alerta Rio Informa no Instagram apagou a postagem e publicou uma nova em que afirma ser o caso uma história “Fake”. Nela, o grupo reproduz trechos publicados pelo projeto de fact-checking Fato ou Fake, do Portal G1, sobre o caso, sem dar o devido crédito.
O jornal O Dia também publicou matéria que informa que o vídeo é uma peça de teatro.
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Bereia classifica as postagens e matérias que divulgaram um vídeo com traficantes recebendo oração antes de um confronto violento como enganosas. O vídeo é verdadeiro, mas é a gravação de uma encenação, uma peça de teatro comum em igrejas evangélicas para a transmissão de uma mensagem. Bereia alerta leitores e leitoras para conteúdos desta natureza que em nada contribuem para a reflexão sobre a complexa dinâmica da presença evangélica no Brasil e acabam por alimentar preconceito e intolerância.
Referências de checagem:
UOL. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/05/video-de-traficante-em-igreja-no-rio-e-peca-de-teatro-dizem-pastores.htm Acesso em: 06 jul 2022
Instituto Humanitas Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/606272-a-religiao-como-simbolo-de-dominacao-nas-periferias-entrevista-especial-com-christina-vital Acesso em: 06 jul 2022
G1. https://g1.globo.com/fato-ou-fake/post/2022/07/05/e-fake-video-que-mostra-traficantes-armados-pedindo-oracao-em-igreja-no-rio.ghtml Acesso em: 06 jul 2022