Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta por Mariana Mandelli. Para acessar, clique aqui.
*Mariana Mandelli é coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta
A nona edição da Copa do Mundo Feminina da FIFA teve início no dia 20 de julho com vários recordes quebrados: na partida entre a anfitriã Austrália e a Irlanda, 75.784 pessoas estiveram presentes, o maior público registrado no país para uma partida de futebol entre mulheres. Na Nova Zelândia, que também sedia o megaevento esportivo, 42.137 espectadores acompanharam in loco a disputa entre a seleção da casa e a Noruega, atingindo o maior número de torcedores da história neozelandesa.
Com marcas expressivas fazendo jus às altas expectativas e projeções em torno da competição — a FIFA espera uma audiência de até 2 bilhões de pessoas em todo o mundo —, a inclusão e o respeito a mulheres nesse esporte parecem ter se tornado, enfim, uma realidade concreta. Mas se os progressos nesse sentido são inegáveis, é fato que a misoginia e o machismo ainda seguem sendo pilares sociais, como mostra o que aconteceu na exibição do jogo de abertura da Copa na CazéTV.
O canal no YouTube do influenciador Casimiro Miguel, que tem os direitos de transmissão do torneio, teve que desativar o chat do vídeo por conta da enxurrada de comentários ofensivos à aparência e ao desempenho das atletas em campo, passando a moderar o espaço nas partidas seguintes para impedir a publicação de ódio.
A misoginia nas redes sociais direcionada às esportistas não é exclusividade do Brasil. Dados da organização sem fins lucrativos Plan International sobre as mídias sociais na Austrália são um bom exemplo. Em 2019, uma análise realizada nas postagens de veículos esportivos no Facebook mostrou que a quantidade de comentários negativos sobre atletas mulheres era três vezes maior do que as opiniões sobre homens: 27% contra 9%. O sexismo também aparece como determinante no teor das mensagens: 23% delas reforçavam estereótipos de gênero considerados tradicionais e 20% depreciavam as habilidades esportivas das mulheres.
Outro estudo, divulgado nesse mesmo ano mas com foco em tenistas, revelou que a violência de gênero no Twitter e no Facebook se concentra em ameaças de ataques físicos e na sexualização com base na aparência física e em desejos sexuais explícitos — alguns bastante agressivos e alarmantes. A análise foi publicada no International Journal of Sport Communication.
Por aqui, a misoginia contra atletas não emerge somente das redes, mas está marcada também na nossa história, quando o decreto-lei n.º 3.199 de 1941 proibiu a prática do futebol pelas mulheres por considerar que seus corpos deveriam servir apenas a funções consideradas compulsórias, como a maternidade e as tarefas domésticas. “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”, dizia o artigo 54 do texto.
Os comentários compartilhados no chat da CazéTV nada mais são do que uma atualização da mentalidade que imperava na Era Vargas, mas com formato e alcance tremendamente maiores, contando com o anonimato e a monetização propiciados pelas plataformas digitais. Fóruns masculinistas vêm sendo extensamente denunciados nos últimos anos, mas ainda estamos longe de extirpar a toxicidade desses discursos, pois isso exige esforços múltiplos para uma mudança cultural de longo prazo, educando especialmente meninos e jovens, para que saibam os danos sociais que a desigualdade de gênero nos traz na vida online e offline.
Ao passo que as empresas de tecnologia precisam impedir que essas mensagens sejam monetizadas e viralizem, também é necessário criar campanhas e projetos educativos, dentro e fora das escolas, que desconstruam ideais de hipermasculinidade difundidos em redes como o TikTok, mostrando as diferenças entre liberdade de expressão e proliferação de discursos que desumanizam e desprezam mulheres. Um uso significativo e fortalecedor das ferramentas digitais é fundamental para entendermos como mensagens odiosas podem retroalimentar ideologias misóginas e visões deturpadas do mundo.
Para um país que proibiu que mulheres jogassem bola por quase quatro décadas, não é difícil compreender a potência do sentimento anti-mulher no futebol, esta modalidade esportiva estruturalmente definida e sustentada pela masculinidade hegemônica. Mas, se quisermos que a próxima edição da Copa do Mundo Feminina em 2027 tenha menos ódio de gênero nas redes, é preciso começar agora.
*Crédito da imagem: Thais Magalhães/CBF