Por quê precisamos de um manual de redação antirracista?

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Lívia de Souza Vieira

Professora da UFBA e pesquisadora associada do objETHOS

Não deveríamos precisar, em um país que tem a maioria de sua população negra. Mas o recém-lançado “Manual de Redação: o Jornalismo Antirracista a partir da Experiência da Alma Preta” mostra o quanto era necessário um documento normativo que posicionasse a imprensa negra para além do nicho ou do ativismo, comumente vistos em tom pejorativo pela mídia dita “tradicional” e por alguns setores da sociedade. Sob os padrões e regras hegemônicos, a publicação de um manual de redação traz consigo marcas de profissionalização e, portanto, é também um ato político importante. Em 263 páginas feitas a muitas mãos, o manual teve orientação da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da UnB, do jornalista Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor da UNESP, e do jornalista Pedro Borges, cofundador e editor-chefe da Alma Preta.

Neste texto, destacarei os aspectos inovadores do manual da Alma Preta, com foco para as discussões éticas que ele suscita.

  1. Posicionamento editorial

A agência de notícias se afirma comprometida com o ‘combate ao racismo estrutural e todas as desigualdades do país’, já que não é possível se viver ‘em um regime democrático com o atual estado de diferenças no Brasil’. É a partir de uma realidade de desequilíbrio, que favorece as pessoas brancas e enfraquece um país democrático, que se tem a necessidade de uma imprensa que combata o racismo e outras desigualdades. É muito menos uma escolha e muito mais uma necessidade latente.

Embora rejeite valores como neutralidade e imparcialidade, ‘a agência de notícias opta por valorizar a objetividade’, pois o jornalista ‘não pode fechar os olhos para os fatos e deve exercer um trabalho responsável de apuração. A realidade é complexa, repleta de contradições e assim deve ser reportada’. A palavra objetividade aparece 10 vezes no documento, sempre relacionada com a apuração responsável dos fatos. Por exemplo, no verbete ‘filiação partidária’, a orientação é de que o repórter pode se filiar a um partido político, mas ‘deve ter objetividade na produção de pautas para apurar fatos controversos e inclusive contrários ao partido em questão’. Já no próprio verbete ‘objetividade’, o manual diz; ‘A objetividade é fundamental para dar conta da complexidade do cotidiano e exige da repórter a escuta ativa, a apuração, a checagem das informações e o domínio das técnicas da profissão’.

O leitor mais atento percebeu o uso do feminino como pronome neutro nas aspas acima e isso faz parte do posicionamento editorial do veículo. Embora não seja uma diretriz em todos os seus conteúdos, optou-se por essa estrutura linguística no manual de redação ‘de forma a romper com uma estrutura de linguagem que reproduz o masculino como universal’. Interessante observar que os autores usam a palavra ‘’incômodo’ – certeira, na minha avaliação – para dizer que se trata de um ‘exercício do incômodo e do questionamento de opressões estruturais da sociedade’.

  1. A imprensa negra é imprensa tradicional

A Alma Preta se posiciona como imprensa negra, por ser feita por pessoas negras, se dirigir a um público também negro e/ou comprometido com a luta antirracista e abordar a realidade a partir da perspectiva dos afrodescendentes. ‘Como nos periódicos do século 19 e 20, raça e racismo direcionam a linha editorial da ’Alma Preta’, diz o manual.

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